Acórdão nº 398/09.5TALGS.E1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 08 de Janeiro de 2015

Magistrado ResponsávelISABEL SÃO MARCOS
Data da Resolução08 de Janeiro de 2015
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM NO PLENO DAS SECÇÕES CRIMINAIS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA * I. Relatório 1.

O Ministério Público, representado pelo Senhor Procurador-Geral-Adjunto no Tribunal da Relação de Évora, interpôs, em 19.12.2013, ao abrigo do disposto no artigo 437º, número 2 do Código de Processo Penal, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, com fundamento em oposição de julgados – o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05.11.2013, proferido no Processo nº 398/09.5TALGS.E1 e o acórdão do mesmo Tribunal, de 16.04.2013, prolatado no Processo nº 538/11.4TABJA.E1, ambos transitados em julgado.

Em síntese, alegou o recorrente: - Que o acórdão recorrido, proferido no Processo nº 398/09. 5TALGS.E1, chamado a decidir o recurso que os arguidos AA e “BB – Construção Civil e Jardinagem, Lda” interpuseram da sentença prolatada pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Lagos [que os condenou, pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na consideração, em suma, de que a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, nos termos da previsão dos artigos 105º, números 1 e 2, e 107º do Regime Geral das Infracções Tributárias, doravante designado apenas de RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 05.06, começa a correr a partir do termo do prazo de 90 dias estabelecido na alínea a) do número 4 do citado artigo 105º, na redacção introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29.12], corroborando este entendimento (embora com fundamentação e enquadramento normativo diferente dos invocados na decisão do tribunal de 1ª instância), concluiu no sentido de que o crime em causa não deve considerar-se consumado antes de decorrido o referido prazo de 90 dias estabelecido naquela alínea a) do número 4 do artigo 105 do RGIT; - Que, por sua vez, o acórdão fundamento, proferido no Processo nº 538/11.4TABJA.E1, chamado a resolver a mesma questão, colocada no recurso que o Ministério Público interpôs da sentença proferida pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial de Beja [que declarou extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra os arguidos, no entendimento, em suma, de que o prazo de 90 dias previsto na mencionada alínea a) do número 4 do artigo 105º do RGIT, constituindo uma condição objectiva de punibilidade – não impeditiva da possibilidade de ser exercida a acção penal, mas apenas obstativa da possibilidade de ter lugar a punição – em nada interfere no decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal que, nos crimes de abuso de confiança contra a Segurança Social, se inicia na data em que, nos termos do número 2 do artigo 5º do RGIT, terminou o prazo para o cumprimento da entrega das contribuições à Segurança Social], confirmando este entendimento, manteve a decisão impugnada, na consideração, em suma, de que, situando-se a condição objectiva de punibilidade estabelecida na alínea a) do número 4 do artigo 105º, fora do tipo legal, o crime consuma-se no momento em que, de acordo com o número 2 do artigo 5º do RGIT, findou o prazo para a entrega das contribuições à Segurança Social, começando, a partir do dia seguinte a contar-se o prazo de prescrição do procedimento criminal.

  1. Foram juntas ao processo as certidões do acórdão recorrido e fundamento, com nota do respectivo trânsito (o recorrido, em 12.12.2013, e o fundamento em 24.05.2013).

  2. Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 439º do Código de Processo Penal, os autos subiram a este Supremo Tribunal, onde o Senhor Procurador-Geral-Adjunto, na vista a que se refere o artigo 440º, número 1 do mesmo diploma, emitiu parecer no sentido de se verificarem os pressupostos legais para o prosseguimento dos autos como recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

  3. Proferido despacho liminar e colhidos os respectivos “vistos”, teve lugar a conferência a que se refere o artigo 441º do Código de Processo Penal, onde se decidiu, por acórdão, que, ocorrendo oposição de julgados relativamente à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação, o recurso é admissível, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

  4. Notificados os sujeitos processuais interessados, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 442º, número 1, do Código de Processo Penal, veio o Ministério Público apresentar as suas alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões: «1 – O crime de abuso de confiança contra a segurança social, da previsão dos arts. 107.º, n.º 1 e 105.º do RGIT, é um crime de dano, cuja conduta típica pressupõe a lesão do património fiscal do Estado, consubstanciado na tutela do erário da segurança social, assente na satisfação dos créditos contributivos de que esta é titular.

    2 – Ao contrário do que sucedia na vigência do RJIFNA [redacção do DL n.º 394/93, de 24 de Novembro], o elemento “apropriação” não integra, actualmente, o tipo de ilícito, tendo portanto deixado de ser um crime de resultado, sob a forma de comissão por acção, e passado a ser um crime de mera actividade – ou, no caso, de mera inactividade.

