Acórdão nº 200/11.8TBFVN.C2.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 02 de Fevereiro de 2017
Magistrado Responsável | ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA |
Data da Resolução | 02 de Fevereiro de 2017 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Relatório I – AA, residente em …, Oeiras, intentou acção declarativa de investigação de paternidade, sob a forma de processo ordinário, contra: 1 - BB, residente em …; 2 - CC, residente em Lisboa; 3 - DD, residente em …; 4 - EE, residente em Santa …; 5 - FF, residente em Marvila; 6 - GG, residente em C…; e 7 - HH, residente em Lisboa, todos estes na qualidade de únicos herdeiros de II, falecido em 01/10/2009, alegando, em síntese, que: Entre Janeiro de 1946 e Julho de 1947, a sua mãe – JJ – e II estabeleceram uma relação amorosa, durante a qual mantiveram relações sexuais com cópula completa.
Fruto dessas relações veio a nascer, em 14/12/1947, a Autora, sendo, por isso, filha biológica daquele.
A sua mãe, já falecida, nunca lhe transmitiu a identidade do seu progenitor, apesar das suas insistentes e reiteradas tentativas nesse sentido.
Só em Março de 2010 foi informada por uma prima de que o seu pai tinha falecido no dia 1 de Outubro de 2009, no Lar de Idosos da Santa Casa da Misericórdia de …, e que se chamava II.
Após ter tomado conhecimento da sua paternidade, deslocou-se a F…, onde a referida relação entre sua mãe e o dito progenitor se desenvolveu, tendo só então tido ocasião de falar com vizinhos e familiares deste, contemporâneos dos ditos acontecimentos, de quem soube o dito passado.
Com tais fundamentos concluiu por pedir a declaração de que é filha biológica de II, falecido a 1 de Outubro de 2009.
Os Réus, regularmente citados, ofereceram contestação conjunta em que, além de arguirem a litispendência entre esta acção e aquela que pendia no extinto Tribunal da Comarca de Figueiró dos Vinhos com o número 125/10.4TBFVN, bem como a caducidade desta acção, por instaurada mais de 10 anos após a maioridade da Autora, impugnaram também a versão factual narrada na petição.
A Autora apresentou réplica, pugnando pela improcedência de ambas as deduzidas excepções e invocando, em particular, a inconstitucionalidade do prazo de investigação da paternidade previsto no artigo 1817º, nº 1, do Código Civil, na redação introduzida pela Lei nº 14/2009, de 1 de Abril.
A instância foi suspensa até à decisão da aludida acção (125/10.4TBFVN) que terminou pela absolvição da ali ré, a Herança jacente por óbito de II.
Finda essa acção, foi proferido saneador a refutar a excepção de litispendência e a julgar procedente a excepção de caducidade, com a consequente absolvição dos Réus do pedido.
Inconformada, a Autora interpôs recurso, tendo a Relação de Coimbra, por acórdão de 15 de Janeiro de 2013, revogado a decisão e ordenado o prosseguimento da acção, com a seleção da matéria de facto tida como relevante para efeitos de instrução e de discussão da causa, incluindo a aplicabilidade ou não, ao caso, do disposto no artº 1817º, nº 3, als. b) e c) do Cód. Civil.
Saneado o processo e relegada para final a apreciação da excepção de caducidade, procedeu-se à selecção da matéria de facto, com enunciação dos factos assentes e organização da base instrutória, sobre o que incidiu reclamação de ambas as partes, parcialmente atendidas (cfr. fls. 418 a 420).
Realizadas duas perícias médicas, a última a material biológico colhido ao cadáver do falecido II (cfr. fls. 688, 692, 710 e 711), procedeu-se a julgamento, seguido de prolação de sentença a decidir de facto e de direito, datada de 16.11.2015, que, após refutar a caducidade, o abuso de direito e a inconstitucionalidade invocadas, julgou a acção procedente e declarou a Autora filha de II.
Inconformados com tal decisão, apelaram os Réus, sem êxito, tendo a Relação de Coimbra confirmado a sentença da 1ª instância e, persistindo irresignados, interpuseram recurso de revista excepcional (admitido pela formação prevista no art.º 672º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil), finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões[1]: 1 - As instâncias não podem, relativamente a uma ação instaurada apenas em 27/05/2011 (quando a Autora já tinha nascido em 14/12/1947 e o investigado falecido em 1/10/2009), limitar-se a referir que "até Março de 2010 a autora pouco ou nada sabia acerca do seu progenitor".
2 - Não só por se estar perante uma proposição que, manifestamente, posterga as regras da lógica (concretamente, o princípio da não contradição).
3 - Mas também, e ipso facto, ela não afirmar nenhum facto (precisamente, por, sendo este "algo que acontece no mundo", nada poder ter acontecido que seja e não seja ao mesmo tempo) e ser, consequentemente, falsa.
4 - A lei distingue entre o caso julgado material e o caso julgado formal, conforme a sua eficácia se estenda ou não a processos diversos daqueles em que foram proferidos os despachos, as sentenças ou os acórdãos em causa.
5 - O intérprete deve partir do texto e do seu sentido perfunctório, liminar e heurístico para através de adequada hermenêutica jurídica alcançar o real e essencial pensamento, a ratio e teleologia do quid interpretativo, pois que só assim se consegue a finalidade suprema a alcançar pela aplicação concreta do direito: a realização efetiva da justiça material.
6 - Resultando do acórdão da Relação de Coimbra de 15/01/2013, reportado a este processo, que a ação deve prosseguir, "com a seleção de matéria de facto alegada pelas partes e tida como relevante para efeitos de instrução e de discussão da presente causa,..., com vista a permitir-se a produção de prova que no caso vier a caber e a discutir-se, a aplicabilidade ou não, ao caso, do disposto no artº 1817s, nº 3, ais. b) e c) do C. Civil" é inequívoco que a questão sobre a aplicação da segunda parte do nº. 1 deste artigo não pode voltar a discutir-se, sob pena de violação do caso julgado formal, que o objeto do litígio ficou delimitado à seleção e discussão da referida matéria, com o consequente afastamento da possibilidade de se poder curar do prazo de 10 anos do citado nº. 1.
7 - Este prazo é suficiente para o exercício ponderado do direito de propor a ação de investigação de paternidade, não exigindo o princípio constitucional da proteção do direito fundamental à identidade pessoal a imprescritibilidade desse tipo de ação.
8 - A Lei 14/2009 entrou em vigor em 2/4/2009 e o investigado faleceu em 1 de Outubro de 2009, estando, já, em vigor os novos prazos.
9 - O DL 47344, de 25/11/1966, que aprovou o Código Civil de 1966 revogou o anterior Código Civil, designado Código Civil de Seabra.
10 - A alteração dos prazos estabelecidos no art.º 1817º do C. Civil, por força da Lei 14/2009, deu resposta à declaração de inconstitucionalidade.
11 - Esta alteração legislativa sofreu forte influência do ordenamento jurídico francês.
12 - Os prazos das alíneas b) e c) do n.º 3 do art.º 1817º do C. Civil devem considerar-se especiais em relação ao prazo geral previsto no n.º 1 desse mesmo artigo.
13 - O prazo da alínea b) do n.º 3 desse artigo incorpora, apenas, a posse de estado, devendo o direito de ação ser exercido, ainda, em vida do investigado.
14 - O prazo da alínea c) do n.º 3 desse artigo visa a cessação involuntária (morte ou perda definitiva de faculdades mentais do investigado) da posse de estado e o conhecimento de escrito ou declaração inequívoca de reconhecimento da paternidade ou, no limite, de factos concretos que viabilizem uma pretensão investigatória.
15 - Pretender-se que os prazos das alíneas b) e c) se referem a quaisquer factos ou circunstâncias genericamente consideradas é subverter a ratio que determinou o instituto.
16 - Tendo-se considerado apenas provado que "até Março de 2010 a autora pouco ou nada sabia do seu progenitor" temos como evidente que esta prova não permite, por si só, a aplicação do disposto no artigo 1817º, n.º 3, alíneas b) e c) do Código Civil.
17 - Importa, por outro lado, notar que a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do art.º 1817º, 2 do C. C. (na redacção anterior) teve como base o facto do investigante só adquirir essa qualidade, por causa do êxito da impugnação com sucesso da paternidade ter ocorrido após o decurso do referido prazo legal.
18 - E que a aplicação dos prazos previstos nas alíneas b) e c) do artº 1817º do C.C. implica a alegação de factos que demonstrem o conhecimento superveniente da cessação voluntária da posse do estado, ou da cessação involuntária (morte do investigado) e conhecimento de documento escrito ou declaração confirmadora da paternidade, ou, ainda, de facto concreto e relevante, não bastando uma mera afirmação equívoca.
19 - Factos que não foram (concretamente) alegados e cuja omissão o Tribunal não pode, como é sabido, suprir, até por os réus não terem podido defender-se deles.
20 - Constitui pressuposto de aplicação do disposto na alínea c) do n.º 3 do art.º 1817º do CC a alegação e prova por parte do autor da investigação de paternidade de que obteve o conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitam e justificam a investigação.
21 - Considerar idóneo o facto de "até Março de 2010 a autora pouco ou nada saber acerca do seu progenitor" é não só ofender as regras da lógica (por violação do princípio da contradição, pois não se pode saber pouco e, simultaneamente, nada saber), como subverter a sistema atual que considera idóneos prazos para a instauração de ações deste tipo.
22 - O mesmo é dizer que "...pouco ou nada saber" não pode, nem deve, ser considerado facto ou circunstância que possibilite e justifique a investigação, tratando-se, apenas, de enunciação não suscetível de prova, já que o facto é algo que acontece no mundo e é impossível acontecer que alguém saiba pouco de algo e simultaneamente nada saiba deste algo.
23 - Deve considerar-se manifestamente extemporânea a acção de investigação de paternidade decorridos que são 63 anos sobre o nascimento da autora e 42 anos sobre a data em que esta - autora - atingiu a maioridade.
24 - Resultando...
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