Acórdão nº 3995/15.6TDLSB-B.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 22 de Fevereiro de 2017

Magistrado ResponsávelPIRES DA GRAÇA
Data da Resolução22 de Fevereiro de 2017
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

* Acordam no Supremo Tribunal de Justiça.

AA, devidamente identificado, mediante petição subscrita pelo seu Exmo. Mandatário, requereu providência de habeas corpus.

No articulado apresentado alega o seguinte[1]: I. Enquadramento 1º.

No dia 8 de setembro de 2016, o Juiz de Instrução Criminal da Comarca de ..., decidiu aplicar a medida de coação prisão preventiva ao arguido AA, ora Peticionário, por o Ministério Publico lhe imputar atividades ilícitas que configuram a suspeita da prática de crimes em concurso efetivo de Associação Criminosa, p. e. p. pelo artigo 89.º, n.º 3 do RGIT, de Contrabando, p. e p. pelos artigos 92.º, n.º 1, al.

  1. e 97.º, al.

  2. do RGIT, e de Introdução Fraudulenta no Consumo Qualificada, p. e p. pelos artigos 96.º, n.º 1, al.

  3. e 97.º al.

  4. do RGIT.

    1. Tendo em conta que os factos descritos pelo Ministério Público e pelos órgãos de polícia criminal constantes dos autos disponibilizados à defesa, em papel e em áudio, e a sua subsunção ao Direito não coincidem com a verdade fático-jurídica, assim como enfermam de nulidade insanável e as provas obtidas deverem ser consideradas prova proibida, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, com os motivos e fundamentos de facto e de direito e respetivas conclusões [cuja cópia se anexa como Doc. 1], e que se dão aqui por reproduzidos.

    2. O Tribunal de Instrução Criminal aplicou ao ora peticionário a medida de coação prisão preventiva sob erro fáctico-jurídico.

    Em síntese, 4º.

    A detenção, efetuada no dia 6 de setembro de 2016, ocorre fora de flagrante delito por não se verificarem quaisquer pressupostos materiais e processuais exigidos pelo artigo 256.º conjugado com os artigos 254.º e 255.º, n.º 1, al.

  5. do CPP e artigo 27.º, n.º 3, al.

  6. da CRP.

    1. Mesmo que fosse admissível a detenção fora de flagrante delito, não se verificaram os respetivos pressupostos materiais e formais – mandado de detenção emitido pela autoridade judiciária competente, in casu, Juiz de Instrução Criminal –, impostos pelo artigo 257.º do CPP e artigo 27.º, n.º 3, al.

  7. da CRP.

    1. A detenção, que precede a aplicação da medida de coação prisão preventiva, está ferida de ilegalidade por violação dos artigos 254.º, 255.º, 256.º e 257.º, todos do CPP e alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 27.º da CRP.

    2. A detenção tem como base diligências processuais ou atos de investigação criminal integrantes do processo-crime, tendo em conta que o inquérito já se encontrava a decorrer, e que, por essa razão e por não existir qualquer periculum in mora, nem se verificar em concreto a indispensabilidade da intervenção imediata dos órgãos de polícia criminal por não estar em perigo a perda ou deterioração da prova[2], impõem a prévia autorização judiciária: in casu, Ministério Público.

    3. Como se pode aferir dos autos e do exposto no recurso [cfr. Doc. 1], a detenção [fora de flagrante delito] tem como base material e processual uma busca não domiciliária ao ...”, a apreensão e a revista ao Peticionário sem a prévia autorização do Ministério Público, como determina o artigo 270.º, n.º 2, al.

  8. e 174.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPP.

    1. A busca não domiciliária ao citado ..., a apreensão e a revista ao Peticionário encontram-se feridas de ilegalidade, por violação dos supracitados preceitos e, por essa razão, estão feridas de nulidade insanável por força do artigo 119.º, alíneas b) e e) do CPP[3].

    2. As apreensões efetuadas no dia 6 de setembro de 2016, por serem um ato sequência da busca não domiciliária, também se encontram contaminadas pela mesma enfermidade jurídico-material e jurídico-processual e pela mesma consequência jurídica de nulidade insanável, por força do n.º 1 do artigo 123.º do CPP.

    3. As provas obtidas, através de meios de obtenção de prova – busca não domiciliária, revista e apreensão – feridos de ilegalidade por não estarem a coberto de uma necessária, imperiosa e prévia autorização judiciária [in casu, Ministério Público] ou de um prévio consentimento do(s) visado(s), são provas proibidas, não podendo ser admitidas e muito menos valoradas em sede de processo-crime, por força do artigo 126.º, n.º 3 do CPP[4]. 12º.

      Como frisado e se pode conferir no recurso em anexo [Doc. 1], o Peticionário encontra-se, assim, preso com base em factos probatórios que não podem nem devem ser admitidos no processo e muito menos valorados no processo-crime, por força do artigo 38.º, n.º 8 da CRP e artigo 126.º, n.º 3 do CPP.

