Acórdão nº 23592/11.4T2SNT.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Novembro de 2017

Magistrado ResponsávelMARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Data da Resolução02 de Novembro de 2017
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA instaurou uma acção conta a Clinica Dr. BB, Lda. e contra CC, pedindo a sua condenação solidária no pagamento de uma indemnização de € 35.498,08 (€ 498,08 por danos patrimoniais e € 35.000,00 por danos não patrimoniais), com juros calculados desde a citação e até integral pagamento, bem como no montante que vier a apurar-se “no decurso da acção como correspondente aos danos sofridos”, patrimoniais e não patrimoniais, com juros contados desde a condenação.

Para o efeito, e em síntese, alegou ter sido submetida em 10 de Outubro de 2008 a uma extracção de um dente do siso incluso da qual resultaram “sintomatologia (…), dores e limitações (…) de que não padecia antes da exodontia”, incapacidade para o trabalho, para o treino físico e para progressão na carreira de militar – a autora é militar da força aérea, no activo –, causadas por lesões resultantes de falta de cuidado do segundo réu na realização da referida extracção e cuja possibilidade de ocorrência não lhe fora previamente comunicada. Disse ainda que nunca os réus assumiram que tivesse havido qualquer erro de execução na extracção ou que os danos que invoca tivessem sido sua consequência.

Concluiu estarem reunidos os pressupostos da responsabilidade civil por erro médico, por ter sido celebrado um contrato de prestação de serviços médicos com a clínica, a cujo serviço se encontra o segundo réu, aliás sócio e gerente da primeira.

Os réus contestaram. O segundo réu, por entre o mais, afirmou ter informado a autora “sobre o diagnóstico e procedimentos adequados ao caso” e dos “potenciais riscos” da extracção, que foi realizada segundo as regras técnicas devidas e com toda a diligência, e precedida da “análise cuidada dos exames complementares de diagnóstico efectuados previamente à cirurgia”; e ainda que algumas das sequelas atribuídas pela autora à extracção não podem resultar de tal tipo de intervenção. Não houve assim qualquer acto ilícito, nem nexo de causalidade, entre a extracção e os danos invocados, nem culpa na sua verificação.

A acção foi julgada improcedente, pela sentença de fls. 410: “Sem descurar de modo algum a lesão sofrida pela A.

[«lesão do nervo lingual direito (…), decorrente do acto cirúrgico levado a cabo pelo 2º R.»], conclui o tribunal, na senda do relatório pericial, que a mesma é uma sequela do próprio acto cirúrgico não imputável ao 2º R., nem a título extracontratual, nem a título contratual, mas decorrente dos riscos próprios da ciência médica, a qual não é uma ciência exacta e como qualquer actividade humana comporta riscos inerentes, não estando no nosso ordenamento jurídico, por ora consagrada a responsabilidade médica objectiva, ou decorrente do mero risco. Pelo exposto, concluiremos pela inexistência de responsabilidade imputável ao 2º R., pela lesão que sobreveio à A.

A conclusão a que chegámos quanto ao 2º R. implica idêntica conclusão quanto à 1ª R., tanto por força do disposto no artigo 500º do Código Civil, como por força do disposto no artigo 798º do mesmo diploma legal, dado que, atenta a forma como a A. configurou a relação material controvertida, a eventual responsabilidade desta R. sempre decorreria da imputação de responsabilidade aquiliana ou contratual ao 2º R.”.

A autora recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, pelo acórdão de fls. 485, concedeu provimento parcial à apelação e julgou a acção procedente em parte. Os réus foram condenados, solidariamente, no pagamento de uma indemnização de € 18.000,00 por danos não patrimoniais, com juros vincendos, e de € 427,98 por danos patrimoniais, com juros contados à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.

Para assim decidir, a Relação deferiu parcialmente a impugnação da matéria de facto e, em breve síntese, considerou que, apesar de estar provado que o segundo réu ”realizou os procedimentos adequados ao acto cirúrgico em causa” e que “ocorreu uma vicissitude, própria do acto em questão, que por vezes pode suceder, sem que deva ser ou possa ser imputada a imperícia do médico, que foi a lesão do nervo lingual direito”, a verdade é que a autora “foi atingida na sua integridade física, sofrendo sequelas que não haviam sido contratadas, para cuja ocorrência não havia consentido e de cuja possibilidade de ocorrência não havia sido informada”, sendo que a “seriedade das consequências danosas inerentes à cirurgia em causa” e a “taxa de frequência com que podem ocorrer” impõe a conclusão de que “os RR. tinham o dever de esclarecer a A. sobre as mesmas, dever esse que incumpriram.

Assim, ocorreu violação de um dos deveres decorrentes do particular contrato de prestação de serviços celebrado entre a A. e a 1.ª R. (prestação de serviços médicos), o dever de prestar informação a fim de se obter do cliente-paciente um consentimento informado, dever esse que também é imposto por lei e protege os direitos absolutos da integridade físico-psíquica e da liberdade de vontade do paciente (…).

