Acórdão nº 2146/05.0TVLSB.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Setembro de 2013

Magistrado ResponsávelSALAZAR CASANOVA
Data da Resolução12 de Setembro de 2013
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1.

AA intentou ação declarativa com processo ordinário contra o Hospital de S. Francisco Xavier, S.A. e Hospital Egas Moniz, S.A., atualmente denominados Centro Hospitalar Ocidental, E.P.E representado por um único mandatário (cf. fls. 271) e contra os Drs. BB e CC pedindo a sua condenação solidária no pagamento da indemnização de 40.000€ pelos danos físicos e morais causados e na indemnização pela incapacidade permanente que se vier a apurar resultante das atuações descritas.

  1. O A. alegou que no dia 8 de julho de 2004 começou a sentir febre. Nesse dia, às 21 horas, foi atendido nos cuidados ambulatórios do Hospital de S. Francisco Xavier, S.A. onde lhe foi feita uma colheita de sangue no braço direito que foi enviada para análise.

  2. Foi-lhe aplicado soro enquanto aguardava o resultado da análise, sendo transferido para o Balcão Homens.

  3. Os resultados da análise foram negativos no que respeita à suspeita de malária.

  4. Regressando a casa, o A. começou a sentir ardor no local do antebraço onde lhe tinha sido aplicado o soro, aparecendo no mesmo local uma mancha escura.

  5. A mancha no braço foi crescendo em direção à mão e ao cotovelo, começando no dia 12 de julho a envolver todo o braço, dirigindo-se ao Instituto de Medicina Tropical onde lhe foi feita nova recolha de sangue e análise à malária cujo resultado deu negativo.

  6. Voltando ao Hospital de S. Francisco Xavier, e queixando-se do que estava a suceder no braço, foi-lhe dito que tinha sido infetado por bactéria, sendo internado no S.O.

  7. No dia 13 de julho é transferido para o Hospital Egas Moniz.

  8. Inicia na Unidade de Cuidados Intensivos Gerais, onde lhe é aplicado um "cateter" na virilha direita, tratamento com antibióticos pela via venosa.

  9. Constata-se no dia 25 de julho que o cateter implantado havia sido infetado por um fungo " candida albicans".

  10. Um novo cateter é implantado, removido o anterior, mas agora na virilha esquerda, sendo muito dolorosa a implantação.

  11. Abre-se fístula, devido à infeção, na parte interior do braço.

  12. Como o sangue estava coagulado, são abertas duas incisões à esquerda e à direita do cotovelo, do lado exterior do braço, para permitir a extração de sangue coagulado e massa muscular e permitir a desinfeção, minimizando a morfina administrada o doloroso tratamento.

  13. No dia 30 de julho o cateter implantado também aparece infetado pelo mesmo tipo de fungo.

  14. Carecia o autor de uma cirurgia plástica para tapar exposição do cotovelo provocada pelas incisões descritas resultantes da bactéria que o infetara com a administração do soro.

  15. É transferido para medicina II, no dia 17 de agosto é-lhe dada alta hospitalar que dura até ao dia 21 de agosto, data em que regressará ao hospital para intervenção cirúrgica agendada para 24 de agosto.

  16. No dia 24 de agosto é submetido a intervenção cirúrgica com anestesia geral para extração de tecidos recolhidos da coxa direita para tapar a exposição do cotovelo direito, ficando com o braço direito ligado e com uma tala que vai do ombro até ao pulso.

  17. Fica a saber que foi infetado com uma bactéria que, para além de infetar os tecidos, estava também a atingir o tricípite.

  18. Os tecidos do braço direito são queimados com nitrato de prata.

  19. No dia 14 de setembro é sujeito a nova intervenção cirúrgica com anestesia geral para remoção dos tecidos infetados e para proceder à excisão do tricípite.

  20. É sujeito a terceira intervenção no dia 28 de setembro para coser o cotovelo ao abdómen para que se verificasse a transferência de tecidos e para que a pele do abdómen forrasse o cotovelo, ficando o cotovelo afundado e ligado ao abdómen e o braço dobrado de tal modo que tinha a mão direita sobre o ombro esquerdo.

  21. No dia 26 de outubro é submetido a nova intervenção cirúrgica com anestesia geral destinada a separar o braço do abdómen.

  22. Alegou o autor ter sido infetado com uma bactéria no Hospital de S. Francisco Xavier, com um fungo nas virilhas e uma outra bactéria no Hospital Egas Moniz.

  23. Mais alegou o autor: - Que a existência de fungos e bactérias nas instalações dos Hospitais não se enquadra numa prestação de serviços de saúde com qualidade, devendo existir diligência máxima na fiscalização e controlo dos níveis de higiene de instalações e equipamentos.

    - Que as comissões de controlo de infeções e o pessoal encarregado de prevenir as infeções hospitalares não cumpriram as suas atribuições.

    - Que o serviço de enfermagem não foi eficiente tendo sido colocado gelo sem qualquer cuidado em cima do joelho - Que a tala não lhe foi bem colocada pois causava-lhe dores intensas - Que as casas de banho apresentavam graves problemas de higiene e limpeza - Que os médicos não se certificaram de que os instrumentos médicos utilizados estão devidamente esterilizados - Que não atuaram com a prontidão devida na marcação da operação relativa à cirurgia plástica para tapar a exposição em que se encontrava o cotovelo, cirurgia que era urgente, estando o autor em condições de ser operado no dia 8 de agosto o que só veio a suceder no dia 24 de agosto.

  24. Em consequência dos factos referidos o A. ficou com manchas, deformações e cicatrizes no corpo, ficou impossibilitado de conduzir, de proceder sozinho à sua higiene pessoal diária, não levanta o braço a mais de 30º, o antebraço não vai abaixo dos 45º e não o levanta acima dos 60º a 65º, tem problemas na articulação da mão e na rotação do braço e mão, sofrendo incapacidade permanente, tudo isto em consequência direta das operações a que teve de ser sujeito devido à bactéria e fungos com que foi infetado.

  25. A ação foi julgada improcedente por sentença confirmada pelo acórdão da Relação de que o autor interpôs recurso de revista cuja minuta finaliza com as conclusões que a seguir se transcrevem: 1.Não procede a argumentação que o ora A. não logrou provar o facto ilícito. O facto ilícito foi a própria punção, uma vez que resulta da natureza das coisas e da experiência comum que uma punção que respeite as leges artis não leva à entrada de bactérias no sangue.

    In casu a punção levou à entrada na corrente sanguínea de uma bactéria perigosíssima. Uma punção feita de acordo com as leges artis não levaria a uma infeção que quase matou o recorrente. O ato ilícito é pois o modo como foi feita a punção. O relatório pericial e os factos dados como provados não dão margem para dúvidas. O recorrente logrou identificar o que foi ilícito no sentido de violar as leges artis.

  26. Sem conceder acrescenta, no caso em apreço , a prova do facto ilícito e da culpa, tal como o acórdão recorrido pretende, é impossível ou praticamente impossível para quem se encontre na mesma situação que o recorrente. Ele não sabe quem lhe fez a punção, se lavou as mãos, se o material foi esterilizado, se a agulha esteve em contacto com algo estranho. E não sabe porque é impossível saber.

  27. Em todo o caso sempre se deverá interpretar o art. 342º do C.C. no sentido de que se inverte o ónus da prova nestes casos, interpretação essa que, salvo melhor entendimento, é legítima, como demonstra o Ac. STJ de 17-12-2002, revista 02A4057 (rei. Afonso Melo), disponível em www.dgsi.pt, já supra citado.

  28. Entende o recorrente que existe uma lacuna na lei já que à data em que criou o regime dos arts. 342º a 344º do C.C., o legislador nunca vislumbrou a possibilidade de virem a existir fora do âmbito contratual serviços que até então sempre foram típica e tradicionalmente contratuais. Temos assim uma situação que a lei não previu. Tal lacuna deverá ser preenchida aplicando a presunção de culpa contida no art. 799º nº2 aos casos deste tipo de serviços, ou alternativamente, aplicando a regra do nº 2 do art. 344º aos casos em que, no âmbito desse tipo de serviços, a prova dos factos seja diabólica, ainda que o seja por facto não imputável à parte contrária.

  29. Uma interpretação do nº2 do art. 344º do C.C. que não tenha em conta o supra exposto, isto é, que não tenha em conta a impossibilidade de prova por motivo alheio ao recorrente é inconstitucional por violação do art. 20º da C.R.P.

  30. A interpretação que o acórdão recorrido faz das regras do art. 342º a 344º cria um sistema no qual, em caso de erro médico culposo praticado no S.N.S., na maioria dos casos, a existência de tutela jurisdicional por violação de direitos do doente é meramente formal.

    Tal sistema não será aceitável no quadro do art. 209.º da Constituição, que não se satisfaz com a mera existência formal de meio de tutela, antes exigindo sempre meios efetivos de tuteia.

  31. Estabelece ainda, sem razão material legítima que o justifique, um sistema de tutela muito menos equitativo para os utentes do S.N.S. em comparação com os do privado. Se os direitos do paciente são os mesmos, se os deveres de cuidado do prestador são os mesmos, se os bens jurídicos em causa são os mesmos, é arbitrário dar ao utente do serviço público uma tutela muito diminuída dos seus direitos face aos utentes do privado. Ora, a proibição do arbítrio é um dos corolários máximos do princípio da igualdade contido no art. 13.º, que, assim, foi violado.

    Nestes termos e nos mais de Direito, que V/ Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser considerado procedente por provado, e o douto acórdão a quo revogado e substituído por outro que condene a R. Hospital São Francisco Xavier, S.A., hoje Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, E.P.E. em indemnização pedida pelos danos provocados, só assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA! 27.

    Factos provados: 1. Em 2002, o autor teve malária.

  32. No dia 8 de julho de 2004, pela tarde, o autor começou a sentir febre.

  33. No dia 9 de julho a febre manteve-se e o autor marcou uma consulta com o seu médico de família que admitiu que a febre pudesse ser originada por malária e o aconselhou a fazer análises de sangue no hospital.

  34. O autor achava que não tinha malária, nomeadamente, porque não tinha diarreia nem vómitos.

  35. No dia 9 de julho de 2004 o autor é atendido na Unidade de Cuidados Ambulatórios do...

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