Acórdão nº 07P2599 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 04 de Outubro de 2007

Magistrado ResponsávelSIMAS SANTOS
Data da Resolução04 de Outubro de 2007
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1.

O Tribunal Colectivo do 1º Juízo da Comarca de Bragança (proc. n.° 1481 99.2) condenou AA pela prática em autoria material de um crime de burla qualificada dos art.ºs 217°, n.° 1, 218°, n.º 2, al. a), 202°, al. b), 26°, 1.ª parte, e 14°, n.° 1, do C. Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, tendo declarado perdoado (art.ºs 1°, n.° 1, e 5° da Lei n.° 29/99, de 12 de Maio) 1 ano da pena de prisão, sob a condição resolutiva de a mesma, nos 90 dias imediatos à sua notificação desta decisão, pagar à Fazenda Nacional a quantia indemnizatória de € 26.264,22, acrescida de juros de mora à taxa legal.

Julgou procedente o pedido de indemnização civil deduzido a fls. 524 a 526 e condenou a demandada a pagar à Fazenda Nacional a importância de € 26.264,22 acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido até integral pagamento, e remetidas as partes quanto ao mais peticionado para os tribunais civis, nos termos do disposto art. 82°, n.° 3, do CPP.

A arguida recorreu do despacho que indeferiu um pedido que formulara de suspensão da instância (fls. 685), considerando que os presentes autos deveriam ser suspensos até ser proferida decisão final no processo n° 229/99 que corre seus termos no 2.° Juízo do Tribunal de Bragança, já que é necessário para conhecer da existência do crime e do pedido cível a procedência ou não dessa acção.

E recorreu da decisão condenatório para a Relação do Porto.

Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 11.4.2007, revogou a decisão recorrida, concedendo provimento ao recurso interposto pela arguida que foi absolvida da autoria do crime de burla qualificada dos art.ºs 217.º, n.° 1, 218°, n.º 2, al. a) do C. Penal e julgou também extinto o recurso interposto do despacho de fls. 665, por inutilidade superveniente da lide (arts. 4.° do CPP e 287.º, al. e) do CPC).

Recorre agora o Ministério Público, para este Supremo Tribunal de Justiça, pedindo a revogação do acórdão recorrido, na parte em que considerou procedente a 2.ª questão prévia (quanto à chamada «burla processual») e a sua substituição por outro que considere que a tipificação do crime de burla abrange qualquer conduta que provoque erro ou engano de que advenha enriquecimento ilegítimo e prejuízo patrimonial, dele não sendo ressalvada a burla cometida por intermédio de um processo civil ou no quadro da respectiva actividade processual, e que, consequentemente, conheça das demais questões suscitadas pela arguida no seu recurso (recurso interlocutório incluído).

Respondeu a arguida reafirmando que não é possível cometer-se o crime de burla através do recurso a uma acção cível, havendo no caso sujeito falta dos pressupostos típicos erro ou engano astuciosamente provocados, pelo que deve ser mantido o acórdão recorrido.

Neste Supremo Tribunal de Justiça teve vista o Ministério Público.

Colhidos os vistos legais, teve lugar a audiência. Nela o Ministério Público acompanhou a posição assumida no recurso e a defesa remeteu para a resposta apresentada.

Cumpre, assim, conhecer e decidir.

2.1.

E conhecendo.

É a seguinte a factualidade apurada pelas instâncias.

Factos provados.

1) No dia 21/11/1985, faleceu em Bragança, solteira e sem herdeiros conhecidos, BB, que ali residiu na rua do Loreto, n.° ....

2) A falecida BB tinha como únicos parentes, em grau muito afastado e não sucessíveis, os irmãos CC, DD, EE FF e GG, os quais ajudou a criar, por serem órfãos de mãe, e viviam numa casa situada na rua do Loreto, n.° .., em Bragança.

3) Do património da BB faziam parte os seguintes prédios:

  1. Fracção AC do imóvel sito na Avenida Fontes Pereira de Meio, n.° ..., em Lisboa, descrito na & Conservatória do Registo Predial sob o n.° 13/9311992 0701; b) Prédio urbano, sito na Rua da Boa vista, freguesia da Sê, em Bragança, composto por r/c e 1° andar, com a área de 90 m2, e quintal, com a área de 75 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° 01433/1 00491 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 4°; c) Prédio urbano, sito na Rua do Loreto, freguesia da Sé, em Bragança, composto por r/c, 1° e 2° andar e quintal, com a área coberta de 130 m2 e descoberta de 231 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° 01434/100491 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 23°; d) Prédio rústico, sito no Loreto ou Boa vista, freguesia da Sé, em Bragança, composto de terra de vinha com árvores, com a área de 1.000 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.° 01435/100491 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 305; e) Prédio rústico, sito na Boavista, freguesia da Sé, em Bragança, composto de terra de cultura, com a área de 1.200 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 01578/060192 e inscrito na matriz respectiva sob o artigo 303.

    4) À BB pertencia também o conteúdo de um cofre de aluguer do Montepio Geral, dependência de Bragança, que tinha o n.º 128.

