Acórdão nº 1118/14.8JAPRT.G1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 03 de Março de 2016

Magistrado ResponsávelHELENA MONIZ
Data da Resolução03 de Março de 2016
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça: I Relatório 1.

Na Comarca de ... (... - Instância Central – Secção Cível e Criminal — ...), foi julgado, em processo comum, com intervenção do tribunal de júri, no processo n.º 1118/14.8JAPRT, o arguido AA, e condenado, por acórdão de 10.04.2015, - pela prática de um crime de homicídio qualificado e agravado, na forma consumada, previsto e punido pelos arts. 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, als. i) e j), todos do Código Penal (CP) e pelo art. 86.º, n.º 3, da Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23.02 e posteriores alterações), na pena 17 (dezassete) anos e 6 (seis) meses de prisão, e - pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86.º, n.º 1, al. c) da referida Lei das Armas (Lei n.º 5/2006, de 23.02), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, e - na pena única conjunta de 18 (dezoito) anos de prisão.

Foi ainda condenado no pagamento do pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes BB, por si e em representação dos filhos menores CC e DD, em conjunto, da quantia global de 60.000 € (sessenta mil euros), a cada um dos três demandantes, a quantia de 30.000 € (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais, e aos demandantes, em conjunto, a quantia global de 220.708,22 € (duzentos e vinte mil setecentos e oito euros e vinte e dois cêntimos), a repartir entre os três demandantes em partes iguais (sobre as quantias referidos em a) e b), incidirão juros de mora à taxa de 4 % desde a data da prolação do acórdão e até integral e efetivo pagamento; sobre as referidas em c), desde a data da notificação até integral e efetivo pagamento).

  1. Deste acórdão foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 05.10.2015, negou provimento ao recurso. 3.

    Não conformado com a decisão, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões: « I. O Tribunal valorou e estribou a sua convicção no Relatório Social – documento este, de cuja existência nos autos nunca foi o arguido notificado.

    II. Tal documento não tem qualquer data de entrada no processo. Apenas se pode constatar que foi elaborado no dia 2 de Março de 2015. Mas a data em que chegou o mesmo aos autos nunca foi apurada.

    III. Em todo o caso, o arguido só dele soube, quando apreciou a decisão condenatória, porque depois de ter analisado o processo e ter apresentado a contestação, de nenhuma junção de documentos foi mais notificado.

    IV. Ao longo da audiência de julgamento nunca tal documento foi examinado ou sequer referido e, menos ainda, em momento algum foi o arguido informado da sua existência e consequente junção aos autos.

    V. O documento em causa serviu para dar como provado o facto 9, da matéria de facto dada como provada, fazendo a decisão -se uma citação do próprio documento.

    VI. O Tribunal validou assim, uma prova quer não foi apreciada em sede de julgamento; não foi contraditada, tratando-se, assim, de prova proibida por falta de contraditório (art. 165.º, n.º 2, do CPP) – princípio da proibição da valoração da prova.

    VII. Como refere o Ac. da Relação do Porto, de 18/06/2007, Proc. 0741423, Rel. Pinto Monteiro, “Um documento não lido nem examinado na audiência de julgamento não pode valer como prova, se a sua junção ao processo não foi notificada aos sujeitos processuais interessados e se estes depois da sua junção não tiveram acesso aos autos”.

    VIII. Não se tratou de uma simples junção aos autos, de um documento inócuo ou sem qualquer significado. O Relatório social – de cuja existência nunca foi o arguido notificado – foi valorado e tomado em conta para determinar uma parte da matéria de facto provada. Ficou, deste modo, inalienavelmente coartada, a possibilidade do arguido exercer o seu direito de contraditório.

    IX. Em causa está um rude golpe ao direito do exercício da contraditoriedade por parte do arguido (art. 327.º, n.º 2, do CPP). Trata-se de um princípio estrutural do direito adjectivo penal, com consagração constitucional (art. 32.º, n.º 5, da CRP).

    X. Como adverte Eduardo Correia, o princípio do contraditório traduz-se “ao menos, num direito à defesa, num direito a ser ouvido”. Por sua vez, o conselheiro Simas Santos (AC. STJ. 10/03/2005) sobre este assunto esclarece que a não notificação do arguido de documento ou provas carreadas para o processo, conduz à violação do princípio do contraditório.

    XI. No caso em apreço, o arguido nem soube da chegada aos autos do Relatório Social; não o pôde analisar nem, naturalmente, contraditar.

    XII. E não se trata de um mero procedimento adjectivo irrelevante. A decisão foi estribada no conteúdo de tal documento, nele incidindo o julgamento da matéria da facto com implicação directa na dosimetria penal aplicada.

    XIII. Para além da violação do citado art. 327.º, n.º 2, do CPP, em causa está a violação grave do princípio constitucional – que desde já se denuncia, para os devidos efeitos – sufragado no n.º 5, do art. 32.º, da CRP.

    XIV. Deve por isso, ser anulado o acórdão, notificado o arguido do Relatório Social e reaberta a audiência para o exercício do contraditório e determinação da pena a aplicar (art. 371.º, do CPP). Caso assim se não entenda, devem os autos ser reenviados para novo julgamento (cfr. art.426.º, n. 1, e 426.º A, do CPP).

