Acórdão nº 212/14.0T8OLH-AB.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 09 de Janeiro de 2018

Magistrado ResponsávelPINTO DE ALMEIDA
Data da Resolução09 de Janeiro de 2018
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]: I.

Por sentença proferida em 9/12/1997, transitada em julgado foi decretada a falência da AA, S.A..

No apenso de reclamação de créditos, foi proferida sentença que procedeu à verificação e graduação dos créditos reclamados, tendo, no que interessa a este recurso, decidido: "(…) 4) Proceder à graduação dos créditos reconhecidos, nos termos que se seguem e pela ordem que se indica: (…) b) Quanto ao produto da venda do prédio rústico sito no ... ou ..., freguesia e concelho de ..., descrito na CRP de ... sob o n° … e inscrito na respectiva matriz sob o art° 14° da Secção AC: 1º - Os créditos dos credores identificados em 13, 21, 24, 62, 63, 68, 74, 87, 100, 101, 102, 103 e 104 (os quais gozam de direito de retenção); 2º - Os créditos garantidos por hipoteca referidos no ponto 1 do relatório; 3º - Os créditos dos trabalhadores referidos nos pontos 32 a 55 do relatório; 4º - Os demais créditos, em situação de igualdade.

(…) Discordando desta decisão, a credora BB, SA interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou improcedente, mantendo integralmente a decisão recorrida.

Ainda inconformada, a recorrente veio pedir revista, formulando as seguintes conclusões: A) 1ª- Deve eliminar-se da matéria de facto provada, o teor de factos nºs 33 e 82 - pois, afirmando-se ali, como um facto, que a recorrente adquiriu aqueles apartamentos, tal facto não tem o documento autêntico exigido por arts. 364.º e 875.º do Cód. Civil. Correcção a efectuar, desde logo, ao abrigo dos poderes do STJ, conferidos pelo art. 674.º n.º 3 do Cód. Proc. Civil, 2ª- Por outro lado, acresce que as demais razões invocadas no acórdão recorrido, para dar tais apartamentos como incluídos no prédio rústico, objecto das hipotecas da ora recorrente, carecem também de meio de prova autêntica, ou de quaisquer outros factos provados, visto que a matéria de facto não demonstra que os bens detidos pelos reclamantes dos pontos 13, 21, 24, 62, e 87 estivessem localizados no mesmo prédio rústico das hipotecas.

3ª- Ao contrário do julgado no acórdão, não cabe à ora recorrente o ónus de demonstrar que os apartamentos ali referenciados não integram o prédio; mas, nos termos de art. 342.º n.º 1 do Cód. Civil, cabia aos reclamantes alegar e provar tal identidade entre o prédio onde teriam a coisa detida e o prédio objecto das hipotecas da recorrente.

4ª- Pelo que, por falta de factos e meio legal de prova, que seria documental, deve rejeitar-se que os direitos de retenção identificados em pontos 13, 21, 24, 62, e 87 digam respeito ao mesmo imóvel descrito no facto n.º 3 da sentença (p. 23 - fls. 4396) - sem prescindir do que mais se alega aqui.

  1. 5ª- Por força do princípio da unidade valorativa e axiológica da ordem jurídica - imposto desde logo, também no art. 9.º n.º 1, do Cód. Civil - a densidade do direito de retenção relativo a contratos-promessa sobre imóveis, resulta, por um lado, dos requisitos positivos constantes no art. 755.º n.º 1 al. f), e por outro, dos requisitos negativos constantes em art. 756.º do Cód. Civil.

    6ª- O legislador ordinário, mesmo sob a égide de uma Constituição declaradamente socialista, tanto no domínio das alterações introduzidas neste tema pelo Decreto-Lei n.º 236/80, bem como pelo Decreto-Lei n.º 379/86, manteve intocável a identificação inequívoca dos casos de exclusão do direito de retenção.

    7ª- Está assim excluído, por lógica vontade do pensamento legislativo, o direito de retenção quanto às coisas impenhoráveis, e nos termos do actual art. 736.º al. a) do Cód. Proc. Civil - anterior al. a) do art. 822.º - são impenhoráveis as coisas inalienáveis.

    8ª- Nos termos de art. 759.º n.º 1 do Cód. Civil, o direito de retenção, quanto a coisa imóvel exige que a mesma seja executável, isto é, que se trate de coisa penhorável – sendo a noção de coisa imóvel penhorável resumida a prédio rústico, ou a prédio urbano, conforme disposto em art. 204.º n. 1 al. a) e n.º 2, combinado com o disposto nos arts. 1302.º e 1414.º e ss. todos do Cód. Civil (estes sobre as coisas corpóreas sujeitas a direitos reais e à propriedade horizontal).

    9ª- Ora, no caso dos autos, dos créditos em causa neste recurso, um deles respeita a uma "futura semana", ou seja, uma futura fracção de gozo, num futuro direito real de habitação ou turismo - caso do crédito identificado no ponto n.º 62 -, e os demais respeitam a prometidas futuras e também hipotéticas fracções, a constituir, se e quando e legal a propriedade horizontal.

    10ª- Sem prejuízo de se impugnar nas reclamações identificadas supra conclusão 4ª que o prédio dos respectivos futuros direito reais de habitação periódica e propriedade horizontal seja o mesmo prédio rústico hipotecado à ora recorrente, todas as situações reclamadas são de futuros e eventuais direitos reais, fracções de hipotética propriedade horizontal e de propriedade em time sharing - assim, não sendo coisas penhoráveis, caem forçosa e inequivocamente no âmbito da exclusão do direito de retenção, operada pelo disposto no art. 756.º al. c) do Cód. Civil C) 11ª- A regra que o acórdão recorrido retira do AUJ de 12 de Março de 1996 não pode ser aqui aplicada: primeiro, porque os AUJ não têm força revogatória da lei ordinária - neste caso, daquele art.º 756.º al. c) do Cód. Civil, nem aquele pretendeu revogar este preceito, nem isso exarou.

    12ª- Por outro lado, destinando-se as promessas em causa, a futuros bens de utilização comercial e turística, não ocorre coincidência com os interesses de protecção à habitação e à parte mais fraca, supostos no AUJ referido.

    13ª- Acresce que, aquele AUJ apenas quis antecipar o direito de retenção no pressuposto de que a respectiva propriedade horizontal seja ou fosse uma falha temporária - neste sentido o Acórdão diz que " ... a situação de inalienabilidade é transitória. Termina com a conclusão das obras e a elaboração do título constitutivo da propriedade horizontal. Poderá não terminar, se, porventura, as obras forem abandonadas. Nesta hipótese, porém, a retenção tomba em absoluta anodínia."; sendo certo que, como regista a sentença (p.63) até à sua data (2013) não existia propriedade horizontal.

    14ª- Assim, a combinação sábia do AUJ de Março de 1996 - que atenda designadamente aquela sua ratio essendi – com a inequívoca restrição excludente, que o legislador quis manter no art.º 756.º do Cód. Civil, impõe a não classificação como dotados da garantia de retenção, dos créditos em causa - por todos eles se referenciarem a realidades definitivamente impenhoráveis.

  2. 15ª- Caso improceda o que antecede, o que não se concede, deve concluir-se que o AUJ de 12 de Março de 1996 padece de nulidade, por contradição entre aquele fundamento limitador ou restritivo supra enunciado e o seu segmento uniformizador, o qual, ao não mencionar aquele carácter limitador e provisório, desvirtua completamente os fundamentos - assim, nulidade nos termos de art.º 615.º n.º 1 aI. c) do Cód. Proc. Civil (ou do preceito anteriormente igual), e decisão que deve ser proferida no Plenário das Secções Cíveis, à semelhança do julgado no Acórdão do seu Plenário, de 9.1.2014, Proc. 92/05 (Sumários, 2014, p. 2).

  3. 16ª- Sem prescindir de tudo o que antecede, verifica-se também a nulidade da decisão recorrida, no tocante ao julgamento de que cada um dos créditos em causa deve ser pago pelo preço da totalidade da venda do prédio rústico em causa - porquanto e desde logo, os reclamantes não alegaram a posse/detenção de todo o prédio, nem tão pouco esta vem provada, sendo certo que o direito de retenção, por força do disposto no art.º 442.º n.º 2 do Cód. Civil está limitado "à coisa a que se refere o contrato prometido", como ali consta.

    17ª- A nulidade da decisão deriva, pois, logo aqui, da violação frontal do disposto nos arts. 609.º n.º 1 e 615.º n.º 1 al. e) do CPC - e a sua ilegalidade deriva também da sua contrariedade àquela disposição do art.º 442.º n.º 2, bem como ao teor dos arts. 759.º e 824.º n.º 3 do Cód. Civil.

  4. 18ª- Por outro lado, acresce que, ao alargar o objecto dos direitos de retenção à totalidade do prédio rústico e totalidade do preço da sua venda judicial, sem que isso tivesse sido pedido ou objecto de prévia defesa da recorrente, o acórdão recorrido mantém a grosseira violação do direito à defesa e ao contraditório - cometida já na sentença - rasgando o núcleo do direito ao processo justo e equitativo, garantido em art.º 3º n.º 3 do Cód. Proc. Civil, art.º 20.º n.º 4 da Constituição e art.º 6.º da CEDH.

  5. 19ª- Mais acresce que, nesta parte, o acórdão interpreta o disposto no art.º 442.º n.º 2, art.º 759.º nº 1 e art.º 824.º n.º 3 do Cód. Civil, no sentido de que, afinal, "a coisa a que se refere o contrato prometido" e o "produto da venda" do respectivo bem - sobre o qual os reclamantes detinham a garantia retentória - correspondem à totalidade de um prédio e à totalidade do respectivo preço de venda judicial, apesar de cada um dos reclamantes ter alegado deter apenas uma pequena quota-parte do prédio.

    20ª- Ora esta interpretação não só é violentamente injusta, como sobretudo, é de facto expropriativa da garantia creditória hipotecária - na parte em que ultrapassa a quota-parte da alegada retenção do reclamante – e, por conseguinte, trata-se de uma interpretação proibida, porque viola a tutela dos direitos de propriedade e creditício, garantidos em art.º 62.º da Constituição, bem como no art.º 1.º do Protocolo nº 1, adicional à CEDH vinculante do Estado português.

  6. 21ª- Caso improceda o que antecede, no que não se concede, e caso se julguem verificados os demais requisitos dos direitos de retenção - o que também não se concede - a unidade do sistema jurídico e a justiça material imporiam que, com base no disposto em arts. 1416.º n.º 1 e 824.º n.º 3 do Cód. Civil, o direito de retenção fosse reconhecido na proporção do valor relativo de cada "apartamento" e de cada semana de time-sharing - como o ensino e o Parecer do Sr. Professor Calvão da Silva (anexo na Relação)...

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