Acórdão nº 2277/03.0TTPRT.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 01 de Março de 2010

Magistrado ResponsávelVASQUES DINIS
Data da Resolução01 de Março de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA A REVISTA Sumário : I - A noção de justa causa contida no artigo 9.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro (LCCT) – aplicável in casu, visto o despedimento do Autor ter ocorrido antes de 1 de Dezembro de 2003 – pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: um comportamento ilícito e culposo imputável ao trabalhador; a impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação de trabalho e o nexo de causalidade entre aquele comportamento e tal impossibilidade.

II - A ilicitude consiste na violação, pelo trabalhador, seja por acção seja por omissão, de deveres contratuais, principais ou secundários, ou ainda de deveres acessórios de conduta, derivados da boa fé no cumprimento do contrato.

III - A culpa – que deve ser apreciada segundo o critério consignado no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, o que, no quadro da relação jurídica laboral, significa um trabalhador normal, colocado perante o condicionalismo concreto em apreciação –, tem de assumir uma tal gravidade objectiva, em si e nos seus efeitos, que, minando irremediavelmente a confiança que deve existir entre as partes no cumprimento do contrato com o carácter fiduciário, intenso e constante, do contrato de trabalho, torne inexigível ao empregador a manutenção do contrato de trabalho.

IV - A inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho verificar-se-á sempre que, face ao comportamento do trabalhador e às circunstâncias do caso, a subsistência do vínculo fira de modo violento a sensibilidade e liberdade psicológica de uma pessoa normal, quando colocada na posição real do empregador.

V - A impossibilidade prática e imediata da relação de trabalho é o elemento que constitui o critério básico de justa causa, sendo necessário um prognóstico sobre a viabilidade das relações contratuais para se concluir pela idoneidade ou inidoneidade da relação para prosseguir a sua função típica e a averiguação da existência da impossibilidade prática da relação de trabalho ou da “inexigibilidade” da sua subsistência deve ser feita em concreto, à luz de todas as circunstâncias que no caso se mostrem relevantes, mediante o balanço dos interesses em presença, e pressupõe um juízo objectivo, segundo um critério de razoabilidade e normalidade, só podendo afirmar-se a impossibilidade da subsistência da relação de trabalho quando, à luz de um tal juízo, se conclua que a ruptura é irremediável e, portanto, nenhuma outra medida se revela adequada a sanar a crise contratual aberta pelo comportamento do trabalhador.

VI - Na acção de impugnação judicial do despedimento, a entidade empregadora apenas pode invocar factos constantes da decisão final proferida no processo disciplinar, competindo-lhe a ela a prova dos mesmos – artigo 12.º, n.º 4, da LCCT –, e incumbindo ao trabalhador a invocação e a prova dos factos impeditivos da virtualidade extintiva do contrato própria dos comportamentos integradores da justa causa descritos na referida decisão final, designadamente dos factos reveladores de desproporcionalidade ou desigualdade de tratamento disciplinar (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).

VII - Apesar de o trabalhador ter, com a sua conduta, violado o dever de executar as suas funções com zelo e diligência e tenha desobedecido a uma nova instrução provinda da entidade empregadora, a verdade é que tal conduta não assume gravidade tal que impeça a manutenção do vínculo laboral, face à permissividade que na entidade empregadora se gerou quanto ao incumprimento da enunciada instrução, tanto mais que o trabalhador, poucos dias antes da instauração do procedimento disciplinar, havia manifestado a sua vontade de rescindir o contrato e a aplicação da sanção expulsiva foi tomada cerca de mês e meio antes de a rescisão se tornar eficaz.

VIII - A apresentação da declaração de rescisão contratual com aviso prévio só produz efeitos no final do prazo respectivo, podendo o signatário revogar a declaração de rescisão até ao 2.º dia útil seguinte à data da produção dos seus efeitos (artigos 38.º, n.º 1 e 39.º da LCCT e 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38/96, de 31 de Agosto), mantendo-se a relação laboral em vigor, na pendência do aviso prévio, com todos os direitos e obrigações das partes, e, podendo, no decurso do respectivo período, o desenvolvimento do contrato gerar situações anómalas, justificativas do rompimento antecipado do vínculo, a qualquer das partes é permitido pôr-lhe termo com justa causa.

IX - Embora o trabalhador tenha manifestado a vontade de rescindir o contrato de trabalho que mantinha com a entidade empregadora, a verdade é que tal manifestação de vontade se inutilizou por via da cessação, por iniciativa desta, do mencionado vínculo em data anterior àquela em que a aludida declaração de rescisão produziria efeitos.

