Acórdão nº 325/14.8JABRG.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Abril de 2016

Magistrado ResponsávelHELENA MONIZ
Data da Resolução14 de Abril de 2016
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I Relatório 1.

No Tribunal Judicial da Comarca de .... (... — Instância Central —... secção criminal — Juiz ...), o arguido AA foi condenado: - pela prática de um crime de violência doméstica na pena de prisão efetiva de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses, nos termos do art. 152.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal (CP), - pela prática de um crime de violação agravada na pena de prisão efetiva de 10 (dez) anos, nos termos do art. 164.º, n.ºs 1, al. a) e 177.º, n.º 1, al. a), todos do CP, e - em cúmulo jurídico na pena única conjunta de prisão efetiva de 11 (onze) anos.

Foi ainda deliberado condenar o demandado AA: - a pagar, ao demandante BB, uma indemnização, pelos danos não patrimoniais, no valor de 50.000,00 (cinquenta mil euros), e - a pagar à assistente CC, nos termos do art. 82.º-A, do Código de Processo Penal (CPP) e art. 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, uma indemnização no valor de € 2.000,00 (dois mil euros), acrescidos de juro de mora desde a data da prolação do acórdão.

Foi ainda ordenada, tendo em conta “a natureza concreta dos factos provados”, “a recolha de amostras biológicas ao arguido, para inserção na base de perfis de ADN, nos termos dos arts. 8.º, n.º 2, e 18.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2008, de 12.02, a efectuar após o trânsito em julgado.

” 2.

Inconformado com a decisão proferida, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de ... que, por acórdão de 16.11.2015, julgou “não provido o recurso”, mantendo integralmente a decisão recorrida.

  1. Vem agora o arguido AA interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e apresentando as seguintes conclusões: «1. Procedeu o Tribunal a quo à alteração de factos que constavam na acusação, despachando no sentido de que não são substanciais, dando cumprimento ao artigo 358.º, do Código de Processo Penal.

  2. Não se conformou e a essa alteração se opôs. e não se conforma, o Recorrente – com o devido e merecido respeito – com tal entendimento.

  3. Como já conhecido, na fase de julgamento, o objecto do processo encontra-se fixado pela acusação do Ministério Público, no caso de crimes públicos e semi-públicos, ou pela acusação do assistente, no caso de crimes particulares (arts. 283.º e 285.º, do Código de Processo Penal), ou por ambas, se estiverem em causa crimes públicos ou semipúblicos e particulares.

  4. Pode acontecer que no decurso da audiência do julgamento sejam conhecidos factos novos, não constantes da acusação ou da pronúncia.

  5. A lei não fornece uma definição de alteração não substancial dos factos, no entanto, a alínea f) do artigo 1.º, do Código de Processo Penal define o conceito de alteração substancial dos factos, estabelecendo que esta é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Assim alteração não substancial dos factos é aquela que, consubstanciando embora uma modificação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não tem por efeito a imputação de um crime diverso, nem a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

  6. Qualquer alteração dos factos descritos na acusação, desde que não implique alteração do juízo base de ilicitude nem agrave os limites máximos das sanções aplicáveis ao agente do crime acusado, pode ser tomada em conta, assegurando-se ao arguido a possibilidade de se defender em razão da alteração (art. 358.º), mas já não nas hipóteses contrárias.

  7. Se os factos novos surgidos no decurso da audiência de julgamento – relativamente ao objecto do processo ficado na acusação ou na pronúncia – acarretarem a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, a solução legal é oposta. Estes novos factos não poderão ser tomados em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso e não implicam a extinção da instância.

  8. Como se consignou no Acórdão do STJ de 21.03.07, proferido no Processo n.º 24/07, alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido, ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação, constituindo uma surpresa com a qual o arguido não poderia contar, isto é, a alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refere aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, que determine a imputação de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

  9. Na exposição de motivos da proposta de Lei n.º 109/X, baseada no anteprojecto de revisão apresentado pela Unidade de Missão, refere-se: “No âmbito da alteração substancial dos factos introduz-se a distinção entre factos autonomizáveis e factos não autonomizáveis, estipulando-se que só os primeiros originam a abertura de novo processo.”.

  10. FREDERICO ISASCA fundamenta que “os factos são autónomos ou autonomizáveis quando podem, por si só, e portanto independentemente dos factos que formam o objecto do processo, serem susceptíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objecto do processo.”. (Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Coimbra, Almedina, 1992) 11. Os factos são não autonomizáveis quando estão “imbricados” nos factos constantes da acusação, quando não são destacáveis ou cindíveis face ao núcleo essencial ou, ainda quando formam juntamente com os constantes da acusação ou da pronúncia, quando a houver, uma tal unidade de sentido que não permite a sua autonomização.

  11. Face ao supra aduzido, patenteia-se, com o devido respeito, que os factos novos consubstanciam uma alteração substancial dos factos.

  12. Na verdade, esta alteração substancial verificada no caso concreto imputa ao arguido um crime diverso daquele que lhe vinha a ser imputado na acusação, agravando a sua situação jurídico-penal.

  13. No caso, os factos agora imputados ao arguido são naturalisticamente diferentes dos que lhe eram imputados na acusação, assim como os actos de execução em que se manifestam também são diversos.

  14. São, por isso factos não destacáveis dos restantes a que o arguido está a ser acusado, formando uma unidade de sentido que não permite a autonomização.

  15. Aliás, relativamente ao facto “ o arguido obrigava o assistente BB a chupar-lhe o pénis”, o Tribunal entendeu que a prática de dois tipos de actos (coito oral e coito anal), num mesmo momento, integram a prática de apenas um ilícito.

  16. Ora, não sendo os factos autonomizáveis, não podem estes ser tomados em conta pelo Tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, face à discordância e oposição do arguido manifestada no contraditório que, à altura, ofereceu em requerimento próprio (fls. 454 a 459).

  17. Ademais, é imputado ao arguido, como supra referido, um crime diverso do que foi acusado. De facto, os bens jurídicos tutelados são diferentes.

  18. No que se refere ao crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, disposto no artigo 165.º do Código de Processo Penal, o bem jurídico tutelado é o direito à autodeterminação sexual de pessoa incapaz de opor resistência por factores físicos ou psíquicos. O preceito tutela os indivíduos que, por motivos ligados a circunstâncias intelectuais ou psíquicas ou ao seu estado físico, são incapazes de se autodeterminar no plano sexual.

  19. Todavia, relativamente ao crime de violação consagrado no artigo 164.º do Código de Processo Penal o bem jurídico tutelado é o da liberdade de determinação sexual.

  20. Patenteia-se, assim que existiu uma alteração substancial dos factos, porquanto estão em causa crimes diversos que tutelam bens jurídicos diferentes: crime de violação e crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.

  21. Daí que, salvo melhor opinião e o devido respeito, seja, como se advoga e invoca, nula a sentença por violação das normas referidas.

    Por outro lado, 23. O princípio “in dubio pro reo” pretende responder ao problema da dúvida na apreciação judicial dos casos criminais. Não da dúvida interpretativa, na aferição do sentido da norma, mas da dúvida sobre o facto, tipicamente forense.

  22. O princípio in dubio pro reo é considerado na nossa Ordem Jurídica como um corolário do princípio de presunção de inocência, desde logo porque este último é um dos princípios fundamentais do Direito Processual Penal, responsável por diversas garantias processuais do estatuto processual e da defesa do arguido.

  23. O problema da dúvida no processo existe, exactamente, pela mesma razão que torna necessária a fase probatória da lide: o julgador não presencia (na maioria dos casos) as situações que há-de dirimir de acordo com o Direito. Trata-se, habitualmente, de um acontecimento que teve lugar num passado mais ou menos recente e a que o Tribunal tem acesso de um modo mediato, lidando, apenas, imediatamente com as proposições que enunciam factos – enunciados factuais – que afirmam a existência ou a inexistência de determinados comportamentos pretéritos.

  24. Atente-se, por isso ao conteúdo da dúvida que é necessário para que se autorize uma solução favorável ao arguido.

  25. O princípio da livre apreciação de prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, como tensão de objectividade, encontra no “in dubio pro reo” o seu limite normativo, ao mesmo tempo que transmite o carácter objectivo à dúvida que acciona este último 28. A dúvida ou o non liquet, necessariamente valorado a favor do arguido, não ocorre quando na sentença sejam considerados provados, para além de qualquer dúvida razoável, todos os factos relevantes e preenchidos os elementos essencialmente constitutivos do tipo incriminador em causa.

  26. Ao não ter...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT