Acórdão nº 1454/09.5TVLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 31 de Janeiro de 2017

Magistrado ResponsávelROQUE NOGUEIRA
Data da Resolução31 de Janeiro de 2017
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Revista nº1454/09.5TVLSB.L1.S1 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1 – Relatório.

  1. AA, BB, CC, DD e EE, os 3 últimos menores, representados por seus pais, 1º e 2º AA., vieram propor, contra FF, GG, SA, HH, SA, e II, SA, acções seguindo forma ordinária, posteriormente apensadas e distribuídas à 1ª Vara Cível de …, pedindo a condenação do 1º R. a pagar aos AA. a quantia total de € 1.200.000, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação, a título de indemnização por danos morais, decorrentes da publicação pelo 1º R., em livro e DVD, da sua versão dos factos relativos ao desaparecimento da menor, CC, ora 3ª A. e, bem assim, a proibição da venda, edição ou divulgação, por qualquer dos RR., do livro e DVD em causa.

    Contestaram todos os RR., impugnando a responsabilidade que lhes é imputada, concluindo pela improcedência da acção.

    Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando o 1º R. a pagar a cada um dos 1º e 2º AA. a quantia de € 250.000,00, acrescida de juros legais, e proibindo os 1º, 2º e 3º RR. de proceder à venda, execução de novas edições e cedência de direitos de autor relativos ao livro e DVD em causa, tendo absolvido esses RR. do demais peticionado e a 4ª R. da totalidade do pedido.

    Na sentença da 1ª instância concluiu-se que o livro escrito pelo réu FF, a adopção desse livro para o audiovisual (documentário) e a entrevista dada pelo mesmo réu são ilícitos, nos termos do art.484º, do C.Civil, e que se verificam os demais pressupostos da obrigação de indemnizar previstos no art.483º, do mesmo Código, pelo que foram os pedidos formulados nas acções julgados parcialmente procedentes, nos termos atrás referidos.

    Para se concluir pela ilicitude daquelas condutas, teve-se em consideração o conteúdo do livro, documentário e entrevista, bem como o conflito entre a liberdade de expressão e o direito ao bom-nome e reputação dos autores.

    Desenvolveu-se, então, naquela sentença, a seguinte argumentação, que aqui reproduzimos, em parte, por se revelar interessante do ponto de vista da solução que irá ser dada à questão colocada nos autos: «I. Iniciando a discussão, de forma lógica e cronológica, peta análise do livro, releva desde logo estabelecer que não está em causa um escrito de conteúdo informativo.

    Efectivamente, não se encontra no livro o relato, despojado e simples, dos factos do inquérito que correu termos para o apuramento das circunstâncias do desaparecimento da menor CC no dia 3 de Maio de 2007, caso em que nenhum valor acrescentado o mesmo traria à cópia parcial da investigação que a Procuradoria-Geral da República fez distribuir pela Comunicação Social após o arquivamento do inquérito (n°s 65 e 66 da factualidade provada).

    O livro é a manifestação de uma opinião, compreendendo a narração das ilações que o seu autor retira dos meios de obtenção da prova produzidos na investigação, em ordem a formular uma tese, uma hipótese de verificação dos factos.

    A tese é, sinteticamente, a de que não ocorreu um rapto da menor, contrariamente àquela que foi a premissa inicial da investigação criminal e ao que os pais da criança sustentam até à actualidade. Ocorreu, sim, a morte acidental da criança no apartamento do empreendimento turístico, seguida do encobrimento desse evento através da ocultação do seu cadáver e da simulação do referido crime, levados a cabo pelos autores BB e AA.

    Percorrido o texto do livro é-se conduzido pelos dias da investigação desde a noticia do crime, salientando o seu autor, a propósito de cada avanço da linha de tempo, os vários indícios que se oferecem no sentido da referida tese - entre outros, a falta de sinais de arrombamento do quarto e de impressões digitais estranhas aos utilizadores do apartamento (págs. 44 e 48), a presença da imprensa alertada pelo grupo de amigos do casal (pág. 48), o facto de a testemunha-chave JJ afirmar o avistamento de "pseudo-raptor" (JJJ) quando dois outros intervenientes, no mesmo local, nada viram (pág. 51), as inconsistências dos depoimentos e as incoerências desses meios de prova entre si (págs. 53, 57, 59, 144), os depoimentos da família KK (pág. 115) e os indícios recolhidos pela equipa cinotécnica (pág, 157,162,167).

    Uma primeira conclusão é que se o livro trata de uma hipótese de verificação dos factos ou da opinião do seu autor sobre a forma como devem ser lidos os indícios recolhidos na investigação, não há que falar em falsidade, factos inverídicos, assim como não tem, salvo melhor juízo, cabimento a discussão da "exceptio veritatis".

    Os meios de obtenção da prova e os indícios referidos no livro são os do inquérito criminal, tendo resultado a esse propósito demonstrado que os factos de que aquele se ocupa (assim como aqueles referidos no documentário e na entrevista), quando relativos à investigação criminal, são, na sua maioria, factos ocorridos ou documentados no inquérito (nº 80 da matéria provada).

    Discute-se, pois, na acção, a nosso ver, o exercido do direito de opinião do réu naquele contexto.

    Essa natureza de opinião está, de resto, bem patente nas conclusões finais do livro, quando o autor do mesmo afirma: "Para mim e para os investigadores que comigo trabalharam no caso até Outubro de 2007, os resultados a que chegámos foram os seguintes: 1. A menor CC morreu no apartamento ..., da ..., na noite de 00 de … de 2007; 2. Ocorreu uma simulação de rapto; 3. AA e BB são suspeitos de envolvimento na ocultação do cadáver da sua filha; 4. A morte poderá ter sobrevindo em resultado de um trágico acidente.

  2. Existem indícios de negligência na guarda e segurança dos filhos " (nº 24, sublinhado nosso).

    A entrevista dada pelo réu FF ao jornal “LL” e que foi levada à edição de 24 de … de 2008 é uma forma de publicitar o livro e, consequentemente, a tese no mesmo expendida. Nela o réu reafirma a referida tese em tantas proposições quantas as questões que lhe são colocadas: 1° “a menina morreu no apartamento”; 2º os testemunhos de JJ e de AA não são credíveis; 3° há indícios da simulação de crime; 4° houve ocultação do corpo (n° 48) O documentário desenvolve a referida opinião de forma mais apelativa, como é próprio do suporte audiovisual, dando-lhe uma aparência de reconstituição policial dos factos.

    Avança-se da expressão de uma opinião para a tentativa de provar uma tese. É o réu FF que o diz, enquanto narrador, no início do programa: “(...) Nos próximos 50 minutos, vou provar que a criança não foi raptada e que morreu no apartamento de férias na Praia … “ (nº 41, sublinhado nosso).

    No documentário, essa tese afirma-se claramente como a contraversão da hipótese de rapto, como a alternativa verdadeira a esta e ao arquivamento do inquérito por falta de prova. Por isso o repto é "Descubra toda a verdade sobre o que se passou naquele dia. Uma morte que muita gente quer encobrir", acabando o réu a concluir “Tenho a certeza que de esta verdade [a de que CC morreu no apartamento] um dia será apurada. A investigação foi brutalmente interrompida e houve um arquivamento político e precipitado. Há quem esconda a verdade, mas mais tarde ou cedo, o verniz vai estalar e as revelações vão surgir. Só então haverá justiça para CC” (nºs 41 e 42).

    Em qualquer dos suportes - livro, entrevista, documentário - procura-se que a tese de facto expendida seja apreendida como a versão real dos factos, por contraponto à teoria do rapto sustentada inicialmente na investigação e mediatizada pelos autores AA e BB. A mesma tese é sustentada ainda como a verdade que se oculta por detrás de um arquivamento determinado por motivos políticos e por subserviência às autoridades britânicas.

    É esse, afigura-se, o sentido que o leitor médio confere ao título "… a Verdade da Mentira", sendo a "verdade" a tese do livro e a "mentira" a versão do rapto.

    Ora, a tese de que a menor faleceu acidentalmente no apartamento e que esse facto foi ocultado pelos pais, que difundiram e alimentaram, para o iludir, uma hipótese de rapto, não é uma novidade do livro, da entrevista ou do documentário.

    Essa teoria dos factos provém da própria investigação, está plasmada no relatório do Inspector-Chefe MM (n° 9), foi uma linha prosseguida no inquérito (n°s 10 e 11), determinou a constituição dos autores AA e BB como arguidos e foi colocada ao alcance da Comunicação Social, e logo do público em geral, através da disponibilização da cópia do inquérito (nºs 65 e 66).

    Questiona-se então qual a diferença entre afirmar-se, como se fez a determinado passo da investigação ou como fazem vários comentadores, que existem indícios de morte acidental, de ocultação do cadáver e de simulação de crime e sustentar-se esse opinião como o fez o réu FF naqueles três suportes.

    Existem um aspecto que se destaca nessa comparação e ele é a relação particular entre o réu FF e a investigação.

    O referido réu não está para o inquérito como um mero comentador do "fait divers" criminal, um escritor de intrigas policiais ou um criminologista. Para os efeitos que nos ocupam e no que obviamente contribui para a autoridade e credibilidade da sua opinião, o réu foi o coordenador da investigação criminal do desaparecimento de CC entre o dia desse evento e 2 de Outubro de 2007. é esse particular aspecto conjugado com outros que dele são acessórios - como é a coincidência temporal entre o arquivamento do inquérito, de um lado, e o lançamento do livro, publicação da entrevista e venda do livro, de outro - são aspectos que fazem parte da discussão sobre o modo de resolver, no caso concreto, o conflito entre o direito do réu e os direitos dos autores.

    II. No cerne da acção está uma situação de conflito prático entre os direitos ao bom nome e reputação dos autores AA e BB (atravessados pela presunção de inocência de que nunca deixaram de beneficiar) e a liberdade de expressão do réu FF, na concreta vertente do direito à opinião que lhe assiste.

    A protecção legal desses direitos dos autores tem a sua sede primeira na Declaração Universal dos...

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