Acórdão nº 1263/06.3TVPRT.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Junho de 2015
Magistrado Responsável | MARIA CLARA SOTTOMAYOR |
Data da Resolução | 02 de Junho de 2015 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal da Justiça: I – Relatório AA intentou a acção declarativa sob a forma ordinária contra BB, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 51.000,00, acrescida de juros de mora, à tCC legal, desde a data de citação até efetivo e integral pagamento, alegando, em suma, que, em Março de 2003 consultou o Réu, especialista em cirurgia plástica, no sentido de lhe pedir uma opinião sobre a hipótese de “subir” as cicatrizes que tinha em toda a zona inguinal, de forma a que estas não fossem visíveis abaixo da linha do fato de banho e, com vista a alcançar esse fim o Réu propôs-se efectuar duas cirurgias, em momentos distintos: num primeiro momento, o Réu realizaria uma pequena lipoaspiração à parte interna das coxas e, num momento posterior, subiria as cicatrizes, tendo sido a Autora operada pelo Réu no dia 02.05.2003 e tido alta no dia seguinte, com indicação dos medicamentos a tomar e para aparecer no consultório do Réu no dia 05.05.2003, ocasião em que o Réu a informou que tinha resolvido o seu problema numa única operação, tendo aproveitado a cirurgia para injectar na vulva os auto-enxertos de gordura, colhidos da face interna das coxas por lipoaspiração, apanhando a Autora de surpresa pois o Réu nunca lhe havia pedido autorização para o efeito, pois a possibilidade de proceder ao enchimento dos grandes lábios nunca foi discutida entre ambos, nunca tendo sido esclarecida a Autora sobre os riscos inerentes a esse procedimento.
Refere a Autora que logo nesse dia começou a sentir fortes dores, encontrando-‑se o grande lábio do lado direito muito inchado e deformado, dores essas e inchaço que aumentaram consideravelmente nos dias seguintes, tendo sido observada de novo pelo Réu mais algumas vezes, sem que este debelasse essas dores e inchaço, apesar de lhe reforçar a medicação, pelo que a mesma acabou por ser observada por outros médicos, um dos quais, perante a infecção instalada por se terem formado abcessos, acabou por lhe drenar os dois grandes lábios, sem que o Réu, apesar de conhecedor dessa situação, tenha alguma vez contactado a Autora para saber do seu estado.
Em resultado dessa situação, alega ainda a Autora, esteve durante 40 dias totalmente impossibilitada de realizar a sua vida normal e de trabalhar, andou extremamente angustiada por sentir dores intensas, por desconhecer o mal de que padecia, e por não lhe ter sido dada qualquer explicação ou apresentada qualquer solução. Ficou com marcas deixadas pela intervenção, mal sucedida, que não mais sairão. O problema das cicatrizes agravou-se pelo aparecimento de novas manchas e cicatrizes, apresentando agora uma deformação definitiva da zona dos grandes lábios e das pernas, mantém-se em tratamento ginecológico desde a data da intervenção efectuada pelo Réu devido a infecções que ressurgem. Toda esta situação alterou o estado físico e psíquico da Autora, que sente dores e um mal estar generalizado durante o período menstrual, o uso de roupa interior causa-lhe incómodos e dores no local intervencionado, os seus órgãos sexuais externos estão deformados e mutilados, causando-lhe complexos e uma enorme tristeza, a sua vida sexual foi praticamente inexistente no ano subsequente à data da intervenção, pondo em risco a sua vida afetiva e matrimonial.
Conclui a Autora que o Réu violou os seus deveres de prestar os melhores cuidados ao seu alcance, de agir com correcção e delicadeza, de promover ou restituir a saúde, de suavizar os tratamentos, de respeitar a dignidade do ser humano, de esclarecer a Autora acerca dos métodos de terapêutica e de obter o seu consentimento para proceder à remodelação estética da vulva, deveres estes que se encontram previstos nos arts. 26º, 38º nº 1 e 39º do Código Deontológico. Alega, ainda, que o Réu não atingiu o resultado a que se tinha proposto com a intervenção cirúrgica, que procedeu ao enchimento dos grandes lábios vulvares sem o seu consentimento e que o acompanhamento dado no pós-operatório foi deficiente. Em consequência da atuação ilícita e negligente do Réu, quer durante a operação, quer no pós-operatório, a Autora sofreu danos patrimoniais avaliados em € 1000,00 consubstanciados nos honorários do outro médico a quem a Autora teve de recorrer e, sobretudo, não patrimoniais, estes últimos muito graves que avaliou em € 50.000,00.