X - Assim, o contrato de trabalho não cessou – nem rigorosamente se pode afirmar que inevitavelmente cessaria, atenta a possibilidade de revogação da declaração de rescisão – por virtude da carta de rescisão emitida pelo trabalhador e cujos efeitos se produziriam em 7 de Outubro de 2003, tendo, isso sim, terminado em 28 de Agosto de 2003, data em que o trabalhador recebeu a comunicação de despedimento e a partir da qual cessaram os deveres e direitos recíprocos das partes emergentes da sua vigência, neles se compreendendo os implicados na carta de rescisão.

XI - Deste modo, a posterior declaração de ilicitude do despedimento não pode ter como consequência a repristinação da eficácia da carta de rescisão, em termos de se ter por verificada a cessação do contrato na data nela prevista e, por conseguinte, os efeitos da referida declaração de ilicitude não sofrem qualquer restrição pelo facto de ter existido a comunicação de rescisão, havendo de aplicar-se, na sua plenitude, o disposto no artigo 13.º, da LCCT.

XII - O abuso do direito, consagrado no artigo 334.º, do Código Civil, consiste no exercício ilegítimo de um determinado direito, traduzindo-se a ilegitimidade em actuação, por parte do respectivo titular, que manifestamente exceda os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito.

XIII - Não tendo a Ré (entidade empregadora) provado, nem alegado, como lhe competia, que o comportamento do Autor (trabalhador), consubstanciado no envio da carta de rescisão, tenha originado uma situação objectivamente geradora de legítima expectativa, por parte daquela, de que este não iria, caso, posteriormente, viesse a ser alvo de despedimento, a invocar a ilicitude deste e a exercer os direitos emergentes de despedimento ilícito, não pode afirmar-se ter o Autor agido com abuso do direito ao vir exercer, precisamente, os direitos emergentes do despedimento que reputou de ilícito.

XIV - Para além do mais, os direitos que assistem ao Autor e que emergem do despedimento ilícito que foi alvo decorrem que um acto ilícito cometido pela Ré, pelo que não há fundamento de facto e de direito para se considerar que a dedução da pretensão, nesta acção, excede manifestamente os limites dos ditames da boa fé, dos bons costumes e, menos ainda, do fim económico ou social do direito às retribuições na medida pretendida pelo Autor.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I 1.

No Tribunal do Trabalho do Porto, em acção com processo comum, intentada em 23 de Outubro de 2003, AA demandou BB - Sociedade Correctora, S.A, pedindo que se: a) Declare a ilicitude do despedimento operado pela Ré na sequência de processo disciplinar de que foi alvo; b) Condene a Ré a: 1) Pagar-lhe todas as retribuições desde 30 dias antes da propositura da presente acção, até ser proferida a sentença, incluindo férias, subsídios de férias e de Natal; 2) Readmiti-lo no seu posto de trabalho, para exercício de funções idênticas às que desempenhava anteriormente ao despedimento, com as mesmas condições de trabalho, a não ser no caso de optar pela indemnização; 3) Pagar-lhe a retribuição das férias vencidas e ainda não gozadas ao tempo do despedimento, no montante de € 6.075,53; 4) Pagar-lhe as férias, subsídios de férias e de Natal, proporcionais ao tempo de trabalho prestado no ano de 2003, no montante de € 12.151,05; 5) Pagar-lhe os prémios de desempenho vencidos respectivamente em 1 de Janeiro de 2003 e 1 de Julho de 2003, no total de € 27.755,85; 6) Pagar-lhe o trabalho suplementar prestado, no montante de € 41.022,00, e a 7) Pagar-lhe os juros moratórios legais até integral pagamento.

Alegou, para tanto e em síntese, que: — Foi admitido ao serviço da Ré em 1 de Junho de 2000 para exercer as funções inerentes à categoria de Corretor de Bolsa, mediante retribuição, que em Agosto de 2003 se fixou em € 2.583,77, acrescido de subsídio de refeição diário de € 5,09, bem como do valor médio mensal de € 680,00, pago 12 vezes por ano, contra a entrega de facturas ou recibos de combustível e refeições, constituindo os denominados reembolsos de combustível e refeições, componente fixa da retribuição; — Tendo, outrossim, sido atribuído ao Autor, seu cônjuge e descendentes, um seguro de saúde, concedida a utilização em exclusivo de uma viatura, no valor de € 33.000,00, escolhida pelo próprio, sem quaisquer restrições à sua utilização, e um “prémio de desempenho” correspondente a 7% do montante mensal das receitas auferidas pela Ré a título de taxa de corretagem, pelos seus serviços de intermediação em transacção de valores mobiliários, relativamente aos clientes que tivessem sido angariados pelo Autor, desde que os mesmos constassem da lista anexa ao contrato e, bem assim, 2,5% do montante mensal das receitas auferidas pela Ré, a título de taxa de corretagem, pelos seus serviços de intermediação em transacção de valores...

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