Acórdão nº 96P1476 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 05 de Novembro de 1997

Magistrado ResponsávelMARIANO
Data da Resolução05 de Novembro de 1997
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: No Tribunal de Círculo do Funchal, foi julgado em processo comum - tribunal colectivo - o arguido: - A, casado, médico, nascido em 9 de Fevereiro de 1955, em Moçambique, residente no Funchal, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio por negligência previsto e punido pelo artigo 136 n. 1 do Código Penal de 1982, em concurso real com um crime de recusa de facultativo previsto e punido pelo artigo 276 n. 1 do mesmo Código. Após julgamento, foi decidido: a- absolver o arguido pela prática dos crimes que lhe eram imputados; b- declarar falso para os efeitos do presente processo, o auto de exame e autopsia de folha 16; c- condenar o assistente nas custas. Inconformados com o decidido, interpuseram recurso para este Supremo Tribunal o Excelentíssimo Magistrado do Ministério Público junto do tribunal "a quo" e o Assistente: - B, id. nos autos. Minutando o seu recurso, conclui o Ministério Público: 1- Nos depoimentos que prestaram, os peritos Jorge Manuel de Oliveira Fagulha, Luís Mendes Graça e Pinto da Costa referem que os vómitos descritos só poderão ter origem em oclusão ou suboclusão intestinal. Acontece, porém, que o acórdão no último parágrafo do ponto 2.2 (factos não provados) simplesmente dá como não provado que a ligeira rotação visceral tivesse ocasionado uma suboclusão intestinal. Divergiu assim o julgador do juízo emitido pelos peritos sem que tivesse fundamentado a divergência, pelo que foi violado o disposto no artigo 163 n. 2 do Código de Processo Penal. Acresce que ao ignorar o depoimento daqueles peritos incorreu o acórdão em erro notório na apreciação da prova - artigo 410 n. 2 alínea c) do Código de Processo Penal. 2- No acórdão é dado como provado que "o arguido determinou então a administração à C de 500 centímetros cúbicos de "Dextrose" a 5 por cento, duas ampolas de "Primperan" por via endovenosa e dieta zero" ponto 2.1 da matéria de facto provada. Porém, no ponto 2.2 matéria de facto não provada afirma-se que "não se provou que a partir das 21 horas do dia 18 de Junho que a C não conseguisse reter qualquer alimento no estômago...". Porém, se às 17 horas do dia 18 de Junho de 1992 foi determinada dieta zero como terapêutica médica da autoria do arguido, exactamente porque tudo o que a C ingeria vomitava, como é possível que se dê como não provado que a partir das 21 horas desse mesmo dia a C não conseguisse reter qualquer alimento no estômago? Há, assim, também neste caso, erro notório na apreciação da prova. 3- Na tarde de 18 de Junho de 1992, altura em que lhe foi administrada uma segunda dose de Primperan, a C vomitou e já antes às 14 horas e 45 minutos desse dia, o arguido por causa de vómito prescreveu Primperan. É evidente que se o arguido administrou às 14 horas e 45 minutos do dia 18 de Junho uma ampola de Primperan mais Buscopan é porque a senhora antes dessa hora, com certeza, vomitava persistentemente. Entendemos, assim, que, igualmente neste caso, existe erro notório considerar que "não se provou que entre as 8 horas e as 14 horas e 30 minutos do dia 18 de Junho a C tenha vomitado". 4- Ficou provado que "No início da operação e na sequência da entubação a C teve um vómito abundante de uma substância verde escura e com cheiro nauseabundo e fétido; Após tal vómito foi ainda aspirado do estômago da C 1000 centímetros cúbicos de uma substância de cor e cheiro como no anterior". Ora, a C estava em dieta zero havia cerca de 16 horas. Antes vomitara persistentemente, durante o período em que esteve internada, sendo assim evidente que não conseguia reter no seu estômago, qualquer alimento. Se durante todo o período de internamento a C vomitou e não conseguia reter no seu estômago quaisquer alimentos lógico é concluir que os líquidos que lhe foram retirados na sala de operações estavam dentro dela há mais de 20 horas. Assim, ao dar como não provado que os líquidos vomitados e aspirados na sala de operações estivessem dentro da C há mais de 20 horas, incorreu o Acórdão em novo erro na apreciação da prova, violando o artigo 410 n. 2 alínea c) do Código de Processo Penal. 5- Entende ainda o acórdão recorrido que não se provou que por deficiente avaliação e diagnóstico o arguido tivesse ministrado uma quantidade insuficiente de "Dextrose" e que tal facto tivesse implicado a desidratação da C. Todavia está provado que a C esteve constantemente a vomitar, que não retinha quaisquer alimentos no estômago, que a partir das 17 horas do dia 18 de Junho passou a dieta zero, que logo que foi recebida nos cuidados intensivos a principal preocupação dos médicos foi a reposição da volémia, tendo-lhe sido ministrados muitos líquidos, conforme se comprova na folha terapêutica da Unidade de Cuidados Intensivos. Acresce que o perito médico Professor Doutor Luís Mendes Graça no seu depoimento de folhas 1375 e seguintes declarou que não considerava alimentado o paciente a quem estava a ser administrada a quantidade de dextrose igual àquela que foi administrada à C, acrescentando que nessa circunstância o doente ficaria desidratado e metabolicamente descompensado. Assim, o Acórdão, ao dar como não provado que por deficiente avaliação e diagnóstico o arguido tivesse ministrado uma quantidade insuficiente de "Dextrose" e que tal facto tivesse implicado a desidratação da C, não só incorreu em mais um erro notório na apreciação da prova, como também violou o artigo 163 n. 2 do Código de Processo Penal no divergir do perito e não fundamentar a divergência. 