    3 – A conduta típica respectiva traduz-se, pois, numa omissão pura, cujo comportamento lesivo se esgota com a não entrega, total ou parcial, pelas entidades empregadoras, às instituições de segurança social, dentro de determinado prazo, do montante das contribuições deduzidas às remunerações devidas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais, por estes legalmente devidas.

    4 – Tal como decorre desde logo da fundamentação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2008, publicado no DR, I Série, de 15-05-2008, o prazo de 90 dias a que se refere a alínea a) do n.º 4 do art.º 105º do RGIT configura mera condição objectiva de punibilidade que, situada totalmente fora do perímetro de delimitação da infracção penal enquanto categoria autónoma de tipo de ilícito e de culpa, não pode por conseguinte ter qualquer interferência ou repercussão no momento consumativo daquele ilícito típico, que continua a ocorrer no termo do prazo legal de entrega da prestação devida.

    5 – Não é por isso convocável ao caso a figura da desistência da tentativa nos crimes formais, figura essa que parte, por seu turno, da distinção entre a denominada “consumação formal ou típica” – que se verifica logo que o comportamento doloso preenche a totalidade do tipo objectivo –, e a “consumação material” – que ocorre apenas com a “realização completa do conteúdo do ilícito em vista do qual foi erigida a incriminação”, ou seja, “com a verificação do resultado que interessa ainda à valoração do ilícito por directamente atinente aos bens jurídicos tutelados e à função de protecção da norma”.

    6 – De resto, para além de relevar no contexto da desistência da tentativa, como o comprova a circunstância de uma tal distinção ser pressuposto do art. 24.º, n.º 1 do Código Penal, a referida distinção (entre consumação formal e material) tem também campo de aplicação quando «a produção de um resultado releva (se bem que não ao nível do tipo de ilícito) para a definição da espécie de crime».

    7 – Só que, e perante a explicitada estrutura típica do crime fiscal de abuso de confiança contra a segurança social em apreço, não é aqui convocável qualquer dos aludidos contextos em que a distinção entre consumação formal e consumação material possa assumir ainda qualquer significado “prático-normativo”. Bem pelo contrário, a consumação formal e material ocorre aqui com a simples omissão de entrega da prestação devida até ao limite do respectivo prazo legal.

    8 – Isto desde logo porque o resultado que, com a sua previsão típica, se pretende evitar é apenas e tão só que o agente não deixe de entregar a prestação contributiva devida, até à data em que o Estado a espera arrecadar.

    A incriminação foi erigida, pois, apenas para punir a conduta omissiva do respectivo agente, conduta essa desligada até de qualquer resultado lesivo. Ou seja, independentemente da subsequente entrega ou não entrega das quantias descontadas e devidas, a conduta típica já está perfectibilizada.

    9 – Neste quadro, e por se não vislumbrar assim a verificação de qualquer evento que, para além da conduta em si mesma, possa ainda interessar à valoração do ilícito que o tipo tutela, a distinção entre “consumação formal” versus “consumação material” não assume a menor relevância típica no contexto do crime fiscal de abuso de confiança contra a segurança social 10 – Por isso, o eventual pagamento voluntário da prestação tributária devida no decurso da condição objectiva de punibilidade prevista na citada alínea a) do art. 105.º do RGIT nada acrescenta à definição da espécie ou do tipo legal de crime, configurando apenas uma causa de extinção da responsabilidade penal, que não uma hipotética desistência da tentativa, porquanto aquele se consumou com o vencimento do prazo de entrega previsto na lei.

    11 – Ademais, e para quem, como o aresto recorrido, parta do pressuposto de que configura mera condição objectiva de punibilidade o pagamento voluntário da prestação tributária à segurança social no decurso daquele prazo de 90 dias previsto na alínea a) do n.º 4 daquele art. 105.º do RGIT, e ainda assim adopte a tese de que o respectivo crime se consuma, apenas formalmente com o vencimento do prazo de entrega previsto na lei, e materialmente só depois do decurso da condição objectiva de punibilidade daquela alínea a), deixa por explicar por que motivo é que essa consumação material não há-de então ser alargada para o momento da verificação da condição de punibilidade também prevista na alínea b).

    12 – Prevendo com efeito a lei, indistintamente, a não punibilidade das respectivas condutas típicas tanto num caso como no outro, a contradição valorativa é tanto mais clara quanto é certo que na situação contemplada na alínea b) sempre está em causa a conduta de um agente apesar de tudo mais diligente uma vez que, incumprindo embora a obrigação de entrega das quantias deduzidas, não deixou no entanto de observar o dever de declaração...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT