Acórdão nº 1791/08.6TBAVR.C1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 16 de Abril de 2013

Magistrado ResponsávelHELDER ROQUE
Data da Resolução16 de Abril de 2013
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]: AA e BB, ambos residentes nas ..., ..., São ..., propuseram a presente acção declarativa, com processo comum, sob a forma ordinária contra CC, residente na Avenida ..., em ..., e DD, residente na ..., Ílhavo, inicialmente, menor, representado pela mãe, a ré CC, pedindo que, na sua procedência, se decrete a anulação da perfilhação do réu DD, efectuada por EE, e do averbamento da paternidade ao seu assento de nascimento, invocando, para o efeito, e, em síntese, que são viúva e filho do falecido EE, respectivamente, tendo, na sequência da abertura do seu inventário, tomado conhecimento de que este havia perfilhado o réu DD, sendo certo que esta perfilhação, de que, também, agora, tomaram conhecimento, foi realizada “sob a ameaça”, feita pela ré CC, de informar, caso o falecido EE não perfilhasse o réu DD, a aqui autora da relação comercial traduzida numa casa de diversão nocturna, em ..., que aquele mantinha com a ré CC, e bem assim como da existência de relações íntimas entre ambos, ameaça que produziu no falecido EE justificado receio de que a sua estabilidade familiar fosse desfeita e a sua honra, gravemente, atingida, a ponto de, para evitar a sua concretização, ter feito a perfilhação, que nunca revelou à família e amigos.

Na contestação, os réus negam, rotundamente, que a perfilhação haja sido precedida de qualquer ameaça, dizendo que foi um acto livre do falecido EE, que sempre aceitou o réu DD como seu filho biológico, como, efectivamente, é, acrescentando que a única ameaça verificada foi efectuada pelo falecido, no sentido de evitar que a ré CC revelasse o relacionamento com ele e a existência do réu DD, a fim de não desestabilizar as relações familiares com os autores, sendo que, mesmo assim, muitas pessoas de S. ... tinham conhecimento da perfilhação deste réu.

Na réplica, os autores mantêm o alegado na petição inicial.

Encontrando-se já iniciada a audiência de discussão e julgamento, o Exmo. Juiz determinou, oficiosamente, “a realização pelo INML de exames genéticos aos AA e aos RR, com vista a apurar se o R. DD é filho do falecido EE”, tendo-se concluído, no respectivo exame pericial, que “o pai biológico de BB é excluído da paternidade de DD”.

Os autores apresentaram, então, articulado superveniente, em que invocam que ficaram a perceber, pelo resultado do exame, que o réu DD não é filho biológico do falecido EE, o que alegaram para ser tomado em conta na causa.

Os réus deduziram oposição à admissibilidade do articulado superveniente.

O Exmo. Juiz proferiu, em seguida, despacho que aditou à base instrutória o facto “novo”, admitindo, “implicitamente”, o articulado superveniente.

A sentença julgou a acção procedente, declarando impugnada a perfilhação do réu DD, por EE, ordenando o cancelamento do averbamento da paternidade deste ao assento de nascimento daquele (assento de nascimento n.º …, de 2008, do Arquivo Central do Porto), por efeito da referida perfilhação.

Desta sentença, ambos os réus interpuseram, separadamente, recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente a apelação e, em consequência, confirmou a decisão impugnada.

Do acórdão da Relação de Coimbra, o réu DD interpôs agora recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, que foi admitido pela Formação de Juízes, a que alude o artigo 712º-A, nº 3, do Código de Processo Civil (CPC), como revista excepcional, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, julgando-se como não provado o quesito nº 21 da base instrutória, com a consequente absolvição do recorrente do pedido [1] e, subsidiariamente, assim não se decidindo, que seja julgado procedente o presente recurso e, consequentemente, revogado o douto acórdão recorrido, julgando-se como não provado o quesito n° 21 da base instrutória e devolvido o processo ao Tribunal de Primeira Instância, para que aí seja determinada a realização de perícia médico legal, para comparação dos dados biológicos e genéticos entre recorrente e impugnada e o seu pretenso pai, decidindo-se, depois, em conformidade e à luz do respectivo resultado pericial [2], formulando as seguintes conclusões, que, integralmente, se transcrevem: 1ª – O direito à paternidade, à definição e certeza (possível) da linha de ascendência de qualquer pessoa humana integra o âmbito básico dos seus direitos fundamentais e constitui um elemento de relevo da sua identidade pessoal e da sua personalidade.

  1. - Constituindo o conjunto das pessoas humanas a comunidade, é essencial à boa convivência e paz social a estabilidade no âmbito dos seus direitos de personalidade e presunções legais que a formam, designadamente a de paternidade decorrente de acto de perfilhação.

  2. - Sem a estabilidade e certeza próprias da presunção de paternidade decorrente de acto de perfilhação, toda a teia de relacionamento social e afectivo próprias de uma comunidade ficarão fragilizadas, pelo que tal presunção apenas deve ser afastada se sustentada pelo melhor meio de prova (o mais fiável) que cientificamente sustente a desconformidade entre a presunção e a verdade biológica presumida, justificando-se que seja admitido recurso de revista excepcional ao abrigo da norma do art. 721º-A, nº 1, b) do Código do Processo Civil.

  3. - Sustentando o Tribunal decisão de impugnação de acto e perfilhação com cerca de 18 anos de duração, em perícia médico-legal que oficiosamente determinou para comparação dos dados biológicos e genéticos entre os dois putativos irmãos com ascendência paterna comum, sem que resulte do autos a impossibilidade de tal perícia ser feita por comparação entre o filho cuja paternidade é impugnada e o pretenso pai, não foi utilizado o meio de prova cientificamente mais fiável e possível.

  4. - Nestas condições, é arbitrária a apreciação do resultado daquele meio de prova, que conclui pela exclusão da mesma linha biológica de descendência paterna entre os dois putativos irmãos, feita à luz do contexto familiar de ambos tal como resultante da fundamentação do douto acórdão recorrido, que à luz desse contexto determina decisão de que um dos irmãos não é filho biológico do putativo pai comum.

  5. - Discutindo-se na acção direito de personalidade fundamental do impugnado, ao afastar a presunção de paternidade assente em acto de perfilhação que perdurava há mais de 18 anos, o Tribunal extravasou os limites da liberdade de apreciação da prova prevista na norma do art. 655º, nº 1 do Código do Processo Civil, resvalando para a arbitrariedade em tal apreciação, dando, pois, má aplicação ao Direito e decidindo ilegalmente pela prova do quesito 21º da base instrutória, 7ª - Que assim deveria ter sido julgado como não provado.

  6. - A protecção do direito fundamental de personalidade da pessoa humana, na sua componente de identidade pessoal pela identificação e estabilidade da sua ascendência, impunha que tal decisão tivesse por meio de prova pericial médico legal para comparação dos dados biológicos e genéticos entre o filho cuja paternidade é impugnada e o seu pretenso pai, salvo se este meio não fosse possível de obter (o que não resulta do processo).

  7. - Perícia cujo resultado, não sendo possível de obter com certeza científica absoluta, então - aí sim - deveria ser interpretado à luz do contexto familiar em que nasceu o impugnado, apenas desta forma se dando boa aplicação à norma do art. 655º nº 1 do Código do Processo Civil e à norma do art. 341º, n° 1 do Código Civil.

  8. - A supressão do direito à identidade e estabilidade da ascendência paterna do recorrente pelo douto acórdão recorrido, assente na apreciação que é feita aos meios de prova que foram relevados para tal decisão - perícia médico legal e sua interpretação à luz do contexto familiar dos dois filhos do mesmo putativo pai - viola o direito de personalidade do recorrente e a norma do art. 26° n° 1 da Constituição da República Portuguesa.

  9. - O douto aresto em crise dá má aplicação à norma do art. 18°, n° 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, limitando e comprimindo de forma desproporcional o direito constitucional de personalidade do recorrente, ao interpretar a norma do art. 655°, n° 1 do Código do Processo Civil no sentido de que a liberdade de apreciação dos meios de prova pelo julgador, obtidos oficiosamente, permitem a supressão do direito à identidade e estabilidade de ascendência de uma...

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