Acórdão nº 07P3396 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 05 de Dezembro de 2007

Magistrado ResponsávelSANTOS CABRAL
Data da Resolução05 de Dezembro de 2007
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA veio interpor recurso da decisão que o condenou, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artºs. 21º nº1 do D.L. 15/93, de 22/1, com referência à tabela I-C anexa, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso que se transcrevem: 1 - A acusação deduzida pelo Ministério Público e confirmada pelo despacho de pronúncia é totalmente omissa quanto "à narração, ainda que sintética" (cfr. art. 283°, n° 3, alínea b), do C.P.P.) de um só acto concreto de tráfico de produtos estupefacientes que tenha sido efectivamente praticado pelo arguido, não sendo, designadamente, indicada qualquer quantidade daqueles produtos, por mínima que seja, que tenha sido comprada, vendida ou cedida pelo arguido.

2 - As afirmações constantes dos arts. 1º, 2°, 6°, 7°, 8°, 39° e 40° da acusação são vagas, genéricas e, de certo modo, meramente conclusivas, não estando, pois, em consonância com o disposto no art. 283°, n° 3, alínea b), do C.P.P., e gerando para o arguido a impossibilidade de uma defesa eficaz.

3 - O arguido nunca foi surpreendido na posse de qualquer produto estupefaciente, nomeadamente haxixe, nem a praticar qualquer dos factos referidos no citado art. 21° do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

4 - Por outro lado, no tocante aos "factos" descritos nos arts. 11° e 12° da acusação, os mesmos não passam de alegadas intenções, baseadas num suposto acordo entre o arguido e a "única" testemunha de acusação e co-arguido noutro processo, BB, as quais não chegaram a concretizar-se, nem é possível garantir que o viessem a ser, devido, por exemplo, à desistência ou arrependimento do arguido, pelo que não houve aqui a prática de qualquer ilícito criminal, já que tais "factos" ou, melhor, meras intenções, não constam dos elencados no art. 21 do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, e, mesmo que pudessem ser qualificados como actos preparatórios, a verdade é que estes só são puníveis quando lei expressa o determinar, o que não ê o caso dos autos (cfr. art. 210 do Código Penal).

5 - Ora, conforme se vê da respectiva contestação, toda a defesa do arguido ora recorrente foi estruturada com base no teor da acusação, nos exactos termos em que foi deduzida pela entidade normalmente competente para o efeito - o M.P ..

6 - A imputação de que o recorrente, entre a primeira semana e o dia 28 de Janeiro de 2004, recebeu da testemunha de acusação BB o total de 40 quilogramas de haxixe, ultrapassa largamente o conceito de alteração não substancial dos factos descritos na acusação (cfr. art. 358 do C.P.P.), já que, na realidade, estes factos não se encontravam descritos na acusação com os requisitos que a lei exige (art. 283°, n° 3, alínea b), do C.P.P.), e, por este motivo, tal imputação cai no âmbito do disposto no arte 359°., nº 1, do C.P.P.

7 - A referida imputação, ou a mera intenção de a ponderar, a final, que foi o fundamento invocado pelo Tribunal da Relação de Lisboa para não conhecer do recurso intercalar, foi feita já depois das alegações orais do defensor do arguido e das últimas declarações deste, pese embora a oportunidade dada "a posteriori" para acrescentarem o que tivessem por conveniente, é, na realidade, uma acusação por um facto novo, pois só naquela altura o arguido foi acusado da prática de um acto concreto e ilícito - compra e venda de 40 Kgs de haxixe -, facto este que, na prática, se traduziu numa ilegal correcção das lacunas e "indefinições" da acusação, deficiências estas que, aliás, são expressamente reconhecidas no Acórdão do Tribunal Colectivo.

8 - É que, ao contrário das imputações vagas, genéricas, imprecisas e meramente conclusivas da acusação do M.P., o Tribunal Colectivo, este sim, imputou ao arguido a prática de um facto concreto e ilícito, identificando o alegado fornecedor de haxixe ao arguido e a respectiva quantidade e, bem assim, situando no tempo a prática de tal facto, julgando-se ser inadmissível e repugnar ao senso comum a tese, sustentada nas decisões recorridas, de que o aditamento, à última hora, da referida acusação de tráfico de 40 Kgs de haxixe foi apenas uma mera concretização da conduta já imputada ao arguido na acusação, já que, na acusação/pronúncia, esta conduta não se apresenta consubstanciada na prática de qualquer acto concreto de narcotráfico, minimamente identificado nos termos do art. 283°, nº 3, alínea b), do C.P.P .

9- É que, se, porventura, a alegada transacção de 40 Kgs de haxixe ou outros factos concretos tipificados na lei como crimes de narcotráfico constassem da acusação do M.P., o arguido teria seguramente requerido a abertura da instrução, nos termos do art. 286° e segs. do C.P.P., a fim de nesta tentar provar a sua sempre protestada inocência.

10 - E não se diga que a concessão de um prazo de 7 dias para o arguido organizar a sua defesa contra o novo facto imputado na última sessão do julgamento infirma a alegação do recorrente de que, ao considerar tal facto, aliás muito grave, abrangido pelo disposto no art. 358°, n° 1, do C.P.P., com referência ao art. 1°, n° 1, alínea f), "a contrario sensu", do mesmo diploma legal, o Tribunal Colectivo postergou de forma grave e decisiva as garantias de defesa do arguido, consagradas no art. 32°, nº 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), porquanto, salvo o devido respeito, é óbvio que, nas circunstâncias em que tal imputação foi feita, o prazo de 7 dias é de todo insuficiente para que o arguido, colocado perante uma acusação de um facto concreto de tanta gravidade, pudesse, em tempo oportuno, arranjar meios de prova tendentes a demonstrar a sua sempre protestada inocência.

11- Acresce igualmente notar que, quer o Tribunal Colectivo, quer o Tribunal da Relação de Lisboa ignoraram, pura e simplesmente, a conclusão lógica de que os pretensos terceiros compradores dos 40 Kgs de haxixe que, nos termos do douto acórdão condenatório, foram fornecidos pela testemunha BB, seriam por certo em número bastante elevado ou o arguido teria obtido uma avultada compensação remuneratória, factores estes que, nos termos do art. 24°, alíneas b) e c), do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, implicariam que a pena aplicável fosse aumentada de um quarto nos seus limites mínimo e máximo e, neste caso, não subsistiriam quaisquer dúvidas de que se verificou uma alteração substancial dos factos descritos na acusação e que, por isso, deveria ter sido cumprido o mecanismo estabelecido no n° 1 do art. 359° do C.P.P., preceito este que, também por esta razão, foi violado pelos Acórdãos da 1ª e da 2ª instâncias.

12 - Por outro lado, salvo o devido respeito, a interpretação, feita pelas instâncias, do art. 358°, n° 1, do C.P.P., no sentido de admitir uma alteração da matéria da acusação do M.P., que consistiu na correcção das reconhecidas "indefinições" desta e que, dada a sua amplitude e efeito notório na agravação da pena aplicada ao arguido, "buliu" com a própria essência da acusação, cujo titular normal é o M.P. (art. 53°, n° 2, alínea a) do C.P.P.), enferma do vício da inconstitucionalidade material, por ser contrária ao espírito e à letra do art. 32°, nº 1 e 5, da Constituição da República (C.R.P.), na medida em que viola o princípio da "vinculação temática", o princípio do acusatório e também, em certa medida, o princípio do contraditório.

13 - Na verdade, relativamente ao princípio do acusatório, em que se funda a estrutura da nossa constituição processual penal, o respeito pelo sentido e alcance daquele princípio exigiria que a decisão final se cingisse exclusivamente à acusação e não ampliasse esta de tal modo que se julga não ser ousado afirmar que o douto Tribunal Colectivo passou do papel de julgador ao de acusador, o que lhe está vedado pelo citado art. 32°, nºs 1 e 5, da C.R.P., e art. 53°, nº 2, alínea c), do C.P.P. (cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Anotada, 3ªed. Revista, Coimbra Editora, 1993, pag, 205), preceitos aqueles que, portanto, também foram violados pelo douto Acórdão recorrido 14 - É que, na realidade, o que se verificou foi uma alteração bem substancial dos factos descritos na acusação todos eles descritos de forma vaga e indefinida, com excepção do "acordo" (artigo 11° da acusação), não concretizado e portanto não enquadrável em qualquer dos factos descritos no citado art. 21° do Decreto-Lei nº 15/93, tendo daí resultado "insuportavelmente afectada a defesa do arguido (cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, in "CURSO DE PROCESSO PENAL, voI. III, 2ª ed., revista e actualizada, pago 273), sendo que, na página 282 da mesma obra, aquele ilustre professor de direito também expende que "a alteração não substancial respeita, pois, a circunstâncias acidentais ou a circunstâncias modificativas atenuantes.

15- Daí que, contrariamente ao decidido pelas 1ª e 2ª instâncias, o regime aplicável ao caso "sub judicibus" é o do art. 359°, n° 1, do C.P.P. e não o do art. 358°, n° 1, do mesmo Código, preceitos estes que, por isso, não foram observados e bem interpretados pelos doutos Acórdãos recorridos.

16a - Constata-se igualmente, no Acórdão recorrido, uma insuficiência da matéria da facto provada e erro notório na apreciação da prova (art. 410°, nº 2, alíneas a) e b), do C.P.P.), porquanto da prova produzida em julgamento não pode concluir-se, com a necessária certeza, que fosse haxixe o produto alegadamente entregue ao arguido por BB, já que, inexistindo o chamado "corpus delicti", também não foi possível proceder a quaisquer análises laboratoriais para determinar a natureza de tal produto, tendo, pois, sido omitidas diligências indispensáveis à prova, não podendo o art. 127° do C.P.P. ser interpretado com tão grande amplitude, a pontos de a palavra da referida testemunha de acusação bastar para atribuir a natureza de haxixe ao produto alegadamente transaccionado.

17a - Foi assim também cometida a nulidade prevista na alínea d) do...

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