Acórdão nº 3083/11.4TBFARE.E1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 18 de Fevereiro de 2014

Magistrado ResponsávelFONSECA RAMOS
Data da Resolução18 de Fevereiro de 2014
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA, intentou em 28.11.2011, no Tribunal Judicial da Comarca ... – 1º Juízo Cível – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra: BB e marido CC.

Alegou, em resumo: Na qualidade de único herdeiro de seu irmão DD, falecido no dia ……..20…, os serviços de Finanças notificaram-no para pagar — e pagou no dia 17.6.2011 — a quantia de € 6.253,48 em processo de execução fiscal, relativa à venda de um imóvel — prédio (misto) — que ele teria efectuado, vindo a saber que, no dia 5.11.2007 e pelo preço declarado de € 95.000,00, fora outorgada a respectiva escritura pública pela Ré com uma procuração irrevogável que ele lhe tinha conferido no dia 25.1.2002, venda essa efectuada pela Ré a si própria e por preço inferior ao valor real do imóvel, nunca tendo esta esclarecido o Autor sobre a existência de qualquer negócio que estivesse subjacente, o que o leva a crer pela sua inexistência.

Termina, pedindo que seja reconhecido: 1. Que a procuração não era irrevogável e que o respectivo mandato caducou com a morte do mandante; 2. Que não se transmitiu para os R.R. a propriedade do referido prédio (misto); 3. Que a referida escritura pública é nula por terem caducado, com a morte do mandante, os poderes conferidos na procuração que a Ré exibiu para fundamentar a outorga dessa escritura; 4. Que a Ré deve ser condenada a restituir-lhe o referido prédio (misto) e os respectivos frutos produzidos desde a data da celebração do negócio nulo; 5. O cancelamento de qualquer registo predial eventualmente efectuado a favor dos R.R. com fundamento nesse negócio.

Contestaram os R.R. por impugnação, alegando que a Ré tratou para o Autor, durante mais de um ano e com muita conversa, dos diversos assuntos relacionados com o óbito do irmão DD, os quais não se relacionavam entre si desde há décadas.

E que após esse óbito, informou-o da existência da procuração, não lhe exigindo ele a prestação de contas.

Após a morte da mulher do DD e tendo-se reforçado os laços de amizade, e sendo ele dono de um vasto património, durante mais de sete anos tratou dos seus mais diversos assuntos e com o co-réu, seu marido, passaram também a prestar-lhe cuidados de saúde e alimentação, além de o ajudarem a resolver os diversos assuntos do dia-a-dia, inclusivamente dos assuntos bancários.

Pouco tempo antes do óbito, pretendendo retribuir-lhes por tudo quanto lhe fizeram, passou-lhes a aludida procuração que a Ré utilizou após saber que o DD falecera, para formalizar o acordo de pagamento dos serviços que lhe tinha prestado.

Na réplica, o Autor manteve a posição assumida na petição inicial.

Foi proferido o despacho saneador, seleccionada a matéria de facto considerada assente e organizada a base instrutória.

*** A final, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente.

*** Inconformado, o Autor recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, que, por Acórdão de 19.9.2013 – fls. 149 a 162 –, julgou procedente o recurso de apelação, e, revogando a sentença recorrida: 1.

Declarou que a procuração outorgada por DD, no dia 25.11.2002, à Ré não era irrevogável e que o contrato de mandado subjacente caducou com o óbito daquele mandante; 2.

Declarou a nulidade da escritura pública de compra e venda do prédio (misto) sito na I..., Freguesia de …, Concelho ..., inscrito na matriz sob os arts. 6-Secção AF (rústico) e 378 (urbano) celebrada pela Ré com base nessa procuração, no dia 5.11.2007, e que não se lhe transmitiu o direito de propriedade sobre esse prédio (misto), devendo ser cancelados os registos que tenham sido efectuados a favor dos RR. com base nessa escritura pública: 3.

Condenou os RR. a restituir esse prédio (misto).

*** Inconformados os RR. recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça, e alegando, formularam as seguintes conclusões: A — O documento outorgado por DD no dia vinte e cinco de Janeiro do ano dois mil e dois, no Cartório Notarial em Olhão, intitulado “Procuração”, ao ter conferido à ora recorrente os poderes para que ela pudesse vender a si própria o prédio misto aí identificado com a menção expressa de irrevogabilidade desse documento sob a justificação que a mesma é conferida também no interesse da mandatária e com a declaração que a referida procuração não caducava com a sua morte, interdição ou inabilitação, demonstra que o referido outorgante pretendeu conferir à BB poderes e garantias que ultrapassam a simples definição legal de procuração contida no artigo 262 do Código Civil.

B — Através da leitura daquele referido documento, é perceptível que o DD quis atribuir à procuradora, a recorrente, a possibilidade desta poder adquirir para si própria o direito de propriedade sobre o prédio misto aí identificado, independentemente das vicissitudes que a este lhe pudessem vir a acontecer, introduzindo-lhe dessa forma uma cláusula de irrevogabilidade.

C – A mera inserção de uma cláusula de irrevogabilidade numa procuração não é determinante, nem suficiente, para que esta seja irrevogável.

D – Referem os nºs 2 e 3, do artigo 265º do Código Civil, que a procuração é livremente revogável pelo representado, a não ser que a mesma tenha sido conferida no interesse do procurador ou de terceiro, significando que neste caso não poderá ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.

E – Ficaram provados na 1ª instância, entre outros factos, que: “A ré conheceu DD, em data não apurada, mas seguramente antes de 1994, por ser funcionária de um solicitador de que este era cliente, e com quem estabeleceu uma relação de amizade.» — Cfr. ponto 6 da sentença; “A ré, em número de vezes não apurado, fez compras para DD, que incluíam alimentos e outros produtos de características não apuradas, bem como o aconselhava.

» cfr. ponto 8 da sentença; “A ré, desde data não apurada mas seguramente desde 1994, primeiro como funcionária de solicitador e, posteriormente como solicitadora, tratou a pedido de DD, cujo património era constituído por mais de vinte imóveis, de assuntos que envolviam diligências junto do Serviço de Finanças, Conservatórias do Registo Predial, Câmara Municipal, Centro de Saúde e Segurança Social daquele.” - cfr. Ponto 7 da sentença; “O DD, como forma de pagamento e gratidão pelos serviços prestados pela ré nos termos que constam em 7 e 8, quis entregar-lhe o prédio misto identificado em B), tendo para o efeito, outorgado a procuração referida em 3.

” — cfr. ponto 9 da sentença.

F – Deste conjunto de factos é possível concluir que entre o DD e a recorrente BB coexistia uma relação pessoal de amizade e uma relação profissional, através da qual a recorrente lhe prestava serviços próprios da sua profissão de solicitadora.

G – A questão de se saber se no período entre a outorga da procuração (2002) e a data em que a recorrente começou a prestar serviços de solicitadoria para o DD, aquela lhe apresentou alguma nota de honorários, extravasa o âmbito daquilo que se discute nos presentes autos, uma vez que é matéria provada que o DD sabia que pelos serviços que lhe foram prestados pela BB enquanto solicitadora, lhe devia uma quantia correspondente ao valor que ambos entenderam ser o do prédio misto identificado na referida procuração, do qual era proprietário e esta, por seu turno, sabia que era titular de um crédito perante o DD resultante dos trabalhos de solicitadoria que lhe prestou, tendo aceitado a referida procuração como forma de garantir o cumprimento desse direito, sabendo que a mesma lhe concedia poderes para ser ela própria a compradora do prédio misto do seu representado, com a garantia de que este documento seria válido no caso deste morrer, ficar interdito ou inabilitado.

H — A matéria dada como provada, no ponto 9 da sentença proferida na 1ª instância, ao referir que o DD pretendeu pagar à recorrente todos os serviços que esta lhe prestou desde 1994, é de concluir que os mesmos até essa data não lhe tinham sido pagos.

I – O DD outorgou a procuração em Janeiro de 2002 e até à data do seu falecimento (Outubro de 2007), decorridos mais de cinco anos, a procuração manteve-se na posse da BB, a procuradora (cfr. ponto 10 da sentença na 1ª instância), sem que o seu representado a tivesse revogado ou tivesse vendido a terceiros o prédio misto identificado no referido documento.

J – Tal como é referido na douta sentença da 1ª Instância, “...crê-se ser óbvia a vantagem quer para o dominus/mandante quer para a procuradora/mandatária decorrente da procuração em causa nos autos, pois DD viu os seus assuntos (materiais e até espirituais) tratados pela ré e esta, como forma de pagamento, ficou com a possibilidade de vender a si própria o imóvel em causa, tendo o dominus/mandante manifestado vontade de vincular-se a tal negócio.

”.

L – Refere o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 08.01.2004 (Proc.2 0336461, in www.dgsi.pt) que “A lei não define o “interesse do mandatário ou de terceiro” que se deva ter como relevante para exclusão do princípio geral da irrevogabilidade da procuração, sendo de atender, normalmente, à “relação jurídica em que a procuração se baseia” M – O Ac. desse Supremo Tribunal de Justiça, de 13.07.2010, (Proc. 67/1999.E1.S1, in www.dgsi.pt) que é “caso típico daquele interesse o de qualquer deles ter contra o dador de poderes uma pretensão “realização do negócio” ou “o direito a uma prestação”.

N – Também o acórdão da Relação de Coimbra de 31.05.2011, citado e identificado na douta sentença proferida na 1ª Instância, refere que «a lei não delimita as razões para a outorga da procuração, deixando as “razões” entregues à autonomia privada. Daí que a procuração tenha evoluído deste extremo, em que se situa a procuração outorgada no exclusivo interesse do dominus, permitindo-se, com esta desfuncionalização, usar a procuração como instrumento de garantia ou de execução de negócios jurídicos ou outros fins lícitos que esse tipo seja adequado a satisfazer.».

O – Os factos demonstram claramente que entre o DD e a...

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