Acórdão nº 08P3852 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Dezembro de 2008

Magistrado ResponsávelHENRIQUES GASPAR
Data da Resolução18 de Dezembro de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. No processo comum singular nº 1470/03.0TABRG do 3º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Braga, a arguida AA foi condenada, por sentença de 1 de Abril de 2008, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 132º n.ºs 1 e 2, alínea g), 143º n.º 1 e 146º n.ºs 1 e 2, ambos do Código Penal, em 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 3,00 (três euros), que perfaz a multa global de € 1.050 (mil e cinquenta euros), e nos termos do disposto no artigo 69º n.º 1, alínea b), do Código Penal na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 (sete) meses, A demandada "Companhia de Seguros BB, S.A." foi condenada a pagar ao demandante e assistente, CC, "a quantia global de € 73.119,53 (setenta e três mil cento e dezanove euros e cinquenta e três cêntimos), sendo € 45.619,53 (quarenta e cinco mil seiscentos e dezanove euros e cinquenta e três cêntimos) a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, com juros de mora à taxa legal de 4% desde a notificação até efectivo e integral pagamento, e € 27.500,00 (vinte e sete mil e quinhentos euros) a título de indemnização de danos não patrimoniais, com juros de mora, à referida taxa, desde a data da decisão até integral pagamento.

*2. Não conformada com a decisão, a demandada "Companhia de Seguros BB, S.A. interpôs recurso para o tribunal da Relação, que, todavia, manteve integralmente a decisão recorrida.

  1. Não se conformando, a Companhia de Seguros BB recorre para o Supremo Tribunal com os fundamentos constantes da motivação que apresenta e que termina com a formulação das seguintes conclusões: I) A apelante não se conforma com a sentença que a condenou em indemnização a favor do ofendido.

    II) A sentença proferida julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido contra a recorrente, seguradora BB, S. A., por considerar que o acidente em causa, não obstante criminalmente doloso, se encontra abrangido pelas garantias do apólice de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

    III) Perante a factualidade dado como provada, o tribunal condenou a arguida pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas doas artºs. 132º, nºs. 1 e 2, al. g), 143º, nº 1 e 146º, nºs. 1 e 2 do CPenal.

    IV) Assim, crê-se ser de dar total acolhimento à tese já expendida pela recorrente na sua contestação, no sentido de que, por estarmos perante uma actuação criminosa, em nada acidental, não pode o evento dos autos qualificar-se como acidente de viação, não podendo, por isso, ficar a coberto das garantias que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel confere. Está-se, isso sim, perante a prática de um crime no qual um veículo automóvel foi usado como instrumento letal, assim como poderiam ter sido utilizados uma faca ou uma pedra.

    1. Na verdade, é inequívoco que a condutora do veículo OJ agiu com dolo directo, ou seja, com intenção de atingir a integridade físico do ofendido, aqui recorrido, provocando-lhe as lesões de que o mesmo veio a padecer.

      VI) Não estamos, por isso, perante a ocorrência de qualquer facto que consubstancie a existência ou verificação de um risco, entendendo-se este como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro - é que a condutora do veículo OJ quis praticar tal facto, ou seja, o mesmo nada teve de incerto.

      VII) Aceitar o contrário implicaria que se desconsidere o risco como elemento essencial do contrato de seguro, contra o que ensinam toda a doutrina e jurisprudência e, sobretudo, a violação do disposto no artº. 437º do Cód. Comercial, nos termos de cujo parágrafo terceiro, "O seguro fica sem efeito se o sinistro tiver sido causado pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável" .

      VIII) Assim sendo, porque o acidente dos autos não corresponde, de forma alguma, à verificação aleatória de um risco, não pode considerar-se como válida e operante a garantia contratada pelo seguro por força da qual a demandante é chamada e que cobria os riscos de circulação do OJ.

      IX) Entendimento que não é afastado pelo n° 2 do artº. 8° do Dec.-Lei 522/85 de 31 de Dezembro, desde logo pela mera consideração do art°. 1° do mesmo diploma ao consagrar que existe obrigação de segurar os veículos terrestres a motor, seus reboques ou semi-reboques para que estes veículos possam circular.

    2. Ou seja, deste preceito resulta inequivocamente que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel existe unicamente para cobrir os riscos próprios da circulação dos veículos automóveis, seus reboques e semi-reboques.

      XI) Ora, utilizar um veículo como arma de crime, usando-o para agredir alguém, seja com o mesmo em andamento ou com o mesmo desligado e imobilizado, nada tem a ver com os riscos de circulação que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pretende cobrir.