    5) A data da sua morte, a BB era titular das seguintes contas bancárias, as quais apresentavam, naquela data, os seguintes saldos: - Banco Totta & Açores, Lisboa, conta n.º 18810361001 - 905.798$60; - Banco Totta & Açores, Bragança, conta n.º 9059295/00 1 - 25.605$30; - Banco Nacional Ultramarino, Bragança, conta n.º 2 10/16822 - 258. 452 $00; e - Montepio Geral, Bragança, conta n. ° 554/4 - 103.941$80.

    6) Por volta de 1975, a BB manifestou aos irmãos ... a sua intenção de lhes deixar o prédio urbano identificado em 3) b) e os prédios rústicos identifica dos em 3) d) e e).

    7) Por volta de 1980, a BB deu conhecimento à família ... e a outras pessoas da sua confiança que era sua intenção fazer testamento, com vista a que os seus bens referidos em 3) b), d) e e) ficassem para os irmãos ..., o seu bem aludido em 3) o) para a Cruz Vermelha de Bragança e o seu bem referido em 3) a) para os sobrinhos de um seu falecido cunhado.

    8) Ao tempo do óbito da BB, o CC estudava no Porto e tinha como companheiros na residência universitária onde se alojava dois filhos da arguida, HH e II.

    9) Nessa altura, o CC comentou com ambos os referidos irmãos que procurava descobrir onde teria a falecida BB feito testamento ou doação dos seus bens, uma vez que esperava ser contemplado, tendo-se os mesmos prontificado a apresentá-lo a uma sua tia de Ovar, com a justificação de que ela o poderia ajudar em tal descoberta.

    10) Contactada tal tia, a mesma nada descobriu, tendo sido então que a arguida, que estava ao corrente de todo o caso, se prontificou a solucioná-lo ela própria, mantendo para o efeito alguns contactos com o CC, onde se apresentou como pessoa muito diligente e bem relacionada com notários e magistrados e por isso capaz de resolver o assunto.

    11) Para esse fim, o CC entregou à arguida um conjunto de documentos com a descrição e identificação dos bens imóveis, a identificação do cofre do Montepio, o bilhete de identidade da BB e todos os dados a ela relativos, nomeadamente a data da sua morte, tendo-a informado também da inexistência de sucessíveis legais e de que por isso a herança poderia reverter para o Estado.

    12) Na posse dessas informações, em lugar e data não concretamente apurados, mas após 21/11/1985 e antes de 28/04/1986, a arguida forjou o contrato-promessa de compra e venda que constitui fls. 157, 158 e 501 dos autos e cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, nos termos do qual e em síntese a BB promete vender à arguida, e esta promete comprar-lhe, todos os bens imóveis da primeira identificados em 3), pelo preço global de 30.000.000$00, quantia que a promitente compradora entregava à promitente vendedora no acto da assinatura do contrato e de que por isso se dava no mesmo contrato plena quitação.

    13) A arguida, pelo seu próprio punho ou pelo punho de alguém a seu mando, após no dito contrato-promessa, imitando-a, a assinatura da BB como primeira outorgante, ou seja, como promitente-vendedora.

    14) Em 28/04/1986, a arguida instaurou na comarca do Porto uma acção cível contra o Estado, que foi distribuída à 22 secção da 58 vara com o n.° 5937/86, na qual pedia se reconhecesse este como herdeiro da BB, acção essa que foi julgada procedente.

    15) Tendo a BB morrido intestada e sem herdeiros conhecidos, foi instaurada pelo Ministério Público no tribunal desta comarca, acção especial para liquidação de herança a favor do Estado, que correu seus termos sob o n.° 23/87, da 28 secção, acção esta que foi julgada procedente e por via da qual o Estado recebeu e tomou-se proprietário de todos os bens móveis e imóveis da BB, nomeadamente dos acima identificados em 3).

    16) Em 2/11/1992, a arguida intentou na comarca do Porto uma acção cível contra o Estado Português, que foi distribuída à lª secção da 98 vara cível e correu seus termos sob o n.° 8114/92, na qual formulou o pedido de condenação do réu como incumpridor do contrato-promessa referido em 12) e que se sentenciasse no sentido de declaração negocial que produzisse os efeitos do contrato prometido.

    17) Tal acção fundava-se no contrato-promessa referido em 12), que a arguida juntou com a petição inicial como meio de prova, sendo que, com base no mesmo e no depoimento de algumas testemunhas, a mencionada acção n.° 8114/92 foi julgada procedente por sentença de 6/05/1996, tendo sido declarada transmitida a propriedade dos imóveis da BB para a titularidade da arguida e seu marido, pelo preço de 30.000.000$00, que se julgou pago.

    18) Por via dessa sentença, que transitou em julgado em 17/06/1996, a arguida entrou na titularidade do direito de propriedade dos imóveis referidos em 3), que estando registados a favor do Estado Português, foram registados pela arguida a seu favor, nas competentes Conservatórias do Registo Predial e nas seguintes datas: em 22/03/2001, a fracção referida em 3) a); e em 30/05/1997, os prédios referidos em 3) b), c), d) e e).

    19) A BB não celebrou com a arguida o contrato-promessa referido em 12), nem recebeu desta qualquer quantia, já que nem sequer se conheceram nem se viram jamais, sendo o referido...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
5 temas prácticos
5 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT