Acórdão nº 046444 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 27 de Outubro de 1994

Magistrado ResponsávelCOSTA PEREIRA
Data da Resolução27 de Outubro de 1994
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça: 1 - Relatório.

1.1 - Requerimento inicial.

O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência nos termos e com os fundamentos seguintes: No processo n.º 2510 da 5.ª Secção, foi proferido acórdão que não admitiu o recurso interposto pelo Ministério Público, com fundamento em que este não pode recorrer de decisões proferidas em conformidade com a sua anterior promoção, por falta de interesse em agir, nos termos do artigo 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Todavia, no acórdão proferido no processo n.º 27954, da 3.ª Secção, do mesmo Tribunal da Relação, foi proferida decisão em sentido contrário, admitindo-se aí o recurso, por se entender haver legitimidade do Ministério Público para recorrer da decisão proferida no sentido da sua anterior promoção e por se verificar que do acórdão recorrido não era admissível recurso, que os dois acórdãos transitaram em julgado e foram proferidos no domínio da mesma legislação, interpôs-se o presente recurso para fixação de jurisprudência.

1.2 - Os acórdãos em oposição.

Interessa analisar detalhadamente os argumentos expendidos nos dois acórdãos em causa.

1.2.1 - O acórdão recorrido.

Efectivamente, o acórdão recorrido começa por invocar o artigo 401.º do Código de Processo Penal, segundo o qual só pode interpôr recurso quem tem legitimidade para o efeito e quem tem interesse em agir.

Ora, tendo o Ministério Público obtido, com o despacho recorrido, deferimento total da sua promoção, coloca-se a questão de saber se mantém interesse em recorrer de uma decisão que lhe foi favorável e ainda em que medida e em que sentido se poderá conferir relevância ao facto de ter sido o recurso interposto em cumprimento de ordem dimanada do superior hierárquico do magistrado que interpôs o recurso.

Para dilucidar estas questões, o acórdão começa por fazer apelo ao princípio da boa-fé, o qual considera abertamente contrariado quando, como é o caso, se possa dar oportunidade de recorrer de uma decisão a quem no processo tenha adoptado posição com ela conforme.

A boa-fé seria, assim, postergada por quem possa ficar em posição de defender o contrário do que sustentara antes, do que derivaria a ideia de que, quem obtém uma decisão favorável, deve ser considerado sem interesse em contra ela recorrer.

Invoca-se, depois, em reforço legal desta tese, o artigo 401.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o qual, sem abrir qualquer excepção, mesmo para o Ministério Público, estabelece que não pode recorrer quem não tiver interesse em agir, pelo que se deve ter como desprovido de interesse processual em agir, em impugnar uma decisão que não contém qualquer aspecto adverso à pretensão formulada na promoção que foi deferida.

Quanto à outra questão suscitada, ou seja, de que o recurso tenha sido interposto por imposição do superior hierárquico, entende este acórdão que se trata de questão irrelevante, por isso mesmo que a magistratura do Ministério Público está estruturada como entidade indivisível, devendo entender-se como definitiva a intervenção de cada um dos seus magistrados no processo, sem possibilidade de a posteriori ser alterada de acordo com diferentes entendimentos provindos dos vários degraus da hierarquia.

Foi esta, em suma, a posição assumida pelo acórdão recorrido sobre esta matéria.

1.2.2 - O acórdão fundamento.

Já o acórdão fundamento começa por salientar que o Ministério Público está vinculado, nos termos do artigo 53.º, n.º 1, da Constituição, a defender a legalidade, que não interesses individuais, pelo que não pode estar vinculado a qualquer erro de uma posição assumida anteriormente no processo, devendo obediência apenas a critérios de estrita objectividade.

Alude-se, depois, à faculdade que a lei reconhece ao Ministério Público para recorrer, ainda que seja no exclusivo interesse do arguido [artigo 401.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal].

Finalmente vai-se buscar ao confronto entre os artigos 48.º a 52.º do Código de Processo Penal a conclusão de que não resulta qualquer restrição da legitimidade do Ministério Público para recorrer em situações como a dos autos, pelo que, não ocorrendo alguma dessas restrições ou qualquer outra expressamente prevista, impõe-se a regra geral de que tem legitimidade, nos termos da primeira parte do citado artigo 48.º 1.3 - Termos ulteriores.