Regularmente citado, o Réu contestou, impugnando os factos vertidos na petição inicial, e alegando em sua defesa designadamente que a correcção que a Autora pretendia era de difícil resolução dada a grande diferença de elasticidade entre a pele das duas regiões e a Autora foi informada das dificuldades cirúrgicas e apesar de devidamente informada solicitou o seu tratamento; que na segunda cirurgia planeada estava prevista a eventualidade de injectar tecido adiposo da Autora nos grandes lábios para respetiva reconstrução, após a elevação da pele das regiões crurais, o que aceitou; que após se ter realizado a cirurgia programada de lipoaspiração das regiões crurais, verificou-se que a elasticidade da pele das regiões operadas não era suficiente para obter o efeito desejado no segundo tempo operatório, pelo que foi decidido intra-operatoriamente aproveitar algum tecido adiposo que havia sido extraído da Autora e injectá-lo nos grandes lábios, criando-se, desta forma maior tensão proximalmente, fazendo subir a pele da região inguinal, procedimento este que estava previsto eventualmente ter de se realizar na segunda intervenção cirúrgica; que desta forma simples e aproveitando apenas injectar o tecido adiposo da própria Autora, tentou-se num só tempo operatório restaurar a anatomia da região e elevar as cicatrizes para uma zona escondida.
Refere o Réu que se não tivesse procedido a esta alteração durante a cirurgia, dificilmente se podia conseguir um resultado estético favorável, pois que, devido à diferença de elasticidade, apesar da pele da região crural ter ficado com menos tensão após a lipoaspiração, verificou-se que esta não era suficiente para manter os grandes lábios na sua posição correcta, bem como a elevação das cicatrizes para uma zona escondida e, foi na verificação desse facto que se decidiu intra-operatoriamente aproveitar o tecido adiposo, procedimento este que já tinha sido posto como eventual para a segunda intervenção, na primeira consulta entre Autora e Réu, e manifestamente autorizado pela Autora na sua declaração para intervenção cirúrgica.
Mais alega ter acompanhado de perto o pós-operatório da Autora, observando-a sempre que solicitado e medicando-a para a infecção que lhe veio a detectar, referindo que as dores eram normais, tendo sido tudo explicado à mesma, concluindo que o outro médico consultado pela Autora ao alterar a medicação antibiótica que o Réu lhe receitara promoveu a infecção, piorando o seu estado.
Finaliza, dizendo que a Autora teve alta curada no dia 30 de Maio (apenas 28 dias de impossibilidade), ficou em estado igual ao que se encontrava antes da cirurgia e melhor no que se refere à gordura que lhe retirou da parte superior das coxas, a deformação da zona dos grandes lábios já a tinha antes da prática cirúrgica, já tinha as infecções, o uso de roupa interior já antes da cirurgia lhe causava dores e incómodos, e já tinha, antes da cirurgia praticada, os órgãos sexuais externos deformados e mutilados, causando-lhe complexos e tristeza.
Afirma ter agido com perícia e a diligência exigível, como médico prudente, cuidadoso e conhecedor, e que a cirurgia a que a Autora foi submetida teve um êxito melhor que as expectativas iniciais e o seu malogro deveu-se ao surgimento de uma infecção, intercorrência possível em qualquer ato cirúrgico, agravada provavelmente pelos banhos de imersão e pela atitude do médico dermatologista.
Na contestação, o Réu suscitou a intervenção provocada da “CC - Companhia de Seguros, SA”, alegando para o efeito que, na data da intervenção cirúrgica referida nos autos tinha em vigor naquela companhia um contrato de seguro pelo qual aquela seguradora garante a responsabilidade civil do Réu inerente ao exercício da sua profissão de médico e, por efeito daquele seguro a “CC” responde pelos prejuízos cuja reparação a Autora reclama na acção que contra si propôs, por todos se incluírem no âmbito da respetiva cobertura.
Por despacho proferido a fls. 87 e 88, foi admitida a intervenção principal provocada de “CC, Companhia de Seguros, SA” como associada do Réu.
Citada tal interveniente, apresentou a mesma contestação, confirmando a existência do seguro, impugnando os factos alegados pela Autora, e alegando que já depois de ter apresentado a sua contestação, o Réu foi notificado da decisão de arquivamento no processo disciplinar que contra ele havia sido instaurado.
Realizada audiência preliminar, elaborou-se despacho saneador, com organização dos factos assentes e base instrutória, que não mereceram reclamação.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal, no decurso do qual foi ampliada a base instrutória, por despacho proferido a fls. 564 e 565, tendo-se respondido à matéria da base instrutória pela forma constante de fls. 751 a 772, que igualmente não foi objecto de reparos.
Foram apresentadas alegações de direito, por escrito, por Autora, Réu e Interveniente.
Por fim, foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o Réu BB a pagar à Autora uma indemnização global na importância de € 26.000,00, vencendo a indemnização relativa aos danos patrimoniais no valor de € 1000,00 juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento e, vencendo a compensação relativa aos danos não patrimoniais, no valor de € 25.000,00, juros à taxa legal desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento, tendo as custas ficado a cargo de Autora e Réu na proporção do respetivo decaimento.
Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso de apelação o Autor e a Companhia de Seguros. A apelada contra-alegou, ampliando o âmbito do recurso, impugnando...
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