    XV.

    Violadas ficaram as normas: art. 327.º, n.º 2; 355.º; 379.º, n.º 1, al. c); e 410.º, n.º 2, al. a), todos do CPP; dos arts. 32.º, n. 5, da CRP, art. 11.º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948; art. 6.º, n.º 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ratificada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro.

    Da qualificação jurídica XVI. O arguido não concorda com a qualificação jurídica que foi feita ao crime por ele perpetrado, porquanto não foram provados factos que sustentem tal qualificação, devendo ser apenas agravado, pelo facto de ter sido praticado com arma de fogo (artigo 86°., nº. 3, da Lei nº. 5/2006, de 23/2).

    XVII. Analisando as circunstâncias qualificativas agravantes, previstas no n.º 2, alíneas i) e j), do art. 132.º, do CP, consta-se – embora com o máximo respeito por opinião contrária, e sem qualquer tentativa de branquear a gravidade do delito – que a conduta do arguido, embora censurável por ter utilizado arma de fogo, e nestes termos agravada, se não enquadra naquelas circunstâncias.

    XVIII. O meio insidioso não poderá ser assim um motivo, mas sim a utilização de um meio/instrumento dissimulado, de armadilha, de cilada (Acs. de STJ de 26/3/2008, p. 292/08, do Sr. Conselheiro Relator e de 27/5/2010, p. 58/08). In casu, o arguido pratica o crime já depois de largos anos de humilhação e ameaças constantes de EE; de momentos antes, ter sido ostensivamente provocado (por palavras e gestos, como era hábito do CC), ter sido publicamente insultado (“meu filho da puta”) e sobretudo desafiado (se tens ”tomates” |coragem| “vai ter à ponte”), aliás, insistentemente desafiado (“voltou a sair da carrinha e desafia-o de novo”) em pleno café da aldeia, perante, entre outras pessoas, a sua esposa e a dona do café que, conhecendo já os modos de Paulo Ferreira, ainda o tentou acalmar.

    XIX. Não que tudo isto, legitimasse o arguido a tomar a atitude que tomou; não. Mas no mínimo, é bem demonstrativo que o arguido não utilizou qualquer meio insidioso (para lá da arma de fogo); v.g., não o desafiou, não o provocou, não lhe fez qualquer espera, não lhe apareceu de forma sub-reptícia, nem o surpreendeu em lugar isolado! XX. A ideia fundamental da circunstância prevista no n.º 2, do artigo 132.º, al. j), do CP, é a da premeditação, pressupondo uma reflexão por parte do agente, da forma como prepara o crime, como pensa nele, reflete sobre o acto e mesmo assim decide matar. Ora não foi isto que se passou. A prova produzida é bem demonstrativa de que o arguido não premeditou o crime.

    XXI. A conduta do arguido resultou tão só da recorrente humilhação de que vinha a ser alvo por parte da vítima, cujo limite foi atingido nesse dia com a provocação de palavras e gestos, acrescida dos desafios, em momentos diferentes, que já não conseguiu resistir, nem mesmo com a oposição da esposa e da senhora do café. O arguido agiu precipitada e reactivamente, em resposta aos dois insistentes desafios, feitos publicamente.

    XXII. Pelas razões aduzidas, mantêm-se discordância sobre a qualificação jurídica dos factos, por se entender que a conduta do arguido, sempre censurável, não pode, contudo, enquadrar-se nas circunstâncias qualificativas do n.º 2, do artigo 132.º, al. i) e j), do CP – pese embora consubstancie a prática de um crime de homicídio agravado, p. e p. pelos art. 131.º, do CP, e art. 86°., n.º 3, da Lei das Armas.

    XIII. Seguindo a doutrina e a jurisprudência – nomeadamente, Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense, fls. 26 e segs. e acórdão do STJ, entre muitos o de 15/03/2007, p. 340/07 – o crime base é o homicídio simples, p. no art. 131.º, e o homicídio qualificado, uma forma agravada do homicídio simples, não se podendo considerar o contrário, isto é, que o homicídio simples é a uma atenuação do agravado.

    XIV. O crime de homicídio, não poderá ser qualificado só porque os factos provados, sem mais, possam fazer supor que estão preenchidos um ou mais dos exemplos padrão do n.º 2, do art. 132.º, do CP, sem que o homicídio seja qualificado só por isso. Para que a qualificação se verifique terá de ocorrer uma "imagem global do facto agravado" (neste sentido o Ac. do STJ de 8/10/2011. p. 88/09.9, 5ª sec. e toda a jurisprudência e doutrina aqui referidos) XXV. Ao decidir como decidiu, tribunal a quo violou as disposições dos artigos 131.°, 132.°, n.º 1 e 2, do CP, e artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas.

    XXVI. Se utilizados fossem os fundamentos justificativos das penas aplicadas (e confirmadas) por muitos dos Acórdãos mais recentes do S.T.J., chegava-se à conclusão certa de que a pena aplicada é desproporcional à medida da satisfação do sentimento...

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