    4. Como escreve Teresa Beleza[5], são provas inúteis, “porque em absoluto não” podem ser utilizadas.

    5. O arguido encontra-se, neste momento, preso preventivamente e a prisão é ilegal por ser motivada por facto pelo qual a lei não permite, nos termos da al.

  9. do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

    1. O fundamento jurídico – prisão ilegal – e o pressuposto – atualidade da prisão (ilegal) – mantêm-se.

      Ou seja, 16º.

      Pode afirmar-se com o STJ que “só é fundamento de habeas corpus a ilegalidade [da prisão] que existir ao tempo da apreciação do pedido”[6].

    2. Que é o caso sub judice.

      Vejamos, II. Pressupostos e fundamentos 18º.

      O habeas corpus é um instituto jurídico de tutela da liberdade face a um abuso do poder manifestado através de uma privação ilegal da liberdade: prisão ou detenção ilegal.

    3. É um instituto que a nossa Constituição consagra e integra, sistematicamente, como um direito fundamental pessoal [artigo 31.º da CRP], sendo, como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, “uma garantia privilegiada do direito à liberdade”[7].

    4. É esse o espírito, reproduzido no direito internacional, do instituto garantia habeas corpus, como se pode ler no n.º 4 do artigo 5.º da CEDH: qualquer pessoa privada da liberdade tem o direito de suscitar que um tribunal se pronuncie “sobre a ilegalidade da respetiva privação e ordene a sua libertação se a detenção for ilegal” [8].

    5. O habeas corpus é um instituto que não se esgota apenas em aferir a ilegalidade da prisão, mas sim é um instituto fundamental para aferir da conformidade da privação da liberdade com a ordem jurídica considerada no seu todo [lei][9].

    6. É um direito fundamental pessoal garantia de um direito fundamental pessoal maior – a liberdade –, considerado e defendido por Kant como o mais elevado valor da justiça.

    7. Como já havia estipulado o legislador, em pleno Estado Novo, o habeas corpus é “um remédio excepcional para proteger a liberdade individual”[10].

    8. O habeas corpus, enquanto “providência extraordinária com natureza de ação autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação da liberdade”[11], é um direito fundamental pessoal que pode (e deve) ser utilizado contra uma privação ilegal da liberdade.

    9. É este o sentido que o legislador constituinte consagrou no artigo 33.º da CRP, afirmando o habeas corpus, expresso nos artigos 220.º a 223.º [em especial, artigos 222.º e 223.º] do CPP, como um direito fundamental constitucional aplicado[12] de afirmação da liberdade pessoal.

      A mais que 26º.

      O processo penal é, como escrevera Henkel, direito constitucional aplicado, devendo aquele se submeter à ordem jurídico-constitucional material legítima, válida, vigente e efetiva e nos princípios gerais e regentes da CEDH[13].

    10. A privação da liberdade resultante de um ato ou de uma decisão, a ilegalidade dessa privação e a atualidade da privação ilegal, são os fundamentos e pressupostos desta petição excecional de reposição da legalidade e da liberdade de uma pessoa.

    11. Como decidiu o STJ[14], “não incumbe à providência do habeas corpus julgar e decidir sobre a natureza dos actos processuais e sobre a discussão que os sujeitos processuais possam desencadear no processo, no momento próprio, quer por via de reclamação de nulidades ou irregularidades, quer por via de recurso das decisões; outrossim, a providência do habeas corpus, dá como assente e, aceita o efeito, que os diversos actos produzam num determinado momento, retirando daí as consequências processuais que tiverem para os sujeitos implicados”.

      Ou seja, 29º.

      Na providência do habeas corpus, “há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma dada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo, valendo os efeitos que em cada momento produzam no processo, e independentemente da discussão que aí possam suscitar a decidir segundo o regime normal dos recursos, produzem alguma consequência que se possa acolher aos fundamentos da petição referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP”[15].

      Pelo que, 30º.

      A “providência de habeas corpus não decide, assim, sobre a regularidade de actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso sobre actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis”.

    12. Pois, é nesta linha jurídico-racional que se prende esta petição.

      Ou seja, 32º.

      A presente petição não coloca em causa a positividade da decisão de aplicação da prisão preventiva do Tribunal de Instrução Criminal, Tribunal a quo.

    13. Não é essa a questão subjacente à prisão preventiva. Não é a positividade da decisão.

    14. É, sim, o substrato material e processual antecedente e fundante da decisão que enferma a decisão de aplicação da medida de coação prisão preventiva e que lhe confere a natureza de ilegalidade da privação da liberdade.

    15. A presente petição coloca em causa o fundamento [substrato] subjacente à decisão, que conduz a uma convicção baseada em factos investigatórios e diligências feridas de nulidade e geradoras de proibições de prova [quer de admissibilidade quer de valoração], ‘prováveis’ provas inúteis no dizer da Catedrática Teresa Beleza.

    16. A decisão do Tribunal a quo, que determina a privação da liberdade através da medida de coação prisão preventiva, assenta num erro antecedente: erro fático-jurídico.

    17. O Ministério Público promove e o Tribunal a quo decide com base numa ideia errónea de que toda atuação policial havia decorrido em flagrante delito, e que, por essa...

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