Acórdão nº 1537/15.2T8SNT.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 10 de Outubro de 2017

Magistrado ResponsávelPEDRO LIMA GONÇALVES
Data da Resolução10 de Outubro de 2017
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1. AA e BB intentaram, no Tribunal Administrativo e Fiscal de ..., ação administrativa comum contra Estado Português, Ministério da Justiça, Ministério da Administração Interna, pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento de uma indemnização, por danos não patrimoniais, no valor de €500 000,00, acrescidos de juros de mora à taxa legal a contar desde a citação.

Alegam, em síntese, que: - Constituíram-se assistentes no processo n.º 405/07.6GDMFR que correu termos na Comarca da Grande Lisboa Noroeste, juízo de Grande Instância Criminal, 1.ª secção, em que foi arguido CC, ..., acusado da prática de um crime de homicídio na forma consumada na pessoa do DD filho dos autores; - No âmbito do referido processo o arguido foi submetido às medidas de coação de proibição de se ausentar de Portugal e de apresentação periódica bissemanal no posto policial da respetiva residência, tendo a decisão instrutória confirmado as medidas de coação aplicadas ao arguido; - Realizado o julgamento o arguido foi condenado na pena de 12 anos de prisão efetiva pela prática do crime de que vinha acusado, sendo que o Acórdão da Relação de Lisboa proferido no âmbito do recurso interposto pelo MP, ordenou a repetição do julgamento; - Repetido o julgamento foi proferida nova decisão que condenou o arguido na pena de 12 anos de prisão efetiva pela prática do crime de que vinha acusado, sendo que face à interposição de recurso, foi determinado que o arguido aguardasse os ulteriores termos do processo sujeito às medidas já impostas, isto é, TIR, obrigação de apresentação bissemanal e proibição de se ausentar para o estrangeiro; - Em 3 de outubro de 2011 o SEF remeteu aos autos fax informando que em 1 de outubro de 2011 o arguido fora detetado no posto de fronteira quando pretendia embarcar no voo ... com destino ao Rio de Janeiro, tendo o mesmo afirmado que iria regressar a Lisboa em 9 de outubro de 2011; - O arguido embarcou no voo com destino ao Rio de Janeiro, nunca mais tendo regressado a Portugal, não obstante à data estarem em vigor as medidas de coação aplicadas, nomeadamente, a de proibição de se ausentar de Portugal; - O SEF informou os Autores que o arguido saiu porque não constava, em 1 de outubro de 2011, qualquer indicação, no sistema integrado, de que o arguido estivesse sujeito à medida de coação de proibição de se ausentar para o estrangeiro; - Atualmente consta do sistema integrado de informação do SEF o mandado de detenção do arguido para cumprimento de pena; - Toda esta situação gerou nos Autores profunda revolta por verem o seu filho perder a vida e constatarem que o único responsável julgado e condenado pelo homicídio do mesmo fugiu de Portugal, encontrando-se em liberdade em parte incerta, sem cumprir a pena a que foi condenado, apenas e tão só porque o Estado Português e os seus organismos não cumpriram as suas obrigações, permitindo a fuga do arguido; - Esta situação gerou nos autores mal-estar, choque, revolta, angústia, desgosto, temendo os mesmos que o arguido possa nunca vir a cumprir a pena em que foi condenado pela morte do filho de ambos; - O facto de o arguido ter conseguido fugir, vivendo em liberdade por inércia do Estado Português, reflete-se no dia-a-dia dos autores, sentindo-se os mesmos profundamente deprimidos e desmotivados, sem força para o exercício de qualquer atividade profissional, vivendo num estado de profunda tristeza e angústia permanente; - Os Autores nunca mais conseguirão viver em paz sabendo que o arguido fugiu do país, furtando-se ao cumprimento de pena, tudo por responsabilidade do Estado Português.

  1. Citados, os Réus apresentaram contestação, - o Ministério da Administração Interna - Alegou que incumbe ao Ministério Público a defesa do Estado, razão pela qual aderem à contestação a apresentar pelo Digníssimo representante do M.P.

    - o Estado Português, representado pelo Ministério Público - Por exceção, invocando a incompetência do Tribunal administrativo e pugnando pela competência dos Tribunais comuns.

    Por impugnação, invocando: - que a violação que determinou a fuga do arguido se ficou a dever ao Consulado do Brasil em Lisboa que emitiu um passaporte, sabendo e não podendo desconhecer que o passaporte do Arguido havia sido apreendido no cumprimento da medida de coação que lhe foi aplicada; - a exclusão da ilicitude, pela emissão indevida do passaporte, uma situação de erro judiciário e exclusão da culpa ou, a admitir-se a mesma, uma concorrência de culpas.

    - os valores indemnizatórios reclamados são desajustados.

