Acórdão nº 9526/10.7TBVNG.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 09 de Novembro de 2017

Magistrado ResponsávelSOUSA LAMEIRA
Data da Resolução09 de Novembro de 2017
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO l.

No Tribunal da Comarca do Porto - V. N. Gaia, Instância Central - 3ª Secção Cível - J3, AA intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra BB e Companhia de Seguros CC, S.A., alegando que: No dia 11-10-2007, seguia tripulando o seu motociclo pela EN 222, em V. N. Gaia, quando foi embatido pelo veículo ...-BI-..., conduzido por BB que, mudando de direcção para a esquerda, não atentou na sua passagem, embatendo contra si.

Daí resultaram danos diversos, incluindo lesões físicas que culminaram na amputação da sua perda esquerda.

Tendo já sido indemnizado por alguns danos, já que o acidente o foi também de trabalho, pretende agora a indemnização dos restantes.

Conclui pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia de € 1.181,24, a título de indemnização pelos danos patrimoniais que lhe advieram de um acidente de viação de que foi vítima e cuja responsabilidade imputa ao referido BB, que conduzia um veículo seguro na ré CC. Mais pede que sejam condenados a pagar-lhe quantias a liquidar futuramente, relativas aos custos que terá de suportar com o recurso a serviços de terceira pessoa, acompanhamento fisiátrico e ortopédico e despesas com medicamentos e outros encargos que se venham a revelar necessários; e ainda a pagarem-lhe a quantia de € 200.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais.

  1. Contestaram ambos os réus alegando, em resumo, que a culpa do acidente deve ser imputada exclusivamente ao autor, já que tripulava o motociclo pela berma da estrada, ultrapassando pela direita os carros que estavam sobre a faixa de rodagem, designadamente um que parara para permitir ao veículo BI a conclusão da manobra pretendida.

    Impugnaram ainda os danos invocados.

  2. Instruído o processo, foi proferido despacho saneador, procedeu-se ao julgamento, tendo sido de seguida proferida sentença que concluiu pela repartição de culpas entre os dois condutores, quanto à produção do acidente, na proporção de 40% para o autor e de 60% para o condutor do BI.

    Contabilizando os danos não patrimoniais em 60.000,00€ e os patrimoniais em € 1.181,24, condenou a ré CC a pagar ao autor a quantia de 36 709,00 (trinta e seis mil setecentos e nove euros), bem como as despesas, a liquidar, que o Autor venha a suportar, decorrentes do acompanhamento fisiátrico e ortopédico de que necessita no futuro, designadamente despesas médicas e medicamentosas, despesas com exames de diagnóstico e com tratamentos fisiátricos, na proporção de 60% do respectivo quantitativo, até limite do capital seguro (tomando-se em consideração a condenação liquida ora proferida).

    O 1º Réu BB foi condenado a pagar, na mesma proporção de 60%, o valor dessas mesmas despesas que venha a exceder o valor do capital seguro, sendo caso disso.

  3. Inconformada com a decisão, foi interposto recurso, pela ré CC, que insistiu na responsabilização exclusiva do autor pela produção do acidente, ou, no limite, pela imputação do mesmo ao seu segurado, mas num grau de culpa não superior a 10%. Também impugnou o valor da indemnização atribuída.

    O Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 21 de Fevereiro de 2017, decidiu «julgar parcialmente procedente a presente apelação, em consequência do que substituem a decisão recorrida por outra nos termos da qual condenam a ré a pagar ao autor a quantia de 12.236,25€ (doze mil duzentos e trinta e seis euros e vinte e cinco cêntimos), correspondente à percentagem de 20% do montante adequado à indemnização dos danos não patrimoniais e patrimoniais por si sofridos e que eram objecto do pedido.

    Em tudo o mais se manterá a decisão recorrida, mas com a limitação da responsabilidade da ré apelante a uma proporção de 20%, nomeadamente quanto à respectiva condenação a pagar ao autor o valor a liquidar em ulterior incidente de liquidação, referente a despesas decorrentes do acompanhamento fisiátrico e ortopédico de que necessite, designadamente despesas médicas e medicamentosas, despesas com exames de diagnóstico e com tratamentos fisiátricos, até limite do capital seguro e tomando-se em consideração a condenação liquida ora proferida».

  4. Inconformado, o Autor, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou as seguintes conclusões: 1ª.

    Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido nos autos supra e à margem referenciados, por entender o Recorrente que o mesmo padece das nulidades previstas no art. 615°, n° 1. als. c) e d) do C.P.C, ou — ainda que assim se não entenda — que os factos dados como provados não são idóneos a sustentar a decisão do Tribunal recorrido; 2ª.

    Nos termos da disposição conjugada dos arts. 607°, n.os 3 e 4 com os arts. 615°, n° 1, al. c) - a contrario sensu - e d), todos do C.P.C., a decisão a proferir tem de assentar na factualidade tida por demonstrada nos autos, não sendo lícito ao Tribunal julgar a causa com fundamentos diversos dos oferecidos em tal contexto; 3ª.

    Tendo o Tribunal da Relação mantido, na íntegra, a decisão relativa à matéria de facto proferida em primeira instância, em nenhum ponto de tal decisão se teve por demonstrado - porque assim não ocorreu - que o Autor tivesse atravessado qualquer espaço de berma delimitado por linha contínua, nem tão pouco se apurou que o Autor tivesse deixado de ingressar na hemi-faixa direita da faixa de rodagem principal da EN222 por forma a, posteriormente, aceder à via onde acabou colhido pelo Réu BB, factualidade que também não foi alegada por qualquer das partes; 4ª.

    Porque resulta evidente do douto Acórdão em crise que a convicção do Tribunal da Relação assentou em factos arredados da discussão promovida em primeira instância e não demonstrados nos autos, existe uma contradição entre os factos provados e a fundamentação da decisão proferida, que (também) se debruça sobre questão que não foi chamada a conhecer, razão pela qual a mesma decisão padece das nulidades previstas no art. 615°, n° 1, als. c) e d) do C.P.C. - vício que deverá ser expressamente declarado, com as legais consequências; 5ª.

    A co-responsabilização do Autor pelo evento em apreço apenas lhe podia ser imputada se o mesmo tivesse infringido as normas de circulação estradal e se o acidente se tivesse verificado por força dessa mesma infracção; 6ª.

    Como bem julgou o Tribunal de primeira instância, a via em que o Autor circulava e foi colhido configura uma «'Via de trânsito' - zona longitudinal da faixa de rodagem destinada à circulação de uma única fila de veículos», conforme descrita na actual al. u) do art. 10 do CE. (anterior al. t), a que expressamente se reporta a decisão de primeira instância), carecendo de fundamento a conclusão nos termos da qual tal qualificação "pressupunha necessariamente a classificação da área asfaltada em questão como uma faixa de abrandamento"', 7.

    Pese embora a determinação das condições de circulação de uma determinada via só possa ser achada através da respectiva qualificação jurídica nos termos da lei - e não através da aplicação do regime das vias adjacentes ou das linhas que as delimitam —, a decisão em crise não oferece à via descrita no ponto 1.7 dos factos provados qualquer qualificação (ao abrigo das especificadas no art. 10 do CE.) da qual se possa retirar o regime jurídico aplicável à respectiva circulação; 8ª.

    A regra de que o Tribunal da Relação se socorre para apreciar a presente causa - art. 60° do RST - só se reporta ao atravessamento da linha descontínua que separa a hemi-faixa direita da EN222 da via descrita no ponto 1.7 dos factos provados, nada adiantando quanto às condições de circulação desta última via, o que impede o raciocínio do Tribunal recorrido, que pressupõe - sem fundamento legal - que a condução na via paralela à EN 222 estava vedada pela natureza da mesma; 9ª.

    A linha descontínua que separa a hemi-faixa direita da EN 222 da via descrita no ponto 1.7 dos factos provados não se cinge ao local de acesso às instalações da EE e à Travessa dos Emigrantes, acompanhando, em paralelo, a referida hemi-faixa ao longo de vários metros, o que força a conclusão de que a mesma linha não pretende demarcar - como em muitos casos sucede - um concreto ponto de atravessamento de uma linha contínua, mas sim ladear toda uma outra zona de circulação - a melhor descrita no ponto 1.7 dos factos provados - permitindo o seu atravessamento em toda a sua extensão; 10ª.

    O Autor poderia transpor a linha descontínua que separa a hemi-faixa direita da EN222 da via descrita no ponto 1.7 dos factos provados em qualquer ponto, não lhe podendo ser imputada qualquer conduta culposa com tal fundamento; 11ª. Em nenhum dos pontos da decisão de facto se concretiza em que momento o Autor ingressou na via em apreço - se imediatamente antes da ocorrência do sinistro, se vários metros atrás -, o que sempre impediria a censura da respectiva conduta com base em tal circunstância, censura que o Tribunal da Relação formulou com recurso a factualidade não demonstrada nos autos; 12ª.

    Mesmo partindo dos (equívocos) pressupostos de facto em que o Tribunal de recurso fez assentar a respectiva decisão, no momento do sinistro, o Autor não efectuava qualquer manobra, limitando-se a prosseguir na via em que se encontrava em direcção à via que surgia defronte (Travessa dos Emigrantes), não podendo a respectiva conduta ser sancionada, assim - como foi -, por alegada inobservância do dever previsto no art. 43°, n° 1 do CE.; 13ª.

    E mesmo que se considerasse que o Autor havia ingressado em transgressão na faixa em que se deu o sinistro - nos termos (equivocamente) explicitados no douto Acórdão em crise -, tal circunstância nunca poderia ter-se por determinante da ocorrência do sinistro, atendendo a que "foi -repete-se - o condutor do BI que, não detectando a aproximação do motociclo - o que lhe era exigível, naquelas particulares circunstâncias e nada revela não lhe ter sido possível - avançou e foi colher o motociclo, que ali circulava (cfr. douto Acórdão recorrido)...

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