No caso destes autos estamos perante uma mulher saudável, militar no activo, que na sequência do que lhe foi apresentado como um acto de medicina dentária inofensivo (extracção do siso), sofreu lesão no nervo lingual direito, o que no imediato e durante pelo menos um ano lhe provocou fortes dores, grande dificuldade em comer e em falar, sensação de encortiçamento e de formigueiro na língua e perda de sensibilidade na língua. Em virtude dessas limitações a A. não conseguiu praticar treino físico e não conseguiu realizar as provas físicas exigidas pela sua condição militar nos anos 2009 a 2011, por inaptidão médica, sofrendo a angústia inerente ao facto de tanto a progressão na carreira militar como a manutenção no activo dependerem de aprovação em testes de condição física. Ainda hoje, decorridos oito anos após a extracção do aludido dente, a A. mantém dor permanente no pavimento da cavidade oral à direita e na hemilíngua direita, com sensação de formigueiro, com parestesia, com sensação de encortiçamento, com grande dificuldade e dor na mastigação, não consegue mastigar com o lado direito, continua a acontecer-lhe morder a língua inadvertidamente, mantendo a insensibilidade na hemilíngua direita, mantém a dificuldade em articular a fala e em pronunciar correctamente algumas palavras.

De notar ainda que o 2.º R., médico experiente e que tratava a A. já havia bastantes anos, consultado por ela no período a seguir à cirurgia, nunca diagnosticou correctamente as causas das suas queixas, situação que se manteve mesmo após a propositura desta acção.

Tudo ponderado, atendendo aos valores jurisprudencialmente acima referidos, que se reportam a um tempo já algo longínquo, e às circunstâncias supra expostas, afigura-se-nos adequada a atribuição à A., a título de indemnização por danos não patrimoniais, actualizada à data presente, da quantia de € 18 000,00, pela qual são solidariamente responsáveis ambos os RR. (artigos 500.º, 497.º, 800.º n.º 1 do Código Civil).

No que concerne a danos patrimoniais, os RR. deverão indemnizar a A. pela quantia de € 427,98, referente às despesas provadas nas alíneas k) e ddd) da matéria de facto, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da citação, conforme requerido.” 2. Os réus recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça.

Nas alegações de recurso, formularam as seguintes conclusões: 1. A sentença da 1.ª instância não merece qualquer censura, pois mostra-se correcta a apreciação do direito aos factos que foram provados na audiência de julgamento; 2. O Acórdão recorrido viola o disposto no artigo 607.º, n.º 4, aplicável por via do estabelecido no artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC, porquanto não se mostra haver compatibilização da matéria de facto dada como provada; 3. É contraditório dar como provado, na alínea iii) dos factos provados na versão da Relação, que nem sequer foi mencionado à A. que tivesse de ser submetida a uma cirurgia, quando o diagnóstico que lhe havia sido dado a conhecer era no sentido de que o siso inferior, do lado direito, se encontrava incluso.

  1. Atendendo a que o significado de incluso é que está incluído ou contido, um dente que está incluso apenas pode ser extraído, pela natureza das coisas, através de cirurgia.

  2. O que a A. compreendeu, bem como qualquer outra pessoa na sua situação e com a sua formação, compreenderia.

  3. Com efeito, a A. é oficial da Força Aérea e tem uma licenciatura em ….

  4. Conhece, portanto, o significado das palavras e não é lógico, nem coerente, que se dê como provado que alguém a quem é comunicado que tem um siso incluso que necessita de ser extraído, que não alcance que tal extracção será feita cirurgicamente.

  5. Por outro lado, não é ainda lógico que alguém com a diferenciação da A., não coloque as questões que sejam necessárias ao seu completo esclarecimento no âmbito de uma relação médico doente que já havia sido estabelecida há anos, como se vê da matéria provada.

  6. É certo que o paciente tem o direito a ser informado do que se passa com o seu corpo, das alternativas de tratamento a serem seguidas, com as respectivas vantagens e inconvenientes, sendo chamado a participar nas decisões atinentes à terapêutica a seguir, com respeito, obviamente, pela independência e autonomia técnica do médico.

  7. Mas também é verdade que se não está esclarecido tem o dever de informar o médico sobre as suas dúvidas, para que este as possa esclarecer.

  8. A intervenção do STJ na decisão da matéria de facto está limitada aos casos previstos nos artigos 674.º, n.º 3 e 682.º, n.º 3, do CPC, o que exclui a possibilidade de interferir no juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como são os depoimentos testemunhais e documentos sem força probatória plena.

  9. Pode, contudo, este douto Tribunal controlar as decisões sobre a matéria de facto ao nível, nomeadamente, da sua coerência e logicidade.

  10. Consequentemente, no âmbito deste controlo, cabe-lhe sanar as contradições que se...

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