Acórdão nº 2217/07.8TBVCD.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 01 de Março de 2010

Magistrado ResponsávelURBANO DIAS
Data da Resolução01 de Março de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: NEGADA A REVISTA Sumário : Para que se possa, com legitimidade, falar em enriquecimento sem causa, é necessário que haja uma deslocação patrimonial injustificada.

Tendo o A. pago a totalidade da casa que iria servir de habitação a seu filho e à sua futura nora, como uma pura liberalidade, não é legítimo que, posteriormente, quando o casal entrou em fase de divórcio, invoque o instituto do enriquecimento sem causa, como forma de obter desta última metade do que despendeu.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I.

AA intentou, no Tribunal Cível da Comarca de Vila do Conde, acção ordinária contra BB, com vista a obter a sua condenação na restituição da quantia de 57.387,80 € e juros, desde a citação, ou, subsidiariamente, a restituir a metade indivisa da fracção descrita no artigo 11º da petição.

Fundamentalmente, alegou que foi ele quem pagou integralmente o preço da dita fracção e de alguns melhoramentos nela introduzidos, fazendo-o com a intenção de não prejudicar a relação que o seu filho tinha com a R., com que, mais tarde, viria a casar. A dita fracção acabou por ser registada em nome do casal, certo que este, pouco tempo após o casamento, se separou, correndo em juízo acção de divórcio litigioso com vista à sua dissolução.

A R. contestou, pugnando pela total improcedência da acção já que, no seu entendimento, o que houve foi, da parte do A., uma pura liberalidade não só a seu favor como também no interesse do filho do A., seu ainda marido.

Após a apresentação dos demais articulados, a acção foi julgada improcedente, no saneador.

Em vão, apelou o A. para o Tribunal da Relação do Porto.

Continuando inconformado, pede, ora, revista, a coberto das seguintes conclusões com que fechou a sua minuta: 1 - Carece entendimento da Relação de que a presente acção não deva prosseguir para julgamento, simplesmente porque os factos que, logo na fase do saneamento, se puderam ter como assentes, justificam a conclusão a que se chegou na decisão recorrida de 1ª instância, como refere o acórdão em crise, no seu parágrafo final.

Como se essa fosse a única solução possível...

2 - A decisão recorrida viola o disposto no artigo 510º, nº 2 do Código de Processo Civil, nos termos do qual o juiz apenas pode proferir despacho a conhecer imediatamente o mérito da causa, sempre que o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas.

3 - Tal só seria admissível se toda a matéria de facto estivesse provada (o que não é o caso), se todos os factos controvertidos carecessem de prova documental (o que também não é o caso), ou, finalmente, se a matéria controvertida fosse indiferente para qualquer das soluções jurídicas plausíveis.

4 - Como se demonstrou supra nas nossas alegações, a matéria de facto alegada pelo A. que permanece por provar não é indiferente, de todo, para qualquer das plausíveis e possíveis soluções de direito do presente pleito.

5 - Ainda que a Relação só tenha admitido como possível uma única hipótese, dispensando até mais prova, o certo é que muitas soluções jurídicas seriam aplicáveis à situação sub judice, dependendo da prova que viesse a ser feita da matéria controvertida.

6 - Acresce que a solução jurídica encontrada choca com o sentimento comum de justiça, chocando até com a solução que vem sendo dada pelos nossos tribunais, em situações em tudo idênticas, mas no âmbito do casamento (comunhão de adquiridos), em que, feita a prova de que o preço do imóvel foi pago por um progenitor e que este apenas quis doar o dinheiro ao filho, então o bem é considerado bem próprio do filho.

7 - Como decorre da simples leitura dos articulados existe matéria controvertida com interesse para a decisão da causa, susceptível de a influenciar num ou noutro sentido.

8 - O acórdão recorrido diz que o A. é que tinha o ónus de alegação e prova de que a razão que invoca como causa de transferência patrimonial operada não abrangeu a R., mas não lhe reconhece o direito a provar o que, para tanto, alegou.

9 - Está em causa, bem vistas as coisas, o próprio direito de acção do A., constitucionalmente garantido, donde a interpretação feita do artigo 510°, nº 2, do Código de Processo Civil, que permite conhecer do mérito da causa, mesmo quando ainda existe matéria controvertida relevante para diversas soluções de direito, é inconstitucional, por violação material do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, o que se invoca expressamente.

10 - O aresto em crise viola, ainda, o regime do enriquecimento sem causa, ao não considerar, sequer, a hipótese de que a matéria alegada e ainda controvertida poderia ser subsumível ao artigo 473º do Código Civil, na medida em que este regime tem na sua génese a ideia de que pessoa alguma deve locupletar-se injustificadamente à custa alheia.

11- Já está provado, por confissão, o enriquecimento e que esse enriquecimento da R. ocorreu à custa de outrem, o ora recorrente.

12 - Pretende o A. provar – se lhe for dada oportunidade – que não existe causa ou motivo que justifique o pagamento da quota-parte da R. no apartamento.

13 - Conforme foi alegado pelo A. na sua p.i. – e que só não provou porque tanto não lhe permitiram – foi sua intenção, ab initio, comprar aquele apartamento e colocá-lo em nome do filho que, à data, era solteiro. Fez o mesmo para outros filhos.

14 - Conforme alegou na petição, o A. não quis colocar entraves ao bom relacionamento do filho com a, então, namorada, sendo certo, porém, que nunca foi sua intenção dar o que quer que fosse à R., nem entre ele e a R. existia, sequer, uma grande relação de amizade e de proximidade, como a R. alega na sua contestação.

15 - Conforme alegou na petição, o A. tinha negociado aquele apartamento nos inícios de 2002 para o filho. Nas negociações que teve com o construtor exteriorizou, desde logo, essa sua vontade (por isso o contrato-promessa respectivo foi outorgado pelo seu filho, em Fevereiro de 2002, conforme documento que o A. pretendia juntar aos autos, oportunamente).

16 - Tudo isso releva para a determinação da real intenção do A., e infirma a conclusão extraída pelas instâncias de que a sua intenção foi de doar ao filho e à namorada do filho, ora R..

17 - Toda essa factualidade, que o A. alegou na petição e que pretendia demonstrar – se lhe fosse permitida a prova – constituiria o «comportamento correspondente à vontade» referido no acórdão recorrido (p.18), como indispensável de existir para ser juridicamente relevante, e que o acórdão não vislumbrou na matéria assente (claro, estava na matéria impugnada).

18 - Fazendo apelo a critérios de normalidade e razoabilidade, a conclusão a que chegaram as instâncias, sem terem apreciado a totalidade da matéria controvertida, é desajustada ao critério do bonus pater familias.

19 - Sempre cumpriria indagar, em sede de prova, se realmente existia entre ele a R. algum relacionamento, nomeadamente de amizade, que justificasse essa liberalidade.

20 - Tal como bem refere o acórdão recorrido, citando jurisprudência pacífica dos nossos Tribunais Superiores, é na análise do que foi esse relacionamento directo ou imediato entre as partes que se poderá encontrar a existência ou ausência de uma causa justificativa de enriquecimento, já que, abstracta ou remotamente toda a deslocação patrimonial tem uma causa ou razão de ser.

21 - Se ao A. fosse dado poder fazer a prova da factualidade alegada, seria forçoso concluir que houve um enriquecimento da R. à custa do património do A. injusto, ilegítimo, e, como tal, ajurídico.

22 - Na prova do que alegou, a pretensão do A. deveria ser merecedora da tutela do direito, devendo a R. ser condenada a lhe restituir tudo aquilo com que injustamente se locupletou, à sua custa, nos termos do citado normativo.

23 - A obrigação de restituir fundada em locupletamento injusto permite corrigir, precisamente situações como esta, que ofendem os princípios fundamentais da justiça comutativa.

24 - Se ao A. fosse dado poder fazer a prova da factualidade alegada, a R. não ficar, com certeza liberta da obrigação de restituir ao A. aquilo com que injustificadamente se enriqueceu, sob pena de violação dos mais elementares princípios de Direito.

25 - Em face do exposto conclui-se ser evidente que existe matéria controvertida que pode não ser indiferente para a solução jurídica do pleito.

26 - Reconduzir toda a questão, de forma simplista e fazendo tábua rasa da matéria alegada pelo A. (melhor ou pior) à questão da doação, e concluir – contrariamente ao que o A. alegou na petição – que teve intenção de fazer uma liberalidade à R., uma estranha – choca a consciência jurídica geral.

27 - Não pode o acórdão em crise ser mantido.

A recorrida contra-alegou em defesa da manutenção do aresto impugnado.

II.

As instâncias deram como provados os seguintes factos: 1. O A. é pai de...

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