Acórdão nº 4640/11.4TBRG.G2..S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 05 de Abril de 2016

Magistrado ResponsávelMARTINS DE SOUSA
Data da Resolução05 de Abril de 2016
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM OS JUÍZES NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: I.

AA, S.A.

intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinária, contra BB, S.A., alegando, em suma, que após as partes terem celebrado um contrato de abertura de conta e de depósito bancário, o réu, sem ordem ou autorização da autora, realizou em 2011, a partir dessa conta, três transferências bancárias para empresas estrangeiras, com concessão parcial de crédito não solicitado, no valor global (e com acréscimo das despesas inerentes) de 1.156.850,82 euros.

Pediu, por força da actuação ilícita do réu, que este fosse condenado a reintegrar na conta da autora o valor de 1.156.850,82 euros, acrescido de juros de 3,5% e comissões, ou a reintegrar o valor de 533.044,52 euros, correspondente ao saldo que ali existia, e a reconhecer não ser a autora devedora do valor de 623.805,32 euros, correspondente ao crédito unilateralmente concedido.

Citado, o réu contestou, dizendo, em suma, que as transferências bancárias foram ordenadas pela procuradora da autora, CC, no limite dos poderes que lhe foram conferidos em procuração, tendo originado um descoberto técnico, por ter na base um pedido de incremento de plafond no crédito por conta corrente concedido em 2006, que a ré cobriu concluindo, assim, pela improcedência da acção.

A autora replicou e deferida a intervenção principal e citada, CC apresentou contestação, justificando as transferências bancárias na convicção de lhe terem sido solicitadas telefonicamente pelo presidente do grupo da autora, o que após veio a revelar-se falso, tendo sido vítima de fraude internacional.

Decorridos demais trâmites e realizado o julgamento, foi a acção julgada improcedente.

Apelou a autora e o tribunal da Relação anulou a sentença, determinando a ampliação da base instrutória . Realizado julgamento relativo à matéria aditada, foi novamente a acção julgada improcedente.

A autora apelou e o tribunal da Relação confirmou o decidido. Inconformada, a autora interpôs recurso de revista excepcional que foi admitido pela Formação.

No termo de sua alegação formulou as seguintes conclusões: I. A recorrente interpõe o presente recurso de revista excepcional por estar em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, tratando-se questão especialmente complexa e difícil considerando a integração e interpretação de conceitos indeterminados ou que remetem para diplomas ou conceitos normativos exteriores ao diploma que os consagra, criando um quadro legal que suscita dúvidas profundas na doutrina e jurisprudência - art. 672°, n.º 1, al. a), CPC.

  1. O preenchimento de conceitos indeterminados assume relevo determinante nos presentes autos, concretizando-se como exercício jurídico de detalhada exegese e autêntica questão de direito: a determinação do critério jurídico que haverá de orientar e concorrer para fundamentar a solução jurídica do caso decidendo.

  2. O acórdão a quo discorre, a p. 25, sobre a interpretação dos actos do banco réu e sobre a questão de saber se este agiu com negligência, porquanto a recorrente alega que se a recorrida tivesse consultado a procuração não teria procedido às transferências, fazendo apelo na sua fundamentação ao conteúdo dos conceitos indeterminados patentes nos arts. 73.º e 74.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/1992, de 31 de dezembro, com suas sucessivas alterações, nomeadamente, no dever de procedimento dos administradores e empregados das instituições de crédito com a) diligência, b) lealdade e c) respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados, bem como no seu dever de assegurarem aos clientes d) elevados níveis de competência técnica e ainda ao conceito de movimentação da conta por e) motivo justificado.

  3. A interpretação destes conceitos indeterminados implica a consideração dos cânones interpretativos clássicos, bem como a consciencialização de construções empíricas, económicas, filosóficas, tudo atendendo à suma ideia de Justiça, com o fito de apreciar o grau de diligência requerido à actuação bancária norteado pelos conceitos indeterminados referidos, o que para além de mais se pode repercutir em qualquer litígio futuro com instituições bancárias.

  4. Sucede que apesar de o Tribunal a quo invocar a diligência na actuação bancária concreta, como tendo respeitado conscienciosamente os interesses confiados exercendo elevados níveis de competência técnica certo é que não tratou o aresto de densificar o conteúdo destes conceitos ou de sequer a eles se referir.

  5. Resulta assim da factualidade demonstrada ao longo do processo e desta consideração do Tribunal uma frontal contradição com o preenchimento do conceito de negligência, entendido como a violação de um dever objectivo de cuidado.

  6. O legislador especificou deveres comportamentais legais que as instituições bancárias devem observar e que se prendem com os deveres de cuidado, diligência e know your costumer que não foram observados no caso concreto e que deveriam fundamentar uma pronúncia de actuação bancária negligente.

