Acórdão nº 08S1901 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 22 de Abril de 2009

Magistrado ResponsávelMÁRIO PEREIRA
Data da Resolução22 de Abril de 2009
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: I - As autoras AA e BB, patrocinadas pelo Ministério Público, intentaram a presente acção especial de acidente de trabalho, contra os réus CC e mulher DD, pedindo que estes fossem condenados a pagar-lhes a reparação das despesas de funeral de EE, marido e pai das autoras, respectivamente, e as pensões e prestações que discriminaram, acrescidas de juros de mora.

Alegaram, para tal, em síntese: No dia 1 de Agosto de 2001, o EE foi vítima de acidente de trabalho mortal, quando, numa casa em reconstrução, trabalhando para os RR., inadvertidamente ingeriu um líquido corrosivo, ácido de soldar, que se encontrava dentro de uma garrafa, que aí havia sido deixada, depois de ter sido utilizada em trabalhos nessa obra pelos réus nos dias anteriores, num armário sobre a banca da cozinha.

O acidente ocorreu porque os réus não cumpriram os seus deveres em matéria de segurança no trabalho, tendo abandonado o frasco com produto corrosivo e tóxico num armário aparentando-o por produto consumível e sem que das suas presença, características e função tivessem dado conhecimento ao trabalhador.

Os réus não tinham a responsabilidade infortunística transferida para qualquer seguradora.

Os réus contestaram, invocando que não se verificou qualquer acidente de trabalho, e alegaram factos tendentes a descaracterizá-lo.

Concluíram pela sua absolvição do pedido.

Saneada, condensada e discutida a causa, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou os réus a pagarem: a) À autora AA, a pensão anual e vitalícia no montante de 1.911,87 euros, com início em 2 de Agosto de 2001 até à idade da reforma, e de 2.549,16 euros após esta ou quando afectada de doença física ou mental que lhe afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho, sendo o valor do subsídio de férias e de Natal no valor de 1/14 cada da pensão anual e no mês de Maio e Novembro; b) À autora BB, a pensão anual e temporária no montante de 1.274,58 euros, a partir de 2 de Agosto de 2001, sendo o valor do subsídio de férias e de Natal no valor de 1/14 cada da pensão anual e no mês de Maio e Novembro; c) A cada uma das autoras, a quantia de 2.005,14 euros, a título de subsídio por morte.

d) À autora AA, 2.673,52 euros, a título de reparação com as despesas do funeral com transladação; e) Juros de mora à taxa legal.

Na sequência de reforma requerida pelas autoras, foi proferida, a fls. 273, decisão que rectificou a sentença "passando a constar a pensão anual e vitalícia agravada por inobservância das regras de segurança: - 3.823,74 euros para AA; - 2.549,16 euros para BB".

Apelaram os RR., pedindo a sua absolvição do pedido.

Por seu douto acórdão, a Relação do Porto concedeu provimento ao recurso, tendo revogado a sentença e absolvido os RR. do pedido.

II - Agora inconformadas as AA., interpuseram a presente revista, em que formularam as seguintes conclusões: 1ª- A Relação, fundamentando-se no disposto no art. 646°, n° 4, do CPC, eliminou o advérbio de modo «inadvertidamente», no n° 4 da matéria de facto provada em 1ª instância, escrevendo que se tratava de matéria conclusiva.

  1. - O art. 646°, n° 4, do CPC estatui que se têm por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito, bem como as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos, ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.

  2. - Os juízos de valor sobre matéria de facto (que não são factos puros, nem questões de direito, mas, como o nome indica, ilações extraídas sobre matéria de facto, por recurso a critérios como os do bonus pater familiae, ou do homo prudens), não devem ser incluídos na base instrutória.

  3. - Mas, segundo a melhor doutrina e a jurisprudência, se os juízos de valor sobre matéria de facto tiverem sido incluídos na base instrutória, não poderá a resposta do tribunal colectivo sobre essa matéria ser tida como não escrita ao abrigo do disposto no art. 646°, n° 4, do CPC, visto não se tratar de questões de direito.

  4. - Assim, deverá ser revogada a decisão da relação que eliminou o advérbio de modo «inadvertidamente» no n° 4 da matéria de facto provada em 1ª instância.

  5. - Segundo a matéria de facto provada, o R. marido, que trabalhava por conta própria, na reconstrução de uma casa, em Vinhais, contratou o sinistrado, um alcoólico crónico, a pedido deste, para desempenhar funções auxiliares, como servente da construção civil; alguns dias depois de começar a trabalhar nessa obra, no dia 1 de Agosto de 2001, logo após o início do período laboral, o sinistrado ingeriu inadvertidamente ácido de soldar (ácido clorídrico, uma substância corrosiva) que o réu marido deixara dentro de uma garrafa, guardada numa caixa de papelão, no armário colocado sobre a banca da cozinha.

  6. - A Relação entendeu que, sendo o sinistrado um trabalhador adulto, lhe era de exigir o cuidado de não meter à boca e tomar um gole de um líquido, contido numa garrafa qualquer, guardada numa caixa de um armário da cozinha da casa em que efectuavam obras de reparação e que, a omissão deste cuidado, constituía uma negligência grosseira do sinistrado, descaracterizadora do acidente de trabalho.

  7. - Porém, o sinistrado era um alcoólico crónico o que, como é um facto notório, numa terra como Vinhais, o R. não podia desconhecer, até porque não era a primeira vez que ele para si trabalhava.

  8. - É, também, um facto notório que os alcoólicos - que são doentes mentais, sofrendo de uma dependência de álcool - se sentem compelidos a beberem de qualquer garrafa que lhes pareça conter uma bebida alcoólica; e, uma garrafa guardada num armário da cozinha é, para um alcoólico, apercebida como uma garrafa contendo uma bebida alcoólica.

  9. - O R. marido, que tinha como empregado auxiliar/servente um alcoólico, devia ter tido o cuidado de não deixar a garrafa com líquido de soldar guardada no armário da cozinha; 11ª- E, não tendo tido este cuidado, o R. marido omitiu o dever geral de cuidado, exigível a quem contrata um alcoólico crónico como seu trabalhador, 12ª- Omitindo, ainda, o dever de avaliar os riscos e verificar a existência de agentes químicos perigosos para a segurança e saúde do seu trabalhador, mais tarde especificamente previsto nas disposições combinadas dos arts. 3°, als. a) e b) i. (sic) e 4° do DL n° 290/2001 (que transpôs para o ordenamento jurídico nacional a Directiva n° 98/24/CE, do Conselho, relativa à protecção da saúde e segurança dos trabalhadores contra os riscos ligados à exposição a agentes químicos no trabalho), mas que já resultava do Anexo I da Portaria n° 732-A/96 e do art. 8° do DL n° 441/91, interpretados em conformidade com a Directiva n° 98/24/CE.

  10. - A jurisprudência densificou o conceito de «negligência grosseira», previsto no art. 7º, n° 1, al. b), da Lei n° 100/97 e no n.° 2 do art. 8.° do Decreto-Lei n.º 143/99, como um comportamento que, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta, é inútil, indesculpável, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência.

  11. - É jurisprudência pacífica que, para a descaracterização do acidente de trabalho, é exigido que a culpa grave e indesculpável da vítima deva ser a causa exclusiva do acidente de trabalho.

  12. - O douto acórdão recorrido, decidindo ao arrepio de jurisprudência anterior do STJ sobre a questão da ingestão involuntária de um líquido cáustico no tempo e local de trabalho não impedir a reparação do acidente de trabalho, violou o disposto no art. 646°, n° 4, do CPC, na Portaria n° 732-A/96 e no art. 8° do DL n° 441/91, bem como os arts. 7°, n.º 1, alínea b), da lei n.º 100/97, e 8°, n. ° 2, do Decreto-lei n. ° 143/99.

  13. - Por tudo isto, o douto acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por decisão que condene os RR. a reparar o acidente de trabalho sofrido pelo falecido marido e pai das ora recorrentes, aliás, como decidido na sentença de 1ª instância proferida nos autos.

Os RR. contra-alegaram, defendendo a confirmação do julgado.

III - Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Como vimos, a sentença decidiu ter havido acidente de trabalho, que não descaracterizou, antes considerou, na decisão que reformou a sentença, devido a violação de normas de segurança, no trabalho, por parte do empregador, e, por isso, condenou os RR. na respectiva reparação, a título agravado.

O acórdão recorrido, no que aqui interessa, suprimiu do facto 4 o advérbio "inadvertidamente" e considerou descaracterizado o acidente de trabalho, tendo, por isso, absolvido os RR. do pedido.

Na revista, as AA. impugnam esses 2 segmentos decisórios e pedem a repristinação da decisão constante da sentença.

São, pois, essas as questões que, levadas às conclusões, constituem objecto do recurso (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do CPC) -(1) .

O acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos: 1. Os réus são casados entre si e o réu marido dedica-se à actividade de construção civil, nomeadamente de construção e recuperação de casas, revertendo a sua actividade em proveito comum...

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