    Conclui pela procedência da exceção invocada, absolvendo-se o R. Estado Português da instância e, assim não se entendendo, deverá a ação improceder com a absolvição do Réu do pedido.

  2. Por despacho de fls. 327, o Tribunal Administrativo e Fiscal de ... declarou-se materialmente incompetente para conhecer dos presentes autos.

  3. Os Autores vieram, por requerimento de fls. 350 e ss. e ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 2, do CPTA, requerer a remessa dos autos para o Tribunal materialmente competente.

  4. Realizou-se a audiência prévia; foi lavrado despacho saneador, que absolveu da instância os Ministérios da Justiça e da Administração Interna, por carecerem de personalidade judiciária; foram fixados o objecto do litígio e os temas de prova.

  5. Realizou-se audiência de julgamento, e foi proferida sentença que julgou a presente ação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, em consequência, condenou o Réu Estado Português a pagar aos Autores AA e BB a quantia de €20.000,00, a que acrescem juros desde a presente data até efectivo e integral pagamento (cfr. fls. 407 a 434).

  6. Inconformado com esta decisão o Réu Estado Português veio interpor recurso para o Tribunal da Relação.

  7. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a julgar procedente o recurso de apelação, e, em consequência, absolveu o Réu do pedido.

  8. Inconformados com tal decisão, os Autores vieram interpor o presente recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões: 1ª. O Recorrente Estado Português violou o disposto no artigo 200.º n.º 3 do CPP e no artigo 212.º n.º 2 alínea c) subalínea ii) da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, estando preenchidos os requisitos legais para a sua responsabilização pelos danos não patrimoniais sofridos pelos Recorridos (vertidos nos factos 25 a 35 dos factos provados), nos termos dos artigos 7.º e 9.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12.

    1. No caso concreto, a terceira diligência cautelar prevista legalmente no artigo 200.º n.º 3 do CPP não foi assegurada, o que possibilitou a fuga do arguido.

    2. Com a sua conduta, o Estado Português não só contribuiu como acabou por permitir que o arguido se ausentasse, furtando-se, assim, ao cumprimento da medida de coação que lhe tinha sido imposto.

    3. A comunicação prevista no artigo 200.º n.º 3 do CPP é essencial e imprescindível para impedir que arguidos se ausentem do país quando estão proibidos de o fazer.

    4. Num quadro de normalidade e de previsibilidade, a comunicação ao SEF teria sido feita.

    5. O que foi anormal e imprevisível foi o SEF não ter sido informado da medida de coação aplicada ao arguido, nos termos plasmados na lei, pois, mesmo na posse de passaporte válido o arguido nunca teria conseguido ausentar-se do território nacional, caso o Tribunal tivesse procedido à comunicação ao SEF a que se encontra obrigado.

    6. O que está em causa na presente lide não é o direito dos Recorrentes à punição do arguido, mas sim o seu direito a que o Estado Português cumpra os dispositivos legais ao seu dispor para garantir que a decisão judicial, seja ela qual for, seja efetivamente aplicada e cumprida.

    7. Os danos sofridos pelos Recorridos deveram-se à perda da confiança na tutela do Estado em fazer cumprir as suas decisões e pela frustração do direito a um julgamento justo e equitativo cujo desfecho o Estado entendeu ser o justo, devido e adequado.

    8. Como bem sustenta a decisão proferida em primeira instância: "No caso, a pena de prisão foi determinada em função das necessidades preventivas e não em nome de um qualquer direito das vítimas à punição.

    O que falhou foi a atuação das instâncias formais de controlo - e os sujeitos processuais têm direito a que as instâncias formais de controlo funcionem como deve ser. Por esse falhanço deve o Estado ser responsabilizado. Não em nome de um direito à punição das vítimas, mas de um direito à tutela da confiança, salvaguardando os sujeitos contra atuações injustificadamente imprevisíveis daqueles com quem se relacionam, neste particular dos operadores no sistema de justiça.

    ", 10ª.

    "Se as partes não podem elas próprias, pelas suas próprias mãos, fazer justiça e se essa tarefa de aplicar a justiça cabe aos tribunais, então - no reverso - têm essas mesmas partes que recorreram ao Tribunal o direito de exigir que o Tribunal pugne pelo cumprimento das decisões que aqueles lhe confiaram." 11ª.

    Estão, assim, preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, atenta a sua conduta omissiva do cumprimento de obrigações legais que sobre si impendem, conduta que, além, de ilícita, teve uma repercussão direta nos autores, conforme provado e bem sustentado em primeira instância.

    Concluem pela procedência do recurso.

  9. O Recorrido Estado Português contra-alegou, pugnando pelo infundado da revista.

  10. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

    1. Delimitação do objeto do recurso Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelos Autores / ora Recorrentes decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões: - mau funcionamento do sistema de justiça; - violação do princípio da confiança; -...

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