  7. A diligência na sua formulação mais exigente, o cuidado, a lealdade são conceitos indeterminados cujo preenchimento é auxiliado pela constatação do cumprimento ou não do preceituado nos arts. 74°, 75°, n.02, 76, 118°-A do RGICSF, da Portaria n.º 150/2004, Portaria n.º 292/2011, do RJSP, e dos art.º 2, al. a) e b) e art. 4°, do Aviso do Banco de Portugal n.º 11/95.

  8. Para aferir do preenchimento dos conceitos indeterminados elencados é necessário analisar, desde logo, se a recorrida cumpriu com os deveres específicos de conduta e cuidado que estão a seu cargo. Se esta o não fez, dificilmente se pode defender ter agido com diligência, lealdade, respeito consciencioso dos interesses que lhes estão confiados, elevados níveis de competência técnica, por motivo justificado, e sem negligência. Não o tendo feito, surge a sua responsabilidade nos presentes autos - daí a importância para o caso concreto da questão. Não é possível defender-se que não ocorreu uma actuação negligente sem que tenham sido cumprido os deveres de cuidado especificados pela lei.

  9. E isto por uma razão simples: o fundamento da consagração dos deveres de cuidado e procedimentais a cargo do banco é uma ideia de prudência e gestão antecipatória de risco.

  10. Os deveres de cuidado visam evitar comportamentos danosos de terceiro; sendo observados, retiram a potencialidade danosa de comportamentos arriscados de terceiros. O objectivo da consagração de deveres específicos de conduta é precisamente o de afastar o risco do comportamento de terceiros; independentemente deste, se elevados padrões de cuidado forem observados, qualquer resultado danoso será evitado porquanto a lei concentra a tutela da situação fáctica no comportamento devido por quem está obrigado a determinada conduta e não na sua contraparte. É esta integração do conceito de actuação negligente por parte da recorrida que o Tribunal a quo completamente falhou, e cujo rationale serve de igual modo para a integração do conceito de diligência, cuja impossibilidade de preenchimento implica o desrespeito de normas legais que acarretam a afirmação de conduta negligente por parte da recorrida.

  11. Ao banco não se lhe exige só que esteja convicto da legalidade e possibilidade de ordenamento das mesmas: exige-se-lhe que verifique, de acordo com os mais altos princípios de prudência e exigência técnica em obediência aos interesses do cliente se de jure e não só de facto a transferência pode ser ordenada. Caso contrário, reverte a seu favor a sua negligência, imprudência e incompetência técnica. É a integração daquilo que é exigido ao banco que se cura nos presentes autos.

  12. Há, ainda, uma segunda questão de aturada exegese que se levanta nos presentes autos: a de saber se à responsabilidade do banco pelos fundos confiados ao seu domínio no âmbito da execução de um contrato de depósito e à sua não restituição se deverá aplicar o regime do art. 799.º CCiv. - como fez o acórdão a quo - ou o regime do art. 796.º CCiv. - como o defende variada doutrina e jurisprudência.

  13. Aplicando o art. 796º CCiv. à situação dos autos afirma-se a assumpção do risco de perda dos fundos dominados pelo banco por este, tenha ou não culpa no evento. Ao considerar a relação recorrente-recorrida como uma relação meramente obrigacional, o Tribunal a quo aplica o art. 799º CCiv. com resultado fatalmente distinto: se a recorrida demonstrar que não teve culpa no desaparecimento da quantia, resulta exonerada de qualquer responsabilização.

  14. A teoria do risco pressupõe que as consequências do evento danoso sejam assumidas por quem suporta o risco mesmo que não tenha culpa, a não ser que esta deva ser excluída por aplicação do princípio do concurso de culpas ou que se demonstre que o resultado é inteiramente imputado à conduta dolosa de outra parte. A teoria da responsabilidade contratual implica que demonstrada a ausência de culpa do devedor, este não tem que assumir as consequências da não produção do evento devido. Implica-se uma latitude probatória completamente distinta. Ali, a demonstração de não culpabilidade não exonera o devedor das consequências de verificação do evento responsabilizante - o desaparecimento do dinheiro. Aqui, a demonstração de não culpabilidade permite que este não seja responsabilizado pelo desaparecimento dos fundos. A solução a dar ao litígio é, portanto, neste particular, frontalmente diferente, porque não tendo sido provado dolo ou negligência grave da recorrente, a recorrida deverá reintegrá-la do saldo mobilizado se se aplicar a teoria do risco.

  15. Trata-se, ao fim e ao cabo, de aferir se ao contrato de depósito bancário deverá ser aplicada a teoria do risco obrigacional (art. 795° e 799° CCiv.) ou a teoria do risco real (art. 796° CCiv.), pela qual pugna a recorrente.

  16. Por fim, resta a questão de saber se a actuação de um procurador pode...

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