Acórdão nº 86/12.5YQSTR.E1-A.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Maio de 2014

Magistrado ResponsávelISABEL PAIS MARTINS
Data da Resolução14 de Maio de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça I 1.

O Ministério Público interpôs, em 13/06/2013, ao abrigo do disposto no artigo 437.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, para o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, com fundamento em oposição de acórdãos da relação – o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07/05/2013, proferido no processo n.º 86/12.5YQSTR.E1, e o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Évora, de 16/04/2013, proferido no processo n.º 55/12.5YQSTR.E1, ambos transitados em julgado.

Alegou, em suma: – Que o acórdão recorrido, proferido no processo n.º 86/12.5YQSTR.E1, chamado a decidir o recurso interposto pela recorrente Modelo Continente Hipermercados, S.A., quanto à decisão proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, no sentido de que um desconto de “rappel” cujo primeiro escalão se inicia em “1” unidade não é um desconto económico, directamente relacionado com a transacção e objectivamente justificado em função daquela transacção, tratando-se, antes, de um desconto com cariz subjectivo – negociado com determinados agentes económicos em virtude do seu historial de negócios, independentemente das transacções realizadas no momento presente –, pelo que os descontos fixos e incondicionais aplicáveis sempre a um determinado agente económico, em virtude do seu historial de aquisições, não são aceitáveis para efeitos de cálculo do preço de custo efectivo, confirmou a decisão recorrida, concluindo que tais descontos não se enquadram no catálogo previsto no artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio.

– Enquanto que o acórdão fundamento, chamado a decidir a mesma questão, em recurso interposto também pela recorrente Modelo Continente Hipermercados, S.A., de decisão proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, entendeu que os descontos directamente relacionados com a transacção em causa são descontos de quantidades (neles se incluindo o chamado desconto “rappel”), os descontos financeiros e os descontos promocionais desde que identificáveis quanto ao produto, respectiva quantidade e período por que vão vigorar e que devem ser deduzidos ao preço da factura de compra para formação do preço de compra efectivo.

  1. Em conferência, por acórdão proferido em 28/11/2013, foi decidido que o recurso devia prosseguir por se verificar oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito em situações factuais idêntica e no domínio da mesma legislação.

  2. Determinou-se o cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 442.º do Código de Processo Penal.

  3. Na sequência, o Ministério Público apresentou alegações, formulando as seguintes conclusões: «1- O desconto “rappel”, como outros descontos e bónus, surge normalmente no contexto do contrato de fornecimento, traduzindo-se numa cooperação comercial que se estabelece entre produtores/fornecedores e distribuidores; «2- O contrato de fornecimento apresenta-se como um contrato quadro, cuja execução é reiterada e duradoura em que uma das partes (fornecedor) obriga-se em relação à outra (fornecido) a realizar fornecimentos mediante o pagamento de um preço.

    «Deixa a outros contratos [os contratos de execução] a tarefa de realizar concretamente o objectivo das partes. Estes contratos de execução consistem em compras e vendas mercantis, sem as quais o contrato de fornecimento não tinha razão de ser; «3- O “rappel” ligado ao volume de aquisições é um desconto condicional que só no final de um determinado arco temporal se adquire, ou seja constitui o efeito do preenchimento de uma condição: a consecução (imediata ou num dado arco temporal) de um certo volume de aquisições. Trata-se (…) de uma condição suspensiva subsumível à categoria das condições potestativas a debitoris, dado que o evento condicionante é o acto do devedor, cuja verificação desencadeia a produção do efeito (a obtenção do desconto).

    «4- Não obstante o «carácter condicional» e «momento da sua determinação», certo é que a razão de ser e o que motiva que o produtor/fornecedor faça, ao distribuidor, o desconto de “rappel” baseado no volume de vendas é encorajar as mesmas vendas e criar incentivos ao escoamento dos produtos; «5- O “rappel” condicional está única e directamente correlacionado com o volume de mercadoria adquirida não existindo, para além disso, qualquer outra contrapartida por esse desconto; «6- É integrado num contrato inicial (fornecimento) que pressupõe, à partida, pela sua natureza, a realização de sucessivas compras e vendas mercantis.

    «7- Estando o desconto estruturalmente ligado ao volume de vendas previsto e esperado pelas partes no contrato de fornecimento, impõe-se a conclusão de que o desconto de “rappel” é adquirido directamente por causa da transacção ou transacções previstas no contrato de fornecimento; «8- É nesta globalidade que deve ser visto o conceito de “directamente relacionada com a transacção em causa”; «9- Assim, um “rappel”, cujo primeiro escalão se inicia em “1” unidade, desde que esteja identificado na própria factura ou, por remissão desta, em contratos de fornecimento e que seja determinável no momento da respectiva emissão, é deduzido ao preço da factura para efeitos de cálculo de preço efectivo.

