Acórdão nº 079219 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 11 de Outubro de 1994

Magistrado ResponsávelFIGUEIREDO DE SOUSA
Data da Resolução11 de Outubro de 1994
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, em plenário, no Supremo Tribunal de Justiça: A - O Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa, E. P., neste momento já com a designação de Banco Espírito Santo, veio recorrer para o tribunal pleno do Acórdão deste Supremo de 26 de Setembro de 1988, proferido no processo n.º 77933 (daqui em diante designado por acórdão recorrido), por entender que o mesmo se encontra em oposição com o Acórdão também deste Supremo de 5 de Maio de 1988, proferido no processo n.º 75886 (daqui em diante designado por acórdão fundamento), acórdão este que transitou em julgado.

Alega, para tanto, que o acórdão fundamento decidiu no sentido de que o contrato de desconto bancário tem natureza formal, pelo que é válido mesmo que tenha sido realizado verbalmente, e pode, por isso, ser provado por qualquer meio, ao passo que o acórdão recorrido decidiu que tal contrato, para ser válido, tem de constar de documento escrito, ainda que meramente particular, assinado pelo descontário.

Pede que, a final, seja uniformizada a jurisprudência no sentido que ao problema foi dado pelo acórdão fundamento.

Pelo acórdão preliminar, a fls. 43 e seguintes, foi o recurso mandado prosseguir, por se ter verificado existir a invocada contradição de julgados, proferidos no domínio da mesma legislação e em relação ao mesmo ponto de direito.

O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, no seu parecer, defendeu também que deveria ser proferido assento no sentido da decisão do acórdão fundamento e propôs para o mesmo a seguinte redacção: A prova da celebração do contrato de desconto bancário de títulos de crédito pode fazer-se por qualquer meio, por força do disposto no artigo 396.º do Código Comercial.

Foram corridos os devidos vistos.

B - Cumpre decidir.

1 - De acordo com o preceito do artigo 766.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, a decisão preliminar sobre a oposição de acórdãos não tem carácter definitivo e pode ser novamente apreciada pelo plenário.

Dúvidas não podem, todavia, subsistir, atento o cotejo das decisões em análise, que a mesma questão de direito foi por elas decidida em sentidos divergentes, sendo certo que o acórdão fundamento transitou em julgado antes da interposição do presente recurso.

E respeitaram a situações concretas a que era aplicável e a que foi aplicada a mesma legislação, interpretada, porém, de forma diametralmente oposta pelos dois acórdãos.

Verificam-se, assim, os apontados pressupostos de admissibilidade de prolação de assento, constantes do artigo 763.º do Código de Processo Civil.

2 - Para se poder proceder à discussão da matéria que é objecto do presente pedido de uniformização de jurisprudência, torna-se necessário determinar adequadamente o que seja um contrato de desconto e se existe alguma realidade que deva ter a designação específica de contrato de desconto bancário.

Para tanto, é preciso indicar primeiramente o que seja o contrato de desconto, que, como é sabido, não vinha regulado no Código Comercial, mas resultava dos hábitos e prática do comércio (era referido, mas sem indicação de regulamentação, nos artigos 318.º e 362.º daquele Código, quando neles se consignava que «se aquele sobre que a letra é sacada a paga ou desconta antes do vencimento responde pela validade do pagamento» e «são comerciais todas as operações de banco tendentes a realizar lucros sobre numerário, fundos públicos ou títulos negociáveis, e, em especial, os de câmbio, os arbítrios, empréstimos, descontos», bem como no artigo 4.º da Lei de 3 de Abril de 1896, que regulou o comércio bancário, e na subsequente e profusa legislação que, continuando a não definir o aludido contrato, regulamentou ou substituiu a legislação do comércio bancário, até aos Decretos-Leis n.os 181/92, de 22 de Agosto, e 298/92, de 31 de Dezembro).

O desconto é, na sua complexidade, um contrato entre o sacador ou, menos frequentemente, um portador por endosso do título cambiário (ou, em certos casos, de um título emitido a desconto, como resultado do artigo 5.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 181/92, de 22 de Agosto) e uma entidade bancária, através do qual aquele legítimo portador entrega tal título ao banco, antes da data do respectivo vencimento, a troco do recebimento antecipado do respectivo valor, deduzido ou não (artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 344/78, de 17 de Novembro) dos juros correspondentes ao período temporal que falta para essa data (no primeiro caso toma o nome de desconto por fora e, no segundo, o de desconto por dentro), e de uma comissão, que constitui o lucro específico do referido banco.

Costuma, com efeito, ensinar-se que o contrato de desconto bancário «é um contrato pelo qual o titular de um crédito (o descontário) o cede a um banco (o descontador), que dele fica sendo titular e cobra no seu vencimento, recebendo em troca, antecipadamente, o respectivo valor, deduzido do correspondente juro (prémio) e outras despesas».