6- O acórdão recorrido, no ponto 3.3, refere a determinado passo ser discutível a bondade da administração de um tocolítico como o tratar uma situação de gravidez de 36 semanas e 4 dias com a finalidade de atrasar o parto. Ora, o que o perito Professor Doutor Mendes Graça referiu é que para uma gravidez de 36 semanas e 4 dias em trabalho de parto espontâneo este não deve ser inibido com medicamentos tendo acrescentado que aquela é a opinião generalizada "lege artis". 7- Da análise dos factos provados, designadamente do penúltimo e último parágrafo, resulta claro que o arguido agiu negligentemente, pois não ordenou a realização de exames e análises, nem solicitou a colaboração de outros médicos, como era sua obrigação. 8- Por outro lado, igualmente ficou provado que a C faleceu com sépsis. 9- A impossibilidade de afirmar a existência de sépsis, durante o período referente à actuação do arguido, advém do facto de ele nada ter feito para detectar a existência de uma possível infecção, que, quando não devida e atempadamente diagnosticada e tratada, pode evoluir para uma sépsis. 10- Se a C faleceu com sépsis, infecção generalizada, que conduz à morte, e se 30 por cento das situações de ameaça de parto pré-termo têm a sua génese um qualquer agente infeccioso, elementar será de considerar negligente o comportamento do arguido, pela violação do dever de cuidado necessário no caso concreto. 11- É que, na situação descrita o arguido sabia ou tinha obrigação de saber que aquela parturiente poderia ser portadora de uma infecção, pelo que deveria ter ordenado os exames de rotina necessários à sua confirmação. Era esse o comportamento exigível. 12- Ao não ordenar os exames necessários, ao continuar com a administração do tocolítico "tri-far" no não compensar devidamente a C dos líquidos que estava constantemente a perder, sabia o arguido que podia causar a sua morte. Todavia, embora não se conformando, confiou, errada e levianamente que ela sobreviveria. Termina assim: "Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que condene o arguido pela autoria de um crime de homicídio negligente previsto e punido pelo artigo 136 n. 1 do Código Penal na sua versão originária". O Assistente produziu as seguintes conclusões no seu recurso: 2- O Tribunal "ad quo" produziu uma alteração não substancial dos factos descritos no despacho de pronúncia atento o artigo 358 do Código de Processo Penal, porém, omitiu na sentença tal alteração violando o artigo 358 do Código de Processo Penal e o n. 2 do artigo 364 do mesmo Diploma por não ter fundamentado tal flagrante omissão. 3- O Tribunal "ad quo" errou notoriamente ao afastar a opinião de Professores de medicina quanto à existência de uma sub-oclusão intestinal que é uma causa mecânica do compromisso do trânsito intestinal pelo bolo alimentar e seus elementos, violou assim o artigo 163 n. 1 do Código de Processo Penal. 4- O Tribunal errou ao entender face à prova bastantemente produzida e admitida pelo despacho que produziu a alteração não substancial dos factos descritos na pronúncia, não existia uma sub-oclusão intestinal. 5- Tal facto patológico é relevável pela ciência médica, logo subtraído aos juízos de livre apreciação pelo Tribunal assim também foi violada a norma do artigo 127 do Código de Processo Penal. 6- O Tribunal errou notoriamente ao dar como provados factos divergentes do Processo Hospitalar escrito, que quer se queira quer não é documento autêntico porque produzido no interior de uma Instituição pública com autoridade na medicina que é o Centro Hospitalar do Funchal violando assim o artigo 164, 169, 163 do Código de Processo Penal e artigo 369 do Código Civil. 7- O Tribunal face a estes erros entrou em contradição insanável na fundamentação do seu acórdão quando dá como não provados factos que obrigatoriamente teriam que ser dados como provados, como por exemplo a suboclusão intestinal patologia associada explica teor dos padecimentos da C, alínea b) do n. 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal. 8- O Tribunal novamente errou ao não fundamentar no acórdão a razão de não ter aceite os juízos periciais formulados pelos Professores de Medicina, violando a norma do n. 2 do artigo 163 do Código de Processo Penal. 9- Ao não apresentar fundamentação dessa divergência com os peritos o tribunal violou também aqui o n. 2 do artigo 364 do Código de Processo Penal. 10- O Tribunal...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT