Acórdão nº 3129/09.6TBVCT.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 28 de Maio de 2015

Magistrado ResponsávelABRANTES GERALDES
Data da Resolução28 de Maio de 2015
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

I - AA intentou acção com processo comum ordinária contra BB e CC, Ldª, pedindo que estes sejam condenados a pagarem-lhe, solidariamente, a importância de € 378.021,12, com juros de mora, à taxa legal, desde a citação até à data do trânsito em julgado da sentença condenatória, acrescidos, a partir desta data, de mais 5%, de sanção pecuniária compulsória, até integral pagamento, e a pagarem-lhe ainda as despesas que venha a suportar com medicamentos, tratamentos, consultas a médicos, fisioterapia, terapia da fala, intervenções cirúrgicas, etc., bem como no custo das viagens para esse efeito, em quantia a liquidar em execução de sentença.

Alegou que foi contratada para trabalhar para e nas instalações da 2ª R., onde o 1º R. prestava serviços médicos no âmbito da medicina no trabalho. No dia 27-10-08, estando no seu posto de trabalho, a A. foi acometida de um AVC e, tendo sido assistida pelo 1º R., este negligenciou os sintomas que se tinham manifestado e não a encaminhou para o Hospital, a fim de aí receber o tratamento adequado. Por não ter recebido este tratamento, veio a sofrer forte hemorragia cerebral que lhe causou dores e lhe deixou sequelas que a impossibilitam totalmente para o trabalho.

Fundamenta a responsabilidade da 2ª R. no incumprimento, por esta, da imposição legal de estar dotada de serviços internos de segurança, saúde e higiene no trabalho.

Os RR. contestaram, recusando qualquer responsabilidade no ocorrido por terem sido prestados à A. os cuidados exigidos.

Foram chamados a intervir, como parte principal, a sociedade DD, Ldª, clínica contratada pela 2ª R., para a qual o 1º R. trabalhava, e como partes acessórias da 2ª R.

EE - Companhia de Seguros, S.A.

., e do 1º R., FF - Compª de Seguros, S.A.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que absolveu a 2ª R. e a Chamada DD e condenou o 1º R. a pagar à A.:

  1. A quantia de € 160.000,00 de indemnização pelos danos patrimoniais que esta sofreu, acrescida de juros de mora, à taxa anual de 4%, a contar da data da citação; b) A quantia de € 80.000,00 de indemnização pelos danos não patrimoniais também sofridos, acrescida de juros de mora à mesma taxa a contar da data da sentença; c) E a quantia que se vier a liquidar ulteriormente relativa a tratamentos, intervenções médicas, ajuda de terceira pessoa e ajuda medicamentosa que a A. venha a necessitar.

    A A. apelou da decisão de absolvição das R. e da Chamada. Apelou também o 1º R.

    A Relação julgou improcedente a apelação da A. e procedente a apelação do 1º R., sendo este totalmente absolvido do pedido.

    A A. interpôs recurso de revista em que suscita as seguintes questões:

  2. O AVC vulgarmente chamado de derrame cerebral é caracterizado pela perda rápida de função neurológica, decorrente do entupimento (isquemia) ou rompimento (hemorragia) de vasos sanguíneos cerebrais. É uma doença de início súbito, na qual o paciente pode apresentar paralisação ou dificuldade de movimentação dos membros de um mesmo lado do corpo, dificuldade na fala ou articulação das palavras e déficit visual súbito de uma parte do campo visual. Pode ainda evoluir com coma e outros sinais. Trata-se de uma emergência médica que pode evoluir com sequelas ou morte, sendo a rápida chegada ao hospital importante para a decisão terapêutica.

  3. De entre os principais factores de risco para AVC estão a idade avançada, hipertensão arterial (pressão alta), tabagismo, diabetes, colesterol elevado, acidente isquémico transitório (AIT) prévio, estenose da válvula atrioventricular e fibrilação arterial.

  4. O AIT ou ataque isquémico transitório pode ser considerado um tipo de AVC isquémico. Corresponde a uma isquemia (entupimento) passageira que não chega a constituir uma lesão neurológica definitiva e não deixa sequela. Ou seja, é um episódio súbito de deficit sanguíneo numa região do cérebro, com manifestações neurológicas que se revertem em minutos ou em até 24 h, sem deixar sequelas (se deixar sequelas por mais de 24 h, passa a se chamar acidente isquémico vascular por definição).

  5. O diagnóstico do AVC é clínico, ou seja, é feito pela história e exame físico do paciente. Os principais sintomas são: dificuldade de mover o rosto; dificuldade em movimentar os braços adequadamente; dificuldade de falar e se expressar; fraqueza nas pernas; problemas de visão.

  6. É pacífico na comunidade médica que, diante desses sintomas, quanto mais rápido o socorro, menor a probabilidade de sequelas. Os médicos recomendam que a hipótese seja confirmada por um exame de imagem, tomografia computadorizada e ressonância magnética, que permitam ao médico identificar a área do cérebro afectada e o tipo de AVC.

  7. O R. BB, conhecedor dos sintomas que a A. havia apresentado, tais como cefaleia intensa e súbita, sem causa aparente, dormência e falta de força no lado direito do corpo, dificuldades em falar e perda de equilíbrio e boca torta, e tendo por obrigação saber que os mesmos podiam indicar a ocorrência de um AIT (muitas vezes secundado por AVC), pela circunstância de, aquando da sua observação, não ter denotado défices neurológicos, diagnosticou à A. ansiedade e administra-lhe um ansiolítico e permitiu, sem que se tenha dito no processo que alguma vez tenha avisado a A. de qualquer risco que corria (sendo certo que impõe-se perguntar qual o risco de ir para casa se o diagnóstico é apenas ansiedade?) que a A. fosse para casa descansar.

  8. Tendo conhecimento desses sintomas, o R. BB, na sua qualidade de médico de medicina de trabalho, tinha a obrigação de encaminhar rapidamente a A. para um Hospital para que pudesse ser conveniente e atempadamente atendida e pudesse receber tratamento médico adequado urgente, nem que fosse por mera precaução.

  9. Impunha-se pois ao R. outro tipo de comportamento. Devia, de imediato, não obstante a ausência de défices neurológicos, ter encaminhado a A. para o Hospital para exames complementares, designadamente TAC. Ao não tê-lo feito não praticou uma assistência diligente, existindo, uma desconformidade da concreta actuação do agente, no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura. Daí que possamos dizer que a obrigação do médico - obrigação de meios - não foi cumprida.

  10. Nada se exigia ao médico (e nem haveria processo) se a atitude deste tivesse sido a de um médico diligente e cauteloso. Se o R. tivesse cumprido com o que lhe era exigido ao tempo em que a doente estava sob a sua alçada e esta, a final, tivesse o mesmo resultado - o AVC com a gravidade verificada e com as sequelas com que ficou - nenhuma responsabilidade lhe podia ser assacada. No entanto, não foi essa a atitude do médico. É esta, a nosso ver, a negligência do médico. Há uma conduta objectiva e subjectivamente ilícita e culposa.

  11. Quanto ao referido nexo de causalidade, este seria de exigir à A. que estabelecesse, caso entendêssemos que a questão se situa no âmbito da responsabilidade civil extracontratual ou ao R. (demonstrando não haver esse nexo) caso estivéssemos perante responsabilidade contratual.

  12. Perante um caso de um AVC, com todos os contornos e especificidades referidas, em que os procedimentos médicos são decididos em função de vários critérios, mas que, dependem, desde logo (independente da existência ou inexistência dos restantes) da rapidez da actuação médica e da localização precisa, no tempo, da fixação dos défices neurológicos, temos que concluir - porque que o R., com a sua omissão impediu que qualquer destes parâmetros fosse avaliado em tempo útil - que o resultado final só a ele lhe pode ser imputado.

  13. Aliás, partindo do enquadramento contratual da situação, também o R. não demonstra que o resultado e sequelas teriam ocorrido mesmo com uma actuação conforme/desconforme à legis artis. Consequentemente há responsabilidade do R. e, como tal, cumpre indemnizar a A. com base na responsabilidade extracontratual por factos ilícitos.

  14. Mas mesmo que assim não se entenda, a responsabilidade do R. tem também uma fonte contratual. Na verdade, enquanto a responsabilidade civil extracontratual os requisitos previstos no art. 483° do CC têm de ser provados pelo lesado, na responsabilidade civil contratual, por força da presunção de culpa do art. 799º, não compete ao lesado provar a culpa do lesante.

  15. No caso em apreço, a A. não celebrou directamente o contrato com o médico. Há, de facto, uma relação quase quadrangular - a A. é contratada por empresa de trabalho temporário, que "cede" à R. CC, sendo que esta, por sua vez, por imposição legal, faculta aos trabalhadores (através de uma empresa contratada) acesso a médico de medicina do trabalho. Na verdade, o contrato não deixa de existir, apesar da referida quadrangulação.

  16. Deste modo, entendemos também que tem aplicação ao presente caso a presunção de culpa prevista no art. 799°/1 do CC, incumbindo ao médico a sua elisão, demonstrando que a desconformidade não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados. No entanto, o R. BB não demonstrou tal facto, tendo a obrigação de indemnizar a A. também com base na responsabilidade contratual.

  17. A DD é uma clínica que explora profissionalmente a actividade de prestação de serviços de medicina do trabalho, retirando lucros da sua actividade. Ora, no âmbito dessa sua actividade profissional, encarregou o seu colaborador, o R. BB, para, sob a sua orientação, prestar esses mesmos serviços de medicina do trabalho, tendo a sua conduta sido praticada no exercício da função que lhe foi confiada pela sua entidade patronal q) Tal como uma clínica médica profissional ou uma sociedade de advogados que explora uma actividade médica ou de advocacia deve ser responsável pelos prejuízos que um dos seus colaboradores provoque no exercício das suas funções, ao serviço das primeiras. Tratam-se, pois, de organizações profissionais...

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