Acórdão nº 15/14.1UGLSB.S2 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 11 de Fevereiro de 2016

Magistrado ResponsávelARMÉNIO SOTTOMAYOR
Data da Resolução11 de Fevereiro de 2016
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. A Ordem dos Advogados, representada pela sua Bastonária, apresentou, na Procuradoria-Geral da República, denúncia criminal contra o Primeiro Ministro, Dr. ...., contra a Ministra de Estado e das Finanças, Dr.ª ...., contra a Ministra da Justiça, Dr.ª ... e contra todos os demais membros do Governo Português que estiveram presentes na reunião do Conselho de Ministros de 20 de Fevereiro de 2014, imputando-lhes a prática de um crime de atentado contra o Estado de direito, p. e p., pelo artigo 9º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, com a redacção estabelecida pela Lei nº 108/2001, pela Lei nº 30/2008, de 10 de Julho, pela Lei nº 4/2011, de 16 de Fevereiro e pela Lei nº 4/2013, de 14 de Janeiro. A factualidade denunciada é susceptível de ser sintetizada da seguinte forma: o Conselho de Ministros, em sessões realizadas em 6 e em 20 de Fevereiro de 2014, aprovou o diploma que estabelece o Regime de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e que veio a ser publicado como Decreto-Lei nº 49/2014, de 27 de Março. Com tal diploma o Conselho de Ministros visou regulamentar a Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), de forma a permitir a sua entrada em vigor. Comparando a nova organização dos tribunais de 1ª instância com a que vigorou até 31 de Agosto de 2014, verifica-se que resultou daquele Decreto-Lei o encerramento de 20 tribunais e a transformação de outros 27 em secções de proximidade, que servindo de meros “postos de atendimento”, poderão, no futuro, vir a ser igualmente encerrados. Uma vez que a justiça pretendida e reclamada pelo cidadão não poderá ser feita localmente, com forçoso afastamento das populações dos tribunais, o que também sucede às populações cujos municípios onde residam disponham apenas de tribunais de determinada competência específica, foi, deste modo, coarctado às populações daqueles municípios, de forma parcial ou total, o direito de acesso ao direito e aos tribunais e o direito à tutela jurisdicional efectiva. Perante os imperativos constitucionais que enformam o Estado de direito democrático, a regulação operada pelos mencionados membros do Governo Português foi levada a efeito com flagrante desvio das funções que lhes estão confiadas, por lhes ser exigível que conheçam perfeitamente os direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, impondo-se-lhes que os respeitem no processo legislativo, sem reservas ou subterfúgios. Ao legislarem pelo modo como o fizeram, os denunciados restringiram ou dificultaram gravemente, a milhares de cidadãos, o acesso ao direito e aos tribunais, desprezando conscientemente o critério da proximidade do cidadão no acesso ao direito e à justiça, tentando subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido e, concretamente, os direitos fundamentais previstos no nº 1 do art. 20º da Constituição. Deste modo, agindo de forma voluntária e livre, actuaram com perfeita consciência de que estavam a destruir o sistema de justiça português, pilar estruturante do Estado de direito democrático.

No inquérito, entretanto instaurado, para além da notificação à Exma. Bastonária da Ordem dos Advogados, na qualidade de representante legal da Ordem, para, querendo, se pronunciar sobre a situação descrita na denúncia, à qual nada acrescentou, não foi praticada nenhuma diligência, O inquérito foi, de seguida, arquivado com fundamento no disposto no art. 277º nº 2 do Código de Processo Penal, depois de o Ministério Público afirmar no seu despacho de que não há indícios da prática do denunciado crime. Afirmação esta que se baseia-se na seguinte argumentação: “Materialmente, [os] factos permitem apenas depreender que os denunciados quiseram modificar a organização judiciária tal como estava estabelecida na lei anteriormente em vigor e que, para o efeito, foram tomadas, pelo Governo, medidas legislativas na área da justiça com vista à reforma do mapa judiciário. Não são conhecidos, nem são avançados, outros factos dos quais se possa inferir que os denunciados, ao actuarem como actuaram, levando a cabo as alterações legislativas para a reforma judiciária e decidindo o encerramento de tribunais e a transformação de outros em secções de proximidade, o tenham feito com o intuito de, desvirtuando as funções em que estão investidos, quisessem suprimir, restringir ou dificultar gravemente a garantia de efectivação do acesso ao direito e aos tribunais pelos cidadãos. Aliás, a Lei de Organização do Sistema Judiciário n° 62/2013, de 26.08, aprovada pela Assembleia da República, estabelecia já o quadro geral em que a regulamentação ao diploma deveria ser feita. Acresce ainda que, embora as alterações legislativas tenham modificado a anterior configuração do mapa judiciário, daqui não decorre que as mesmas são aptas a alterar a organização, conteúdo e expressão externa do Estado de direito constitucionalmente instituído nos termos exigidos pelo legislador penal para preenchimento do tipo. Na verdade, não alteram, na sua essência, no seu âmago, os direitos de acesso ao direito e à tutela jurisdicional.” Notificada do arquivamento do inquérito, a assistente requereu a abertura de instrução, com vista à comprovação judicial do arquivamento decidido pelo Ministério Público, tendo dado cumprimento ao disposto na parte final do nº 2 do art. 287º, na remissão que faz para as als. b) e c) do art. 283º, ambos do Código de Processo Penal, ao proceder, no referido requerimento, à narração dos factos imputados aos denunciados.

Por despacho de 17 de Junho de 2015, a Ex.ma Senhora Conselheira a exercer funções de juiz de instrução criminal, tendo invocado o disposto no art. 4º do Código de Processo Penal e no art. 130º do Código de Processo Civil, rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente Ordem dos Advogados.

Para tanto, depois de proceder à análise do requerimento de abertura de instrução na parte em que enuncia os factos veio a concluir não serem os mesmos integradores do tipo de crime de atentado contra o Estado de direito, previsto no art. 9º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho. Para tanto, afirmou: “…revivendo a actuação dos denunciados, não se divisa sinal algum minimamente sério e credível de que, ao regulamentarem a dita Lei n.º 62/2013, de 26.08, nos termos que ficaram a constar do Decreto-Lei nº 49/2014, de 27/3, tivessem os mesmos, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos seus inerentes deveres, ainda que por meio não violento ou ameaça de violência, tentado destruir, ocasionar a ruptura, aniquilar, alterar ou subverter o “Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo e organização política democrática, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes” (artigo 2.º da Constituição da República) … isto é que, pela dimensão, intensidade e nível do resultado advindo daquela sua exacta conduta, hajam indiciado o propósito de como que provocar um «“golpe de estado”, por meios não violentos».

Perante a inexistência de indícios, passou então a ponderar se há justificação para se proceder à requerida abertura de instrução, concluindo que “não se vislumbra utilidade alguma em proceder à requerida abertura de instrução e bem assim à realização das pretendidas diligências instrutórias. E isto porque, se as referidas diligências (como visto, consistentes na constituição como arguidos dos denunciados e na recolha dos depoimentos da Senhora Bastonária da Ordem dos Advogados e dos Presidentes de Câmara dos municípios em que se situavam os tribunais que “encerraram” ou que foram “transformados” em secções de proximidade), pelo patente alcance e óbvio resultado que proporcionariam [não mais do que enfatizar as já mencionadas consequências que, decorrentes da implementação do sistema de organização e funcionamento dos tribunais judiciais, aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 29.06 (LOST), regulamentada nos termos do Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27.03, foram exaustivamente assinaladas na denúncia e que, por...

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