Acórdão nº 106/01.9IDPRT.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 01 de Março de 2010

Magistrado ResponsávelRAUL BORGES
Data da Resolução01 de Março de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

N Privacidade: 1 Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE Sumário : I - O arguido foi condenado na 1.ª instância, por acórdão de 28-09-2006, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelos arts. 105.º, n.º 1, e 107.º do RGIT, na pena única de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução por 5 anos, sendo tal condenação confirmada integralmente por acórdão do Tribunal da Relação de 18-02-2009, pelo que à luz das disposições conjugadas dos arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, na versão vigente, atendendo à pena aplicada e à dupla conforme, dúvidas não haveria de que não era admissível recurso na parte criminal; e mesmo que a questão fosse analisada à luz da anterior redacção, seria igualmente inadmissível o recurso, nos termos da al. e) do n.º 1 do art. 400.º, atentas as penalidades aplicáveis a cada um dos crimes por que foi condenado o recorrente – pena de prisão até 3 anos.

II - Mas, no caso concreto, encontrando-se o processo na Relação, foi colocada ex novo a questão da extinção do procedimento criminal, por descriminalização, a qual só então surgiu (o diploma em que o recorrente baseia a sua pretensão é de 31-12-2008, tendo entrado em vigor no dia seguinte), motivo pelo qual o acórdão recorrido apreciou tal questão, suscitada por força de alteração legislativa, pela primeira vez, pronunciando-se em sentido desfavorável.

III - A fim de ser assegurado o duplo grau de jurisdição e o direito ao recurso é de admitir o recurso também na parte criminal, quanto a essa específica matéria de direito, tanto mais que a questão da descriminalização, a vingar o seu reconhecimento, mesmo que parcialmente, pode arrastar consigo uma diminuição de ilícito e das verbas cujo pagamento é de exigir como componente da condição de suspensão da execução da pena de prisão.

IV - Com a Lei 64-A/2008, de 31-12, foi dada nova redacção ao art. 105.º, n.º 1, do RGIT, introduzindo-se a locução “de valor superior a (euro) 7500”, com o que o legislador criou um novo elemento objectivo do tipo, eliminando do número das infracções criminais de abuso de confiança fiscal as condutas omissivas traduzidas na não entrega de prestações tributárias deduzidas desde que o respectivo montante seja igual ou inferior àquele valor, passando a configurar o crime em questão apenas as condutas “desviantes” de prestações de valor superior àquele quantitativo; o limite mínimo constitutivo de crime passou assim a ser substanciado por “descaminho” de prestação tributária de valor superior a € 7500.

V - Só fará sentido considerar a descriminalização, desde que se acolha a tese da relevância, nesta sede, dos valores individualizados de cada prestação, que é o critério legal constante do n.º 7 do art. 105.º do RGIT, sendo que a consideração de crime continuado ou de um único crime não afasta esse dispositivo; a regra da relevância do valor de cada declaração consta de forma directa nos arts. 103.º, n.º 3, e 105.º, n.º 7, este reproduzindo aquele ipsis verbis, e por remissão o n.º 7 do art. 105.º é aplicável aos crimes de fraude e abuso de confiança contra a segurança social – arts. 106.º, n.º 2, e 107.º, n.º 2. Significa isto que prevalecerá a norma do n.º 7 do art. 105.º e sendo assim ter-se-ão em conta os valores individuais de cada declaração.

VI - Face a uma conduta repetida no tempo, a uma pluralidade de crimes que se protrai ao longo de um determinado período, poderemos estar face a um concurso de crimes, ou a alguma forma de unificação dessas condutas, como um crime continuado, ou a um único crime, ou crime sucessivo ou de trato sucessivo, ou perante infracções contínuas sucessivas. A solução encontrada pela 1.ª instância e confirmada pela Relação foi a de considerar as várias condutas, num e noutro sector, como unidade de resolução criminosa.

VII - O arguido renovou ao longo do tempo a resolução criminosa, sendo de atender que a prática das condutas consideradas se situa a partir de Janeiro de 2000, correspondendo a uma sucessão do que ocorreu justamente com as faltas de entregas de impostos de 1995 até 1999, e que foram julgadas no Proc.

A referido nos factos provados, sendo o arguido então condenado por crime continuado. Todavia, há que ter uma perspectiva global das condutas do recorrente, sendo que a análise da sua conduta não pode ser compartimentada sem atender ao que se passou com as faltas de pagamentos que se verificaram também no plano das contribuições para a segurança social, tendo em vista a consideração da actividade global do arguido e a situação de dificuldades da empresa, que não pode ser dissociada nesta análise ao longo de todo o período.

VIII - Estamos face a uma reiteração de condutas, perante situações que se foram repetindo, com carácter de homogeneidade, violando o arguido o mesmo tipo de ilícito criminal, ao longo de um período temporal apreciável, se bem que com periódicas manifestações de fidelização ao direito, com intermitências de cumprimento, seguidas de novas sucumbências.

IX - Não sendo a qualificação jurídica definitiva, face aos poderes cognitivos do Supremo Tribunal, no caso não há razões para alterá-la, estando em causa apenas a averiguação de descriminalização, que se verifica parcialmente, não devendo a questão ser analisada à luz do novo “alinhamento” temporal dos factos subsistentes, a conferir maiores traços de descontinuidade na sucessão, que sempre daria uma imagem distorcida do panorama envolvente geral em que se inseriram os factos a ter em consideração, em toda a sua extensão, conexão e interligação, sendo que, tratando-se de recurso apenas por arguido interposto, há que ter em atenção a regra da reformatio in pejus.

X - Considerando que a penalidade cabível ao crime em equação é pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, conforme o art. 105.º, n.º 1, do RGIT, na determinação da pena, no caso em apreciação, há que ponderar que o recorrente já fora alvo de uma anterior acção inspectiva por parte dos serviços competentes e que manteve exactamente a mesma conduta, não só após a primeira inspecção, como já depois da condenação no anterior processo. A realização da anterior inspecção e a posterior condenação deveriam ter sido sentidas pelo arguido, como tomada de consciência da ilicitude e censurabilidade da conduta omissiva, e levando-o a agir de molde a que a sociedade arguida passasse a cumprir as suas obrigações fiscais. Em vez disso, o arguido continuou, revelando indiferença, ciente da antijuridicidade, projectando o desvalor da acção para patamar elevado.

XI - De acordo com o art. 13.º do RGIT, na determinação da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime, sendo que no caso presente o valor a ter em consideração atinge o montante global de € 81 987,22. Além disso, não se pode esquecer o grau de culpa do arguido, agindo num quadro de substituição tributária (de acordo com o art. 20.º, n.º 1, da LGT, a substituição tributária verifica-se quando, por imposição da lei, a prestação tributária for exigida a pessoa diferente do contribuinte), com cinco das declarações apresentadas já após o arguido ter recebido uma solene advertência com a condenação anterior que lhe fora imposta, impondo-se a necessidade de consciencialização dos seus deveres cívicos, de forma a prevenir a reincidência, e as fortes necessidades de prevenção geral, pelo que se considera adequada a pena de 9 meses de prisão, cuja execução se suspenderá.

XII - Estabelece o art. 14.º do RGIT que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de 5 anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

XIII - O TC tem afirmado, uniformemente, quanto à exigência de pagamento, à margem da condição económica pessoal do responsável tributário, que nada tem de desmedida, por não se apresentar com a rigidez que aparenta, por no regime reger o princípio rebus sic stantibus, concluindo pela inexistência de inconstitucionalidade na parte em que condiciona a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento pelo arguido do imposto em dívida e respectivos acréscimos.

XIV - Entende-se que nestes casos não é de fazer corresponder o período de suspensão ao da medida da pena substituída, como o impõe o actual art. 50.º, n.º 5, do CP, por se estar face a um caso especial, em que a condição é imposta, quando nos termos gerais de uma faculdade, sendo que a aplicação do novo regime, no concreto, redundaria em agravamento da situação do arguido.

XV - No caso presente, em obediência a um critério de razoabilidade por que tem de pautar-se esta forma de reparação penal forçada, optar-se-á pela solução de não correspondência de prazos.

XVI - Conforme o n.º 2 do art. 51.º do CP, os deveres impostos na suspensão não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir, consagrando-se o princípio da razoabilidade a que tem de obedecer a imposição dos deveres.

XVII - Ao impor a condição de pagamento ou outra, o juiz deve averiguar da possibilidade de cumprimento dos deveres impostos, ainda que, posteriormente, no caso de incumprimento, deva apreciar da alteração das circunstâncias que determinaram a impossibilidade, para o efeito de decidir sobre a revogação da suspensão. Não devem ser impostos ao arguido deveres, nomeadamente o de indemnizar, sem que seja viável a possibilidade de cumprimento desses deveres.

XVIII - Por estas razões, suspender-se-á a execução da pena de prisão imposta pelo período de 3 anos, sob a condição de o arguido recorrente pagar o imposto em falta no referido montante de € 81 987,22 e acréscimos legais.

XIX - A Lei 64-A/2008 alterou o n.º 1 do art. 105.º do RGIT nos termos...

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