Acórdão nº 08P901 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Junho de 2008

Magistrado ResponsávelMAIA COSTA
Data da Resolução18 de Junho de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. RELATÓRIO AA foi condenado, pelo Tribunal Colectivo do 2º Juízo da Maia, como autor material de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217°, n° 1 e 218°, n° 2, alínea a), do Código Penal (CP), na pena de 3 anos de prisão, sendo igualmente condenado no pagamento à assistente e demandante civil BB-Imobiliária e Construção, SA da quantia de 47 500 000$00, sendo a pena suspensa pelo período de 4 anos, com a condição de indemnizar a assistente dessa quantia, no prazo de 3 anos.

Foi também julgado parcialmente procedente o pedido cível formulado pela assistente, sendo o arguido condenado a pagar-lhe a quantia de 47 500 000$00 e a demandada CC, Lda a pagar a quantia de 75 000 000$00. O arguido interpôs recurso para a Relação do Porto, impugnando a matéria de facto e a matéria de direito. A Relação deu provimento ao recurso, alterando a matéria de facto e absolvendo o arguido, julgando ainda improcedente o pedido cível, dele absolvendo consequentemente o arguido e a demandada.

Desse acórdão recorre a assistente BB - Imobiliária & Construção, SA, que formula as seguintes conclusões:

  1. O douto acórdão da Relação do Porto viola as normas da lei processual penal atinentes à produção da prova em sede de recurso, nomeadamente, os artigos 127° e 410°, n° 2 do Código de Processo Penal.

  2. Não tendo apresentado nenhuma razão pertinente, fundada e relevante para alterar a matéria de facto, nos termos em que o fez, a Relação do Porto violou aberta e frontalmente o artigo 127° do Código de Processo Penal.

  3. Deve, por isso, considerar-se como válida e definitivamente adquirida a matéria de facto dada como provada pelo douto acórdão do Tribunal Colectivo da Maia.

  4. Nestes termos, deve condenar-se o arguido AA como autor de um crime de burla qualificada, (artigos 217° e 218°, n° 2, b) do Código Penal), nos precisos termos em que o fez o Tribunal de primeira Instância.

  5. Mesmo depois das correcções da matéria de facto impostas pelo douto acórdão da Relação, será sempre forçoso continuar a condenar o mesmo arguido pelo crime de burla qualificada: se não por acção, ao menos e seguramente, por omissão, nos termos dos artigos 217° e 218°, conjugados com o artigo 10°, n° l do Código Penal.

  6. A não se entender assim, será forçoso condenar o mesmo arguido pelo crime de abuso de confiança, nos termos do artigo 205°, n° 4, b) do Código Penal.

  7. Em conformidade com o decidido em primeira Instância, deve outrossim considerar-se procedente o pedido civil apresentado pela recorrente, condenando-se o arguido AA e a sociedade demandada "CC, Lda." ao pagamento da indemnização a seu tempo arbitrada.

O arguido respondeu nos seguintes termos: 1. Para que o STJ possa conhecer de qualquer dos vícios previstos no n° 2 do artigo 410° do CPP, é necessário que esses vícios resultem do próprio texto da decisão recorrida, sem o auxílio ou consulta de quaisquer outros elementos constantes do processo.

  1. Não tendo sido invocado pela recorrente que resulte do texto da decisão recorrida qualquer dos vícios elencados no n° 2 do artigo 410° do CPP inexiste fundamento para que possa ser tal decisão censurada quanto à alteração da matéria de facto por si introduzida.

  2. E resultando da própria apreciação da recorrente que a decisão recorrida faz sentido, é intrinsecamente consistente e compaginável com as regras da experiência, não se mostra sequer verificável qualquer de tais vícios nem violado o disposto nos artigos 410°, n° 2 e 127° do CPP.

  3. Não consta dos factos provados qualquer razão ou circunstância que se subsuma a qualquer hipótese da qual derive para o recorrido qualquer dever jurídico que ultrapasse a conduta provada e lhe impusesse comportamento diferente do ponto de vista da valoração jurídico-criminal.

  4. E deles não constam também quaisquer que permitam preencher a factualidade típica do crime de burla restando, nesta matéria, remeter por inteiro para o teor da própria decisão recorrida.

  5. Dos factos provados igualmente não constam quaisquer que permitam concluir que ao arguido tenha sido entregue pela recorrente coisa móvel por título não translativo de propriedade da qual este se haja ilegitimamente apropriado.

  6. Confirmando-se a decisão penal, nada há a alterar também no que ao pedido cível se decidiu, que assenta coerentemente nos factos provados.

  7. A decisão recorrida não violou qualquer preceito substantivo, devendo ser confirmada, negando-se inteiro provimento ao recurso.

Por sua vez, o sr. Procurador-Geral Adjunto na Relação disse: No seu recurso a assistente defende que o acórdão proferido no tribunal da Relação do Porto ofendeu as regras da experiência ao alterar a matéria de facto dada como provada no tribunal de primeira instância e ofendeu as normas dos artigos 217º e 205º, ambos do Código Penal por não ter considerado preenchidos os elementos típicos dos crimes aí previstos de burla e abuso de confiança.

No tribunal de primeira instância foi dado como provado que o arguido, com a intenção de obter benefício ilegítimo e com a intenção de prejudicar a assistente BB prometeu vender a esta, representada por DD, um prédio relativamente ao qual ocultou que não pertencia à firma que ele arguido representava, a CC, Lda, e que estava registado a favor da instituição financeira Imoleasing.

Para mais facilmente convencer a assistente BB que a firma por si representada, a CC, Lda, era a proprietária do prédio o arguido apresentou-se, perante o DD, acompanhado de um advogado que constituiu seu mandatário, mas que sabia ser amigo e advogado das empresas daquele DD.

O seu esquema ou artifício fraudulento teria consistido em afirmar contra a verdade, ser proprietário do prédio prometido vender ou, pelo menos em ocultar que o prédio estava registado a favor da Imoleasing e em, para melhor induzir o DD a aceitar o contrato promessa e a entregar-lhe dinheiro, fazer-se acompanhar pelo referido advogado aproveitando do bom relacionamento deste com a promitente compradora.

Considerou o tribunal da Relação que o tribunal de instância, ao dar como provado que o arguido, ao apresentar-se perante o DD, representante da assistente, o fez com intenção de melhor o enganar sobre a propriedade do imóvel contrariava as regras da experiência já que, por um lado a intervenção de um advogado, pessoa esclarecida e avisada relativamente à intervenção em negócios, nunca poderia corresponder, à luz da experiência comum, a uma intenção de ocultar a propriedade do imóvel, a não ser que se desse como provado que o próprio advogado estaria em conluio com o arguido.

Por outro lado estando em causa um contrato de compra e venda que permanece eficaz e válido entre as partes, este facto conflitua com a intenção de causar prejuízo.

Em conformidade, decidiu o tribunal da Relação alterar a matéria de facto provada nesta parte e deu como não provados os factos constantes da matéria de facto provada no acórdão da primeira instância, designadamente, sob os números 5 e 6.

Consequentemente absolveu o arguido da prática do crime de burla por se não verificar o necessário artifício fraudulento e a intenção de prejudicar, elementos essenciais ao preenchimento do tipo.

A evidência da razão que assiste aos Exmos senhores Desembargadores que subscreveram o acórdão agora recorrido dispensa melhores comentários.

Seria de todo irrazoável pensar que alguém, querendo enganar outrem sobre o conteúdo de um contrato, se servisse da colaboração de um advogado sem afirmar a conivência deste no artifício enganoso ou acreditando o agente que seria capaz de enganar o próprio advogado.

Alega agora a recorrente que, a não se dar como provada a actuação positiva do arguido no sentido do engano que lhe provocou, sempre teria de ser considerado que o engano foi provocado pela atitude passiva do arguido como resultou provado no ponto 9 do acórdão da primeira instância.

Foi dado como provado naquele ponto 9 que "Nunca o arguido referiu a DD que sobre o aludido prédio incidia o mencionado contrato".

Não cuidamos de discutir aqui se o crime de burla poderá consumar-se tomando o agente uma atitude nativa face ao engano da vítima, o que nos parece não poder acontecer já que se não vê como nesse comportamento passivo se concretizaria o nexo causal entre o engano e o engenho enganoso, sendo esse nexo causal, que se concretiza no termo "provocou", utilizado pelo legislador no artigo 217º do Código Penal essencial à integração do crime de burla.

De qualquer forma também não estaria demonstrada a intenção de prejudicar.

O contrato promessa de compra e venda é um contrato sinalagmático na medida em que dele resultam direitos e obrigações para ambas as partes e que estas consideram correspondentes em valor - arts. 424º e 830º , ambos do Código Civil.

Uma parte obriga-se a vender e a outra obriga-se a comprar determinada coisa pelo preço combinado.

Do contrato resultam efeitos que disciplinam o cumprimento do contrato ou o seu incumprimento e igualmente se impõem a ambas as partes.

Porque nenhuma das partes pode invocar o carácter alheio do bem prometido alienar, o contrato de compra e venda de bem alheio é válido entre partes - art. 892º do CC.

O contrato de leasing admite a cessão da posição contratual com a única exigência da comunicação à entidade credora e a anuência desta.

Por outro lado, sendo as obrigações que do contrato resultam idênticas em valor ou, pelo menos aceites como tal e sendo uma das consequências normais do contrato o não cumprimento, com os seus efeitos próprios, não se vê donde possa resultar para a assistente prejuízo não previsto pelo eventual não cumprimento.

Por aqui se vê que não é possível, na situação relatada no acórdão recorrido, ainda que não fosse alterada a matéria de facto relativa ao engenho enganoso, consubstanciar a prática do crime de burla previsto no artigo 217º do Código Penal.

É com alguma surpresa que vemos defender a prática do crime de abuso de confiança relativamente à apropriação da prestação entregue por...

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