      XII) O n° 2 do artº. 8° do Dec.-Lei 522/85 deve interpretar-se como referindo-se apenas ao dolo eventual, ou seja, ao dolo existente nas situações em que o agente previu a hipótese de ocorrer o resultado (no caso, o acidente) como consequência possível da sua conduta, não se abstendo porém de a empreender e conformando-se com a produção desse resultado - cfr. artº, 16° nº 3 Cód. Penal.

      XIII) Mas, por outro lado, e esta ressalva é absolutamente essencial pois que decorre da própria letra do preceito em análise, para que o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel actue é necessário que, independentemente do grau de culpa do condutor do veículo (da mera negligência inconsciente ao dolo eventual) se esteja perante um acidente.

      XIV) A lei usa expressamente o substantivo "acidente", o qual, como ensina qualquer dicionário, tem o sentido inequívoco de acaso repentino e casual, fortuito, contingência. (v.g.. dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora).

      XV) Se o legislador quisesse abranger situações como a dos autos jamais poderia utilizar o termo acidente: é que em tais situações o evento danoso tem tudo menos carácter acidental - trata-se de um acto que foi querido, que foi propositadamente praticado, ou seja, não se trata, de modo algum, de um acaso repentino e pontual, meramente fortuito ou contingencial.

      XVII) E, ainda que assim não fosse, sempre tal interpretação estaria vedada pelo próprio espírito do ordenamento jurídico português: é que aceitar que os seguros obrigatórios de responsabilidade civil automóvel cobrem os danos resultantes de todos e quaisquer actos criminosos, por mais torpes e dolosos, tudo desde que na sua prática sejam utilizados, por qualquer forma, veículos automóveis, seria aceitar a celebração de negócios ostensivamente contrários à ordem pública e aos bons costumes, o que levaria à sua nulidade, nos termos do n° 2 do artº. 280° do Cód. Civil.

      XIX) Assim sendo, ao decidir como decidiu, julgando que o evento a que se referem os autos se encontra coberto pelas garantias do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel por força da qual é a Apelante demandada a Mma. Juiz "a quo" interpretou erradamente e com isso violou os artºs. 437º do Cód. Comercial, assim como os arts.1 ° e 8° n° 2 do DL 522/85 de 31 de Dezembro e os artºs 9º nº 2 e 3 e 280º do Cód. Civil.

      XX) Aliás, a doutrina vai neste mesmo sentido. Na verdade, na linha de pensamento de Dário Martins (in Manual de Acidentes de Viação, pág. 317), o dano indemnizável será aquele que estiver em "conexão causal" com o risco.

      XXI) O dano liga-se por um nexo causal ao facto material em que se configura o risco, não sendo todavia necessário um "contacto material" entre o veículo e o sinistrado ou entre as duas viaturas. No entanto, o dano terá de ser sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo "indirecta" com o facto em que se materializa o risco.

      XXII) Refere, por sua vez, Antunes Varela, in "Das Obrigações em geral", 3ª ed., vol. I, pág. 556, que fora do círculo dos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva ficam: os que não têm conexão com os riscos específicos do veículo; os que são estranhos aos meios de circulação ou transporte terrestre, como tais; os que foram causados pelo veículo como poderiam ter sido provocados por qualquer outra coisa móvel.

      XXIII) Razão por que deve a sentença proferida ser substituída por outra na qual se declare que o evento a que se referem os autos não se encontra coberto pelas garantias do aludido contrato, assim se absolvendo a recorrente.

      XXIV) Tudo de acordo como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão proferido em 13/03/2007, no processo n° 197/07-1 (in CJST J, Vol. I, pág. 108 e ss.).

      XXV) A sentença em crise violou, entre outras disposições, os artigos , 280°, n° 2 e 483° e ss, do Código Civil, 437° do Cód. Comercial, artºs. 1º e 8° do DL 522/85, de 31de Dezembro.

      Termina pedindo o provimento do recurso, com a absolvição da recorrente do pedido de indemnização cível contra si deduzido.

      O demandante cível respondeu à motivação, formulando as seguintes conclusões: 1.ª No despacho de fls. 246 na 249 supra transcrito, o Tribunal apreciou já a mesma questão que a Recorrente pretende que seja analisada em sede deste recurso, tendo decisão transitado em julgado, uma vez não ter sido objecto de recurso de agravo por nenhuma das partes, tendo-se formado aqui caso julgado formal, nos termos do disposto no artigo 672º do Código de Processo Civil.

      1. Aquele despacho, já transitado em julgado, apreciou, de forma definitiva que apenas e só a demandada Companhia de Seguros BB, S.A tinha legitimidade para ser demandada civilmente nos autos, por tal resultar expressamente do disposto nos artigos 8º, nº 2 e 19º, nº1, alínea a) do D.L. nº 522/85 de 31 de Dezembro, o mesmo não acontecendo com a arguida AA, considerada parte ilegítima, dado que os danos causados pelo acidente de viação dolosamente provocado se conterem...

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