Foi o recurso recebido pela forma legal e corridos os vistos, por Acórdão deste Supremo Tribunal de 26 de Maio de 1994, foi reconhecida a existência de oposição entre os dois acórdãos em questão, considerando-se que as soluções a que cada um chegou sobre a mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação são contraditórias e substancialmente opostas entre si, tendo-se ordenado, depois, o prosseguimento dos autos.

1.4 - Alegações.

Alegaram o recorrido AA, representado pelo Exmo. Defensor Oficioso nomeado, que ofereceu o mérito dos autos, pretendendo o suprimento das questões de direito como acto de justiça.

E a Exma. Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal produziu uma douta e brilhante peça jurídica em que, quanto à questão de mérito, procedeu a um correcto e minucioso enquadramento da magistratura do Ministério Público à luz da lei, doutrina e jurisprudência aplicáveis, tendo em conta, designadamente, os princípios constitucionais pertinentes e o direito comparado, tudo acompanhado de numerosas e eruditas referências e citações, o que a levou a propor para a resolução do conflito o seguinte projecto de fixação de jurisprudência: O Ministério Público, em função dos seus poderes-deveres no âmbito do processo penal, tem legitimidade e interesse em agir na interposição de recursos, ainda que a decisão de que decorre tenha acolhido integralmente a sua promoção ou parecer, por força do que dispõem os artigos 48.º a 52.º e 401.º, todos do Código de Processo Penal de 1987.

Decorrido o prazo legal, foram colhidos os vistos simultâneos dos restantes juízes e, sendo o processo inscrito em tabela, procedeu-se ao julgamento em conferência pelo plenário das secções criminais, nos termos do artigo 443.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, pois, decidir.

2 - Fundamentos e decisão.

2.1 - Relance sobre o Ministério Público.

Como se trata aqui de apreciar fundamentalmente o interesse e a legitimidade do Ministério Público em recorrer no processo penal, importa fazer um breve busquejo sobre esta magistratura na sua génese e evolução, designadamente no nosso país, no qual teve uma formação e desenvolvimento muito especiais, os quais culminaram actualmente num estádio que, quer do ponto de vista constitucional, quer legal, se pode considerar dos mais avançados em relação ao que se passa nos outros Estados, quer da Europa quer do mundo.

A análise dessa evolução do Ministério Público desde as suas mais remotas origens ajudar-nos-á a compreender a sua posição actual e fundamentalmente a sua posição relativamente aos interesses cuja defesa lhe está cometida e tem por obrigação legal assegurar.

Como se sabe, o direito português teve no direito romano uma das suas principais origens e este recebeu da Grécia grande cópia de ensinamentos e aquisições.

Assim é que a função de acusar hoje característica do Ministério Público apareceu na Lei de Solon como comum a todos os cidadãos e nessa forma passou para Roma, onde, porém, se desdobrou, por um lado, em verdadeira acção popular sem magistratura a que fosse confiada e, por outro, em acção de defesa e administração do fisco, que era confiada aos procuratores Caesaris ou rationales.

Deste desdobramento de funções talvez se possa explicar o dualismo que desde os mais remotos tempos da nossa história se verificou nas funções do Ministério Público, de uma parte exercidas pelo «procurador da coroa» e de outra, pelo «procurador da fazenda».

Há, no entanto, que observar que, embora as origens mais remotas do Ministério Público se possam encontrar na Grécia e em Roma, não se podem considerar tais origens como levando à configuração de uma verdadeira magistratura institucionalizada, tudo se achando disperso e sem qualquer espírito sistemático.

Daí, talvez, aquele dito de um velho praxista coimbrão, comentador das Ordenações, que referia que para haver tribunal era apenas preciso «juiz que julgue, homem que acuse e réu que se defenda».

O Ministério Público só começou a aparecer como instituição quando se confiou a um determinado corpo de pessoas certos objectivos de defesa da sociedade que deviam incumbir especificamente a essas mesmas pessoas.

Com as invasões dos bárbaros, desapareceu o princípio greco-romano da acção pública, para dar lugar à acção particular representada pela vingança, e é curioso notar que esta acção particular de vingança só começou a desaparecer quando se deu a substituição do direito territorial pelo direito pessoal, facto este que ocorreu mais cedo na Península Ibérica do que em qualquer outra parte ocupada pelos invasores.

Surgiu, assim, novamente, a acção pública, embora restrita aos crimes mais graves e sem que fosse confiada a qualquer magistratura em especial.

No caso português, aparecem referências a procuradores do Rei...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT