Acórdão nº 895/14.0PGLRS.L1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 11 de Outubro de 2017

Magistrado ResponsávelMANUEL AUGUSTO DE MATOS
Data da Resolução11 de Outubro de 2017
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça: 1. RELATÓRIO 1.

O arguido AA interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 5 de abril de 2016, transitado em julgado, que negara provimento ao recurso que interpusera do acórdão do Tribunal Coletivo da Instância Central – 1.ª Secção Criminal da Comarca de Lisboa que o condenara como autor material de crime de abuso sexual de criança p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, e como autor material de um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 171.º, n.os 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, nas penas de 5 anos de prisão e de 8 anos e 6 meses de prisão, tendo sido condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 10 anos de prisão.

Alegou então que o mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado, «encontra-se em oposição com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07/02/2011, proferido no âmbito do Processo n.º 224/07.0GAPTL.G, já transitado em julgado, disponível em http://www.dgsi.pt, sobre a mesma questão de direito e ao abrigo da mesma legislação», pois que: «no acórdão recorrido estava em causa que não foram lidas em julgamento, nem se encontram transcritas as declarações para memória futura da ofendida BB, tendo-se decidido que "... garantindo essencialmente o contraditório, naturalmente que as declarações para memória futura podem ser levadas em linha de conta em julgamento, independentemente da sua leitura ..." e que " ... Não corresponde, assim, à realidade que o Tribunal a quo tenha, de alguma forma, baseado a sua decisão em prova, por violação dos princípios da oralidade e da imediação, consagrados no art. 355º do C.P.Penal." (…) Porém, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07/02/2011, proferido no âmbito do Processo n.º 224/07.0GAPTL.G, já transitado em julgado, decidiu que: "...os depoimentos para memória futura não podem ser excluídos em audiência de julgamento do contraditório, do exame critico dos sujeitos processuais, não bastando que estes tenham conhecimento das declarações prestadas antecipadamente para memória futura.", e como tal "...Para poderem ser tomadas em consideração na formação da convicção do Tribunal, as declarações para memória futura devem ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento ...", decidindo assim que "... Perante o incumprimento do art. 356°, n.º 2, al. a) do C.P.Penal ocorre violação do disposto no art. 355º do C.P.Penal, ou seja, valorou-se um meio de prova que a lei não permite."».

  1. Por acórdão de 11 de janeiro de 2017, o Supremo Tribunal de Justiça julgou verificada a oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão apresentado como fundamento, proferido pelo Tribunal da relação de Guimarães, em 7 de fevereiro de 2011, no âmbito do processo n.º 224/07.0GAPTL.G, e ordenou o prosseguimento do recurso, nos termos do artigo 441.º do Código de Processo Penal, doravante CPP.

  2. Notificados os sujeitos processuais, nos termos e para os efeitos do artigo 442.º, n.º 1, do CPP, foram apresentadas alegações, quer pelo arguido, quer pelo Ministério Público.

    3.1.

    O arguido rematou as suas alegações com as conclusões que se transcrevem: «CONCLUSÕES 1 – O acórdão recorrido viola o disposto nos arts. 355.º, 356.º, n.º 2, al. a) e 125.º do CPP e o art. 32.º, n.º 5 da CRP, e ainda o artigo 327.º, n.º 2 também do CPP, numa interpretação extensiva.

    2 – Atento [o disposto] nos artigos 355.º, 356.º, 2, al. [a)], em que se manifesta o princípio da imediação e do contraditório, as declarações para memória futura [têm] obrigatoriamente de ser ouvidas e examinadas em audiência de discussão e julgamento para que possam ser valoradas.

    3 – O facto de as declarações para memória futura serem prestadas perante o juiz de instrução, que não é o mesmo do julgamento, indicia de forma clara a violação do princípio da imediação.

    4 – O ficheiro áudio onde constam as declarações para memória futura da lesada BB não são um documento em si, mas o documento é o suporte das declarações.

    5 – O tribunal a quo fundou a sua decisão em matéria de facto dada como provada essencialmente com base nas declarações para memória futura da ofendida, valorando deste modo prova que não foi produzida em audiência.

    6 – Tendo-se valorado um meio de prova que a lei não permite, o que se configura como uma nulidade, nos termos do artigo 122.º, 1 do CPP, pelo que tornam inválido o ato em que ocorreram, e os atos subsequentes que o considerem.

    7 – Assim sendo o acórdão condenatório é nulo, assim como todo o julgamento efetuado.

    Nestes termos (…) deverá ser uniformizada a jurisprudência discordante atrás identificada, no sentido de estabelecer que as declarações para memória futura só poderão valer em julgamento, nomeadamente para efeitos da formação da convicção do Tribunal, se tiverem sido lidas, vistas ou escutadas em audiência de discussão e julgamento, e julgando nulo e de nenhum efeito o acórdão recorrido e o correspondente julgamento.» 3.2.

    O Ministério Público formulou as seguintes conclusões, mantendo-se os trechos destacados e em itálico no original: «CONCLUSÕES 1 - A tomada de declarações para memória futura é admitida em situações em que tomar declarações à pessoa se torna, previsivelmente, muito difícil ou impossível ou em que, em função da natureza dos crimes, é necessária uma especial proteção à vítima atendendo à sua particular vulnerabilidade 2 - O recurso a esta produção antecipada de prova visa garantir a aquisição e validação da prova, sob pena da sua irremediável perda.

    3 - O instituto tem subjacente o interesse público na descoberta da verdade material.

    4 - As declarações para memória futura são uma exceção ao princípio da imediação sendo através deste que o juiz usufrui de todas as vantagens ligadas à relação de proximidade comunicante entre os intervenientes processuais.

    5 - O artº 355º nº 1 do CPP estabelece a regra de que, para efeito de convicção do tribunal, são proibidas provas que não sejam produzidas ou examinadas em audiência.

    6 - No artº 355º nº 2 estabelecem-se exceções à regra do nº 1 donde decorre, em conjugação com o artº 356º, que as provas contidas em atos processuais cuja leitura seja permitida – como sucede com as declarações para memória futura - valem em julgamento, para o efeito de formação da convicção do tribunal, mesmo que não tenham sido produzidas em audiência.

    7 - A leitura de declarações tomadas para memória futura é permitida mas não é obrigatória (artº 356º nº 2 alª a) do CPP).

    8 - Não decorrendo, implícita ou expressamente, da lei a obrigatoriedade da leitura de tais declarações mas uma mera faculdade, seria uma contradição manifesta com o disposto no artº 355º nº 2 fazer depender a validade dessa prova da sua leitura em audiência.

    9 - O direito de defesa do arguido, em particular o contraditório, em nada fica prejudicado pelo hiato temporal que se verifica entre o momento em que são colhidas as declarações para memória futura e a audiência.

    10 - Na audiência de julgamento, mesmo que as declarações para memória futura não sejam lidas, o arguido, tendo conhecimento das mesmas, pode contrariá-las, infirmar o que foi dito, descredibilizar, reforçar ou confirmar tais declarações podendo também requerer a inquirição de outras testemunhas ou de outros meios de prova.

    11 - O princípio do contraditório prende-se unicamente com a necessidade de evitar que concorram para a formação do tribunal provas que não tenham sido apresentadas e juntas ao processo pelos intervenientes e não que tenham de ser obrigatoriamente reproduzidas em audiência ou formalmente apresentadas.

    12 - O ato de tomada de declarações para memória futura é uma verdadeira ‘antecipação parcial da audiência de julgamento; presidida pelo juiz; com conhecimento do dia, hora e local da prestação de depoimento ao Ministério Público, arguido, defensor e representantes do assistente e partes civis; com a comparência obrigatória do Ministério público e do defensor, ainda que não haja arguido constituído; e com obediência ao princípio do contraditório, onde aqueles podem aqueles fazer diretamente perguntas.

    13 - Não afeta as garantias de defesa do arguido o facto de serem tomadas em conta, para efeitos de convicção do tribunal, depoimentos prestadas para memória futura sem que os autos que os integram sejam lidos e examinados em audiência.

    14 - A mera leitura, em audiência, nada acrescenta e nem nada subtrai ao normal desenrolar do julgamento.

    Nestes termos, deve ser fixada jurisprudência no seguinte sentido: “As declarações para memória futura, tomadas nos termos do artigo 271º do CPP, para que possam ser tomados em conta e valorados como meio de prova, não têm de ser lidas em audiência de julgamento, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º e 356º, nº 2, alínea a) do CPP”.

    » 4.

    Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência do Pleno das Secções Criminais, cumprindo decidir.

    II - FUNDAMENTAÇÃO 1. Oposição de julgados 1.1.

    Como se referiu, em conferência da 3.ª Secção, foi deliberado que estavam reunidos os pressupostos formais e substanciais para admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

    Quanto aos pressupostos de natureza formal, foi reconhecida a legitimidade do recorrente (artigo 437.º, n.º 5, do CPP), que o recurso foi interposto, em 24 de maio 2016, dentro do prazo de 30 dias, estabelecido no artigo 438.º, n.º 1, do CPP, contado da data do trânsito do acórdão recorrido verificada em 11 de maio de 2016, e que o acórdão indicado como fundamento transitou em julgado.

    Quanto aos pressupostos de natureza substancial, indagou-se da oposição de acórdãos, identidade da legislação à luz da qual as respetivas decisões antagónicas foram proferidas e uma conjugação factual idêntica em ambos os acórdãos.

    Como decorre do artigo 692.º, n.º 4...

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