    «10- Embora o escalão do desconto se inicie logo com a aquisição de uma unidade, é indubitável que a finalidade pela qual o mesmo é concedido é a de alcançar o volume maior possível de vendas, sendo que “o escalão não é mais do que um instrumento de cálculo, estabelecendo margens” e o facto de o primeiro escalão se iniciar na unidade “1” não o descaracteriza como desconto de quantidade.

    «11- As alterações introduzidas pelo DL 166/2013, de 27.12, ao preceito relativo à venda com prejuízo (artigo 5.º n.º s 1, 2 e 3[1]), não prejudicam o entendimento atrás defendido já que, nesta matéria, o que se pretendeu foi tão só, e uma vez mais, clarificar «a noção de venda com prejuízo, em particular do que se entende por preço de compra efectivo, no sentido de facilitar a sua interpretação e fiscalização, tendo em consideração, entre outros, os descontos diferidos no tempo, quando estes sejam determináveis no momento da emissão da respetiva fatura».

    12- Na verdade, é através da criação de regras inovadoras no que respeita à política de preços (artigo 4.º), condições de venda e às práticas negociais (artigo 7.º) que o legislador procura alcançar tais desideratos, como decorre do seu preâmbulo [«o diploma densifica ainda o conceito de práticas negociais abusivas, que até agora era vago e indefinido, identificando expressamente algumas práticas consideradas abusivas, nomeadamente alterações retroactivas de contratos, proibindo-se ainda determinadas práticas no setor agroalimentar, quando o fornecedor seja uma micro ou pequena empresa, organização de produtores ou cooperativa»[2].]» Terminou a propor que o conflito de jurisprudência existente entre os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 7 de Maio de 2013 (recorrido) e de 16 de Abril de 2013 (fundamento), seja resolvido nos seguintes termos: «Nos termos do disposto no artigo 3.º n.º s 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29.10, alterado pelo Decreto-Lei n.º 140/98, de 16.05 (Venda com prejuízo), um desconto de “rappel”, cujo primeiro escalão se inicia em “1” unidade, desde que esteja identificado na própria factura, ou, por remissão desta, em contratos de fornecimento, e que seja determinável no momento da respectiva emissão, é dedutível para efeitos de determinação do “preço de compra efectivo”.» II 1.

    Uma vez que a decisão tomada na secção criminal sobre a oposição de julgados não vincula o pleno das secções criminais, há que reapreciar essa questão.

    1.1.

    No acórdão proferido nos termos do artigo 441.º do Código de Processo Penal, concluiu-se que: «Sobre a questão de saber se o chamado desconto “rappel” pode ser considerado desconto de quantidade e, como tal, relevar para, nos termos do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio, poder ser deduzido ao preço de compra e servir para o cálculo do preço de compra efectivo, os acórdão em causa adoptaram soluções opostas.

    Enquanto o acórdão recorrido decidiu que os descontos “rappel” não podem ser considerados para o cálculo do preço de compra efectivo, segundo o disposto no Decreto-Lei n.º 370/93, já o acórdão fundamento decidiu que os descontos de “rappel”, como descontos de quantidade, relevam para o cálculo do preço de compra efectivo

    .

    1.2.

    Em ambos os acórdãos foi apreciada a prática da contra-ordenação prevista no artigo 3.º, n.º 1, e punida nos termos do artigo 5.º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio.

    Estando em causa, nomeadamente, a questão de saber se, para efeitos de determinação do preço de compra efectivo, pode ser deduzido um desconto de “rappel”, cujo primeiro escalão se inicia em “€ 1”.

    Os acórdãos recorrido e fundamento adoptaram soluções divergentes: 1.2.1.

    A argumentação do acórdão recorrido é, em suma, a seguinte: – A venda de produtos abaixo de custo é um procedimento normalmente associado a grandes empresas detentoras de um grande poder económico compatível com uma prática que não pode deixar de se apresentar, à partida, como ilógica no funcionamento do mercado; – A venda de produtos abaixo do preço associa-se a objectivos predatórios; visa eliminar os concorrentes mais fracos, fazendo com que saiam do mercado, de molde a deixar que a grande empresa passe a praticar, posteriormente, preços elevados, já sem o controlo da concorrência; – A livre iniciativa inclui a permissão de concessão de descontos nas práticas comerciais mas para garantir o eficiente funcionamento do mercado e salvaguardar a concorrência nem todos os descontos podem ser contabilizados para efeitos da determinação...

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