Acórdão nº 159/07.6TVPRT-D.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Dezembro de 2009

Magistrado ResponsávelHÉLDER ROQUE
Data da Resolução17 de Dezembro de 2009
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: AGRAVO Decisão: NEGADO PROVIMENTO Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: ARTIGO 519º; DL 298/92, 31 DE DEZEMBRO: ARTIGOS 78º E 79º Sumário : I - As regras do ónus da prova reconduzem-se a regras de decisão, porquanto tem o ónus da prova aquela parte contra a qual, na dúvida, o juiz sentenciará, desfavoravelmente.

II - Não implicando o direito subjectivo à prova a admissão de todos os meios de prova permitidos em direito, a parte só deve soçobrar na pretensão deduzida em juízo, por dificuldades inultrapassáveis de obtenção dos meios de prova que, por sua iniciativa pessoal, razoavelmente, sem o concurso de outra ou de terceiro, não esteja em condições de conseguir.

III - As informações pretendidas pela autora, relacionadas com o aprovisionamento e utilização de contas à ordem, de que eram titulares a ré e o marido da autora, não constituem violação do princípio da reserva da intimidade da vida privada.

IV - A exigência da divulgação dos elementos da conta bancária de uma das partes que permitam o apuramento da situação patrimonial da outra, em causa pendente, no âmbito do, estritamente, indispensável à realização dos fins probatórios visados por aquela, e com observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, é garantia da justa cooperação das partes com o Tribunal, com vista à descoberta da verdade, à luz da doutrina da ponderação de interesses, sob pena de insanável comprometimento do direito da autora a produzir as provas que indicou e a alcançar uma tutela jurisdicional efectiva, com o consequente e inequívoco abuso de direito da parte que a tal se opõe.

V - O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada tutela a esfera da vida íntima ou de segredo, compreendendo todos aqueles aspectos que fazem parte do domínio mais particular e íntimo que se quer manter afastado de todo o conhecimento alheio, com exclusão da vida normal de relação, ou seja, dos factos que o próprio interessado, apesar de pretender subtraí-los ao domínio do olhar público, isto é, da publicidade, não resguarda do conhecimento e do acesso dos outros.

VI - Ao contrário do que acontece no caso da violação da integridade física ou moral das pessoas, que se trata de direitos absolutos ou intangíveis, estando em causa os direitos fundamentais da não intromissão no sigilo bancário, trata-se de “direitos condicionais”, em que já não existe uma proibição absoluta da admissibilidade da prova que, em função das circunstâncias do caso concreto em que foi obtida e do estado de necessidade da situação, será ou não valorizada pelo Tribunal.

Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: AA interpôs recurso de agravo, para este Supremo Tribunal de Justiça, do acórdão de folhas 224 e seguintes, que negou provimento ao agravo, mantendo a decisão do Tribunal de 1ª instância que, por entender não haver violação de qualquer direito daquela, quer de intromissão na sua vida privada, quer do sigilo bancário, ordenou a notificação da Agência Abreu, TAP AIR Portugal, Portugália, SATA INTERNACIONAL, Hospital da Ordem da Trindade, Ourivesaria do Bolhão, Banco Barclays, Banco Santander Totta, Banco Pinto & Sotto Mayor, actualmente, incorporado no Millenium, Banco Borges & Irmão, actualmente, incorporado no BPI, e Banco Finibanco, para satisfazerem as informações solicitadas pela autora, BB, ambas, suficientemente, identificadas nos autos.

A ré finaliza as alegações do recurso de agravo com o pedido de revogação do decidido pelo acórdão da Relação e bem assim como de todos os actos subsequentes, formulando as seguintes conclusões que se transcrevem: 1ª - Viajar, ou não, de avião, entre duas cidades, utilizar os serviços de determinada companhia aérea, estar presente/ausente do seu posto de trabalho, quando e porquê, comprar ou não determinadas peças de joalharia, a quem, e como se paga, ter ou não conta bancária, quais os respectivos movimentos, suas datas, montantes e autores, é notoriamente matéria do direito à reserva da vida privada e familiar, acautelada pelos artigos 26°, n° 1 e 32°, n° 8, da CRP.

  1. - Logo, as informações solicitadas na notificação do tribunal de 1a instância, a requerimento da recorrida, às entidades a fls. 557, 558 e 559, reportam à vida privada da agravante.

  2. - Ditando o artigo 8o Convenção Europeia dos Direitos do Homem que "Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência" e que "Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e liberdades de terceiros”, não existindo lei aplicável no âmbito de uma acção cível na qual se discute a existência de várias doações de uma parte à outra que expressamente o dispense, é necessário o consentimento da parte em causa para que se obtenha, junto de terceiro, informação em poder deste, relativa a dados da sua esfera privada, tal como impõe, especialmente, o disposto nos artigos 1o a 7o da Lei 67/98 (Lei de Protecção de Dados Pessoais), e artigos 78° e 79° do DL 298/92 (Lei do Sigilo Bancário).

  3. - O dever de cooperação prescrito no artigo 519° do Código de Processo Civil está sujeito aos limites impostos genericamente pelo referido artigo 8o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e, especialmente, pela Lei de Protecção de Dados e do Sigilo Bancário.

  4. - Logo, a decisão em crise da 1a instância, confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, resulta de uma errada aplicação do artigo 519° do Código de Processo Civil, ao considerar dispensável tal consentimento, e viola o artigo 202°, n°s 1 e 2 da CRP, por violação do artigo 8o da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e, por violação do disposto nos artigos 1o a 7o da Lei 67/98 (Lei de Protecção de Dados Pessoais), e artigos 78° e 79° do DL 298/92 (Lei do Sigilo Bancário).

  5. - De resto, a interpretação da decisão em causa que dita a sobreposição dos ditames do artigo 519° do Código de Processo Civil aos do artigo 8o da Convenção dos Direitos do Homem está, igualmente, ferida de inconstitucionalidade, já que pressupõe a vigência de norma (dispensa de consentimento in casu) que a verificar-se seria ilegal, atento o primado do sobre invocado Direito Internacional.

Nas suas contra-alegações, a autora sustenta que deve ser negado provimento ao agravo.

O Tribunal da Relação entendeu considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz: 1. BB intentou a presente acção declarativa de anulação e restituição, com processo ordinário, contra AA, pedindo que, na sua procedência, se declarem nulas as ofertas ou doações feitas à ré pelo marido da autora, referidas na petição inicial [a], se condene a ré a restituir, imediatamente, à autora e seu marido, os bens e dinheiros doados e referidos sob os itens 18 a 21 do cap. III (alguns dos quais já objecto de apreensão) [b], ou a pagar-lhe o correspondente valor em dinheiro, relativamente aos bens e valores doados, cuja apreensão ou restituição em espécie não for possível [c], e se ordene ainda o cancelamento do referido registo de propriedade, a favor da ré, da carrinha BMW, reconhecendo-se que a propriedade da mesma pertence à autora e a seu marido, CC, a quem a mesma deve ser entregue [d].

  1. Notificada para os termos do disposto no artigo 512º, nº 1, do CPC, a autora formou um requerimento probatório, em que solicita, entre outras: A - Se notifique a Agência Abreu para informar se CC e AA utilizaram os seus serviços, em deslocações por via aérea a Itália, Espanha, Madeira e Açores, entre 1998 e 2001, e para informar quem lhe pagou os custos dessas deslocações.

    B - Se notifique a TAP AIR Portugal para que junte aos autos cópia dos bilhetes das viagens aéreas de Lisboa (ou do Porto) para Itália e vice-versa e para o Funchal e vice-versa, em nome de CC e AA, entre 1998 e 2001, com os nºs de série aí melhor indicados.

    C - Se notifique a Portugália para juntar aos autos cópia dos bilhetes de viagens aéreas, em nome das mesmas pessoas, no dia 8 de Setembro de 1998 ou data próxima, de Lisboa para o Porto, com destino a Madrid e vice-versa.

    D - Se notifique a SATA INTERNACIONAL para juntar cópia dos bilhetes das viagens aéreas, em 16 de Setembro de 2000 e 21 de Setembro de 2000, de Lisboa para Ponta Delgada e vice-versa.

    E - Se notifique o Hospital da Ordem da Trindade para que informe se a sua recepcionista, AA, esteve ausente do serviço, nos dias 3 a 8 de Setembro de 1998 e de 5 a 9 de Outubro de 1999, nos dias 16 a 21 de Setembro de 2000 e nos dias 3 a 6 de Fevereiro de 2001 e, na afirmativa, qual a justificação apresentada.

    F - Se notifique a Ourivesaria do Bolhão para que informe se, entre 1991 e 2005, vendeu artigos de ouro e jóias a CC e/ou AA.

    G - Se notifique o Banco Barclays para que informe quem aprovisionou a conta à ordem nº 30120-001.807-5, da qual eram titulares CC e AA e por quem eram utilizados os respectivos saldos.

    H - Se notifique o Banco Santander Totta para que informe quem depositou os primeiros 25.000$00 para a abertura de conta, em nome de DD.

    I - Se notifique o Banco Pinto & Sotto Mayor, actualmente, incorporado no Millenium, para que informe quem aprovisionou a conta à ordem nº 4102/8175/001, em nome de CC e/ou AA, e por quem era utilizada essa conta.

    J - Se notifique o Banco Borges e Irmão, actualmente, incorporado no BPI, para que informe quem aprovisionou a conta à ordem, em nome de CC e/ou AA, e por quem era utilizada essa conta.

    L - Se notifique o Banco Finibanco para que informe quem aprovisionava...

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