Acórdão nº 06A542 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 28 de Fevereiro de 2008

Magistrado ResponsávelPAULO SÁ
Data da Resolução28 de Fevereiro de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: I.

- Grupo SM - CDM, Lda., intentou, em 21 de Março de 2002, na 6.ª Vara Cível de Lisboa, acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra o Banco AA, S.A.

(actualmente, Banco BST, S.A.

), pedindo que este fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 97.175,38, correspondendo € 88.573,74 a capital e € 8.601,64 a juros de mora vencidos, acrescida de juros de mora vincendos até efectivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, em síntese: É dona e legítima portadora de 20 cheques, todos sacados por FFC sobre a conta n.º 200000000000 do Banco AA, por si titulada.

Tais cheques foram entregues à A., para pagamento de uma dívida da sociedade VS - Vestuário e Bijuterias, Lda.

Apresentados a pagamento nos oito dias posteriores à data da respectiva emissão foram todos devolvidos com a a indicação de cheque revogado por justa causa - falta vício na formação da vontade ou simplesmente cheque revogado - falta vício na formação da vontade.

Esta devolução ocorreu em consequência do sacador ter dado ao Banco R. ordem de revogação dos cheques, o que este veio a aceitar e a cumprir, razão pela qual a A. nunca recebeu as quantias tituladas pelos cheques, estando, por conseguinte, desembolsada da quantia de € 88.573, 74, correspondente ao somatório dos vinte cheques.

Contestou o R., pugnando pela improcedência da acção.

A A. replicou.

O R. deduziu intervenção acessória provocada do sacador e da sociedade devedora. Admitida a intervenção, após audição da A. que não se opôs, informando que os chamados haviam sido declarados falidos.

Foram os intervenientes citados nas pessoas dos liquidatários judiciais, mas não constituíram mandatário nem contestaram.

Foi proferido despacho saneador, onde se fixaram os factos assentes e a base instrutória, tendo sido formuladas reclamações parcialmente atendidas.

Realizado o julgamento em sede de 1.ª instância, foram fixados os factos provados, sem qualquer reclamação e, a final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o R. a pagar à autora, a quantia de € 88.573,74, acrescida de juros de mora, desde a data de citação.

A 1.ª instância fundamentou a decisão, no essencial, deste modo: «Não obstante a justificação escrita no verso dos cheques se referir a revogação com justa causa, nenhum facto foi alegado e muito menos provado que a consiga fundamentar. Ao contrário, o Réu admitiu que houve uma mera ordem de revogação.» «A recusa operada foi ilegítima, face ao disposto no art. 32º LUC, pelo que, nos termos dos arts. 14º, parte do Decreto 13004 e 483º C. Civil, o Réu terá que responder por perdas e danos, caso se verifiquem os demais pressupostos da responsabilidade civil.» E, mais à frente (fls. 224): «...o Réu ao aceitar ilicitamente a revogação dos cheques (uma vez que este foi apresentado a pagamento no prazo legal), impediu que se verificasse o facto que implicava a obrigação de notificação do sacador para regularizar a situação dentro dos trinta dias referidos no art. 1º do DL 316/97 de 19-11 e comunicação ao Banco de Portugal» E concluiu (ibidem): «...o Banco sacado é responsável extracontratualmente, para com o portador do cheque, pelos danos resultantes do não pagamento do cheque na data da apresentação e pela sua não devolução, com indicação do motivo nele aposto, durante o mesmo prazo de apresentação a pagamento.» No caso, «o dano corresponde aos montantes dos cheques que a autora não recebeu da sacadora, acrescido de juros a contar da citação».

Inconformado, o R. interpôs da referida decisão recurso de revista - recurso per saltum -, requerendo o julgamento ampliado, visando a uniformização da jurisprudência.

O R. conclui, em síntese, as suas alegações do seguinte modo: 1. O Tribunal a quo considerou que o BST praticou um facto ilícito, por ter aceite uma ordem de revogação dos cheques juntos aos autos; 2. Contrariamente ao defendido na decisão da 1ª instância e à jurisprudência maioritária subsequente ao assento 4/00, de 17/2, entendemos que o Decreto 13004, de 1927 foi integralmente revogado com a ratificação por Portugal da Convenção de Genebra que aprovou a Lei Uniforme do Cheques; 3. Tal entendimento, tem sido defendido, entre outros, pelo Dr Fílinto Elísio (...), Prof Ferrer Correia e Dr António Caeiro (...) e mais recentemente pelo Prof. Germano Marques da Silva (...) e sempre foi o entendimento maioritário da jurisprudência dos nossos Tribunais superiores até à publicação do citado assento; 4. Face ao que decorre da LUC (arts 40º, 4º e 25º), o banco sacado não é obrigado cambiário e não pode aceitar ou avalizar um cheque, pelo que não responde perante o beneficiário; 5. Por outro lado, não intervêm na relação cartular estabelecida entre o sacador e o beneficiário, pelo que não pode ser atingido pelo cumprimento de uma ordem emanada pelo sacador, que ordena o não pagamento de um cheque que pôs a circular; 6. Sem prejuízo do anteriormente concluído, (...) o sacado responde, nos termos gerais da responsabilidade extracontratual, mas não por força do que dispõe a 2ª parte do art 14º do Decreto 13004, de 1927, que se encontra revogado; 7. Mas mesmo que se entenda que a 2ª parte do art 14º do Decreto 13004, de 1927, está em vigor, não pode o mesmo deixar de ser lido em articulação com o nº 2 do art 1170º do C.Civil, pelo que, em situações de justa causa, a revogação do cheque deve admitir-se; 8. Com a alteração introduzida pelo Decreto 316/97, de 19/11, no art 1º nº 2 do D/Lei 454/91, de 28/12, algo se alterou nas relações sacado/sacador, quanto ao princípio da livre revogabilidade, na medida em que os bancos, desde a entrada em vigor do referido Dec-lei 316/97, só podem aceitar ordens de revogação, sustentadas em justa causa.

  1. Ao passo que antes o sacado podia aceitar livremente uma ordem de revogação, com a publicação do referido D/L316/97, tal faculdade ficou limitada (...).

  2. Com a alteração da redacção do art 1º nº 2, levada a cabo pelo D/Lei 316/97, de 19/11, houve uma alteração significativa: onde se lia "saque ou participa na emissão de um cheque sobre uma conta cujo saldo não apresente provisão suficiente" passou a ler-se "verificada a falta de pagamento".

  3. A redacção actual "verificada a falta de pagamento", é mais abrangente e refere-se às várias hipóteses do cheque que apresentado a pagamento não é pago: falta de provisão, saque irregular, revogação, conta cancelada, etc.

  4. A redacção introduzida pelo D/Lei 316/97, conduz a um resultado de que o sacado não se pode desviar: obriga o sacado, perante uma situação de falta de pagamento (E NÃO EXCLUSIVAMENTE POR FALTA DE PROVISÃO, como ocorria antes da alteração da lei), a notificar o sacador para proceder à regularização do cheque não pago, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito (art 1º nº 2 e 1º-A nº 1, D/Lei 454/91).

  5. Ora existindo um DEVER imposto ao sacado, decorrente de norma expressa, de notificar o sacador para regularizar, em 30 dias, o cheque não pago (...), não é de admitir que o sacado aceite uma ordem de revogação.

  6. Se aceitar uma ordem de revogação, entra em contradição: por um lado, o banco sacado conforma-se com a ordem, mediante a aposição de um carimbo, no verso do cheque, com a indicação de "cheque revogado"; por outro lado, está obrigado, por lei, a notificar o sacador para vir regularizar o cheque, cuja ordem para não pagar aceitou como válida.

  7. Dito isto, o banco, não pode acatar uma ordem de revogação, pois se o fizer está potencialmente a incorrer em responsabilidade civil extracontratual (nº1, 2ª parte do art 483º do CC) 16. Mas como encontrar o ponto de equilíbrio entre este entendimento e as hipóteses em que o sacador tem razões (justa causa) para ordenar a revogação de um cheque que pôs a circular ou foi posto a circular (por ex. furto) contra sua vontade? 17. Pelo apelo à natureza jurídica das relações sacado/sacador (contrato do cheque) - mandato sem representação conferido no interesse do mandante e do mandatário - pode limitar-se a aceitação da revogação aos casos de "justa causa", nos termos do art 1170º nº 2 do C.Civil.

  8. A responsabilização do sacado não decorre, como já se viu, da lei cambiária - que a não admite! - nem de qualquer relação jurídica entre o sacado e o portador - que inexiste! - nem de se mostrar em vigor a 2ª parte do artº 14º do Dec 13004, mas de norma expressa que impede a observância de uma instrução de revogação, (art 1º nº2 e 1ºA nº1 Dec. Lei 454/91), que, é, todavia, afastada, em situações de justa causa, por força do que dispõe o nº2 do art 1170º do CC.

  9. Não é juridicamente aceitável defender-se a responsabilização civil, por aceitação de uma ordem de revogação, durante o período de apresentação a pagamento, existindo fundamento jurídico (justa causa) para o não pagamento (...) - ora é o que parece resultar do assento 4/00, onde se defende a irrevogabilidade total do cheque, durante o período de apresentação a pagamento.

  10. Defender-se posição diferente - ou seja, a total irrevogabilidade durante o período de apresentação a pagamento - é atentar contra o nº 2 do art 1170º do C.Civil.

  11. A relação banco/sacador traduz um mandato sem representação, uma vez que o banco actua em nome próprio (...).

  12. Mas o mandato é também conferido no interesse do mandatário, uma vez que há interesse por parte do banco no negócio de atribuição de cheques a clientes que previamente lhe confiam o dinheiro (...) 23. Hoje, é o conjunto de serviços prestados pelo Banco, a respectiva qualidade, associada à confiança de que o Banco concederá crédito, em caso de necessidade e de acordo com a capacidade de endividamento do cliente, que cimenta a relação bancária, que fideliza o cliente ao banco.

  13. Acresce que, actualmente, a entrega de uma carteira de cheques tem um custo para o sacador (...), o que, naturalmente, reforça o interesse do banco na prestação do serviço.

  14. Fica assim evidenciado que o banco (mandatário) tem interesse na relação que estabelece com o sacador...

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