3 - Por força do aludido desconto, o mencionado portador beneficia de uma antecipação do recebimento de parte substancial da importância constante do título, mas, em contrapartida, assume, nos termos da lei, a co-responsabilidade de devolver o valor deste e seus juros no mesmo plano que o sacado, no caso de não pagamento do devido por este na data do seu vencimento.

Relativamente ao banco, por outro lado, verifica-se que este adquire uma posição em que beneficia das regras de um endosso não escrito, com beneficiário não determinado no próprio título (endosso em branco, de acordo com a terminologia legal), e das regras do penhor deste último, que passa a servir de garantia de cumprimento da obrigação de pagamento da importância constante do aludido título e seus acréscimos legais (juros compensatórios e moratórios, despesas de protesto quando a este haja lugar, etc.), embora tenha a obrigação de não colocar esse título cambiário na circulação ou giro comercial, salvo se tiver necessidade de proceder ao «redesconto do título» junto de outro banco.

Poder-se-á, desta forma, dizer que, em regra, o contrato de desconto implicará a conjugação das figuras do «endosso em branco» e do «endosso em garantia», a que se referem os artigos 16.º e 19.º da Lei Uniforme sobre Letras, Livranças e Cheques, embora com a inclusão de cláusulas específicas (cobrança de comissão, etc.).

4 - Deverá ter-se em atenção que como é sabido o contrato de desconto surge, na evolução das práticas comerciais, como um meio de permitir a inclusão dos organismos bancários em parte do circuito comercial respeitante a títulos de crédito pagáveis, ou em moeda diferente ou na mesma moeda (isto é, quando há ou quando não há lugar a «câmbio»), uma vez que, por força das regras dos sistemas jurídicos de diversos países, se não admitiu (nem admite normalmente) que os bancos, atenta a sua qualidade de intervenientes principais do mercado financeiro, pudessem funcionar como vulgares endossados (e, até, como normais sacados) nos documentos mais comuns das operações efectuadas no giro comercial corrente, representadas mais frequentemente pela circulação comercial das «letras de câmbio», e apenas se admitia que eles interviessem, nas operações consideradas típicas da actividade bancária, como o desconto, e outras.

De início, por conseguinte, e relativamente aos cinco tipos de títulos de crédito originais (cheques, letras, livranças, papel-moeda e cartas de crédito), só poderia estruturar-se um contrato de desconto quando àqueles que correspondessem a um valor não imediatamente exigível ou convertível em moeda sonante, por estarem sujeitos ao decurso de um prazo de vencimento da respectiva obrigação.

O termo «desconto», de resto, foi originado por essa característica, visto que o contrato em causa tem como característica a existência de um «desconto» sobre a importância constante do título, uma vez que o descontário recebe, como se referiu, um valor que corresponde ao do aludido título, descontado de certas importâncias (juros, comissão, etc.).

Por isso, na fase inicial, só se poderia pensar em falar em desconto em relação a letras e livranças, já que os restantes títulos de crédito não respeitavam a obrigações em vencimento diferido.

Posteriormente, ao passar-se da individualização das situações para a abstracção das figuras jurídicas, passaram a ser incluídas no âmbito dos títulos de crédito susceptíveis de serem objecto de operações de desconto os extractos de factura, os warrants (os quais poderão ser indicados como correspondentes a conhecimentos de depósito de mercadorias em armazéns gerais), e, mais tarde, certos títulos representativos de obrigações de sociedade admitidos a desconto.

5 - Este contrato, que inicialmente e durante séculos foi conhecido unicamente pela expressão «contrato de desconto», passou relativamente há poucos anos a ser conhecido também como «contrato de desconto bancário», uma vez que o desenvolvimento das relações comerciais veio permitir que certas operações de desconto pudessem ser praticadas por entidades não bancárias, mas às quais foram cometidas funções parabancárias (caixas de crédito agrícola, caixas económicas, sociedades de investimento, sociedades de factoring).

No entanto, a evolução das actividades desenvolvidas pelas entidades bancárias conduziu ao aproveitamento das regras do desconto para a estruturação de uma realidade um pouco diferente, no âmbito do direito comercial, a que igualmente se passou a chamar nalguns meios financeiros «contrato de desconto bancário» e que vieram inclusivamente a abranger um mecanismo diverso, conhecido como o «aceite bancário».

E a decisão sobre o objecto dos presentes autos tem de abranger todas essas realidades, em virtude de todas elas serem ou poderem ser incluídas na designação que lhes é comum de «contrato de desconto bancário».

6 - Vejamos, então, como funciona e como se estrutura tal contrato, nas suas modalidades mais recentemente introduzidas, que são também prática corrente actualmente, ao lado da modalidade mais antiga a que acima se fez referência.

Enquanto no desconto normal e...

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