Acórdão nº 06P4684 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 25 de Junho de 2008

Magistrado ResponsávelSOUTO DE MOURA
Data da Resolução25 de Junho de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Em processo comum (Pº 1934/04.9PAPTM), a 5/7/2006, o Tribunal Colectivo do 2.º Juízo Criminal de Portimão julgou improcedente a acusação pública, e dela absolveu o arguido AA, nascido a 4/10/1980 em Moçambique, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos arts. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-01, com referência à Tabela I-C a ele anexa, 2.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 30/2000, de 29-11, e 9.º da Portaria n.º 94/96, de 26-03 e respectivo mapa anexo. Desta decisão absolutória interpôs recurso o Mº Pº pretendendo uma condenação pelo crime imputado na acusação.

A - DECISÃO RECORRIDA 1 - MATÉRIA DE FACTO a) Factos provados (transcrição): "1-No dia 10 de Outubro de 2004, pelas 0130m, na Av. ......., em Portimão, o arguido trazia consigo resina de cannabis com o peso líquido de 26,93 9 gramas.

Tinha o arguido também em seu poder a quantia de €65,00.

2-O arguido conhecia as propriedades estupefacientes da resina de cannabis e, apesar disso, quis ter em seu poder, mas exclusivamente para o seu consumo, uma quantidade desse produto que excedia o necessário para o seu consumo num período de dez (10) dias.

Sabia que tal conduta era proibida por lei e tinha liberdade para se motivar de acordo com esse conhecimento.

Da discussão da causa provou-se ainda: O arguido tem 25 anos e reside actualmente com uma companheira.

Tem 5 filhos, 4 dos quais a seu cargo.

O arguido é destituído de pretérito criminal.

Trabalha como servente de pedreiro.

É consumidor habitual de cannabis há cerca de 10 anos, consumindo diariamente tal substância." b) Factos não provados (transcrição) "Não se provou que o arguido estivesse consciente do perigo de disseminação de consumos que tal detenção representava." 2 - DIREITO Foi o seguinte o enquadramento jurídico-penal do comportamento do arguido feito no acórdão recorrido (transcrição): "O arguido está acusado da prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes pp. pelos art. 21 n° 1 do DL 15/93 de 22.01, com referência à Tabela I-C, anexa ao DL n° 15/93 de 22/01 e L 30/2000 de 29/11, e art. 9º Portaria 94/96, de 26/03 e respectivo mapa anexo.

Resulta dos factos provados, que o arguido detinha a cannabis que lhe foi apreendido, exclusivamente para o seu consumo, o qual lhe dava para o seu consumo pessoal, para um período de mais de dez dias.

Não resulta, (nem sequer lhe eram imputados factos na acusação) qualquer acto de venda ou cedência por banda do arguido, da substância que lhe foi apreendida (não destinada ao consumo).

Atenta a data da pratica dos factos (10/10/2004), ressalta desde logo que estamos agora no âmbito da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, a qual veio descriminalizar o consumo de estupefacientes, nos termos do disposto no artigo 2° n°1, tendo revogado o art. 40° do DL 15/93 de 22.01 - Lei da droga de 22.01 (art. 28° da referida lei, excepção feita ao cultivo).

Porém, ao fazê-lo não contemplou a hipótese de se exceder o consumo médio individual durante o período de dez (10) dias.

Nestes termos se coloca agora a questão de se saber como qualificar (se for esse o caso) a conduta do arguido AA, pois provou-se que a quantidade de cannabis que este detinha, dava para o seu consumo pessoal, (e exclusivamente) para o período de cerca de dois meses.

Logo após a entrada em vigor da Lei supra referida (3 0/2000 de 29 de Novembro), se constatou, que o legislador não se tinha debruçado sobre as situações em que alguém detém exclusivamente para o consumo pessoal, quantidade de substância proibida (contidas nas diversas tabelas anexas ao DL.

15/93 de 22.01- Lei da droga de 2.01) que exceda os 10 dias.

Ora, face ás diversas situações emergentes de processos judiciais, logo os Tribunais Portugueses em sentenças e acórdãos, evidenciaram desde logo uma falta de unanimidade em "julgar", tal questão (sendo também questão actualmente largamente esgrimida na doutrina).

E tal, como não podia deixar de ser, em virtude, (e como já atrás se enfatizou) do legislador, ao descriminalizar o consumo (ao revogar o artigo 40º do DL 15/93 de 22.0 1- Lei da droga, com excepção do cultivo), não ter contemplado, a hipótese de se exceder o consumo para além do período de dez (10) dias.

Face a tal lacuna, os Tribunais Portugueses, vieram a decidir a mesma questão de diversas formas, gerando um natural "desassossego", (podendo suscitar-se aqui duvidas, e "ab initio" e desta maneira, e considerando-se o principio da igualdade, consagrado no art.13° da Constituição da República Portuguesa, bem como o disposto no art. 29° da nossa Constituição, mais concretamente nos seus n°s 1 e 3), nomeadamente na comunidade jurídica, originando os naturais e legais recursos (face à disparidade das decisões judiciais), já decididos quer no Supremo Tribunal de Justiça, quer no Tribunal Constitucional.

(vide entre outros, Acórdão do Tribunal Constitucional, no Processo 776/2002, 2 secção, de 12 de Junho de 2003, sendo o Juiz Relator, Bravo Serra, acórdão este com voto de vencido da Dra. Fernanda Palma, e no STJ o Acórdão de 3.07.2003, no Processo n.° 1799/03, da 5ª secção, sendo o Juiz Conselheiro Relator o Dr. Santos Carvalho, também este acórdão com um voto de vencido do Sr. Juiz Conselheiro Abranches Martins, ambos in, http://www.dsi.pt/) Assim temos que o arguido AA está acusado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes, pp. pelo artigo 21° n. 1 do DL 15/93 de 22.01 - Lei da droga de 22.01, com referência à tabela I-C anexa, art. 2°, n. 1 e 2 da Lei 30/2000 de 29/11, e art. 9° da Portaria 94/96 de 26/03 e respectivo mapa anexo.

Os factos provados, e já referidos, levam à conclusão que o arguido não praticou o crime pelo qual vem acusado, nem qualquer outro, nem sequer uma contra-ordenação, e tal basicamente porque a Lei 30/2000 de 29/11 ao revogar o art 40° do DL 15/93 de 22.01 - Lei da droga de 22.01 (à excepção do cultivo), não previu situações como a dos autos em que se provou que o arguido detinha substância proibida, exclusivamente para o seu consumo pessoal para cerca de dois meses (logo para mais de dez dias).

Ora, o art. 28° da Lei 30/2000 de 29/11, já em vigor à data da prática dos factos (destes autos), revogou expressamente o art. 40 do DL 15/93 de 22.01 - Lei da droga de 22.01, excepto quanto ao cultivo.

Por outro lado, o n.° 1 do art. 2° da referida Lei veio punir como contra-ordenação o consumo, a aquisição e a detenção para consumo de produtos estupefacientes.

Mas logo o n.° 2 desse mesmo artigo 2°, veio restringir a aplicação da Lei aos casos em que estivesse em causa quantidade que não exceda o consumo médio individual durante o período de dez dias.

Revogou-se assim por um lado o art. 40° do DL 15/93 de 22.01 - Lei da Droga de 22/01 que previa todas as situações relacionadas com o consumo deixando, assim, de poder entender-se que se trata do referido crime (sem sequer se ter tido o cuidado de actualizar o art. 21° do referido DL, na parte em que refere"fora dos casos previstos no art. 40°) e, por outro lado, impossibilitou-se que se entendesse ser contra-ordenação, pois que excede a referida quantidade.(vide Ac. Proferido no proc. Comum Colectivo n.° 456/01 do 1º juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Portimão) Ou seja com as normas que temos, por ora, no nosso ordenamento Jurídico, ninguém pode ser condenado quer pela pratica de um crime (e na afirmativa, perguntamos: qual?), quer por uma contra-ordenação, quando se prove claramente, como no caso dos autos que o arguido detinha substância proibida para o seu consumo exclusivo, para mais de dez dias.

Pode-se aduzir que tal é um absurdo, pois pune-se através de contra-ordenação quem detiver para seu consumo pessoal substância proibida até 10 dias e iliba-se quem detiver maior quantidade daquela substância, que exceda assim os dez dias, mas sempre para o seu consumo pessoal.

No entanto, em vez de absurdo, poderíamos talvez, definir esta situação antes como uma lacuna da lei.

Daqui em diante dizemos nós, tem-se avançado então, e só com base na lacuna da lei, para as diferentes soluções Judiciais/ doutrinárias que adiante se farão referência, visando todas elas, mas de variadas maneiras, colmatar tal omissão legislativa.

Façamos então uma breve resenha: I-O Acórdão do Tribunal Constitucional de 12 de Junho de 2003, no processo n° 776/2002, da 2ª secção, (com voto de vencido), no qual se conclui que não é inconstitucional punir alguém pela pratica de um crime pp. pelo art. 25° do DL 15/93 de 22.01 - Lei da droga de 22.01, quando o agente detenha, sem para tal estar autorizado, uma quantidade de substâncias estupefacientes que seja superior à necessária para um consumo médio individual durante dez dias desde que destinada a seu exclusivo consumo.

(* voto de vencido da Drª Fernanda Palma, no qual e entre o mais, doutamente se refere " (...) Uma interpretação restritiva daquele preceito descriminalizador seria uma verdadeira redução teleológica proibida pelo Direito penal, pelo menos ao mesmo titulo que a analogia (art.s 29° n°1 e 3 da Constituição e 1° do Código Penal) II- Decisão no nosso Supremo Tribunal de Justiça no processo 1799/03, proferida em 03.07.2003, (relatado pelo Sr., Juiz Conselheiro Santos Carvalho) onde aliás doutamente se conclui pela pratica (em caso similar ao dos autos, ou seja detenção exclusiva de substância proibida...

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