Acórdão nº 08B2176 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 23 de Outubro de 2008

Magistrado ResponsávelSANTOS BERNARDINO
Data da Resolução23 de Outubro de 2008
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1.

A... S... DA V...

, pessoa colectiva com sede na Malveira, intentou, em 22.10.2003, pela 13ª Vara Cível de Lisboa, contra P... - I... L..., S.A.

e P... - C... S..., S.A.

, acção com processo ordinário, alegando, em síntese, o seguinte: É uma associação sem fins lucrativos que tem como escopo, entre outros fins, a prevenção do aborto, no pressuposto de que tal acto atenta contra a vida de um ser humano inocente e prejudica gravemente a saúde e bem estar da mulher que o pratica.

As rés - a primeira, no jornal "O C... da M...", de que é proprietária, e a segunda, no jornal "P...", sua propriedade - costumam publicar, periodicamente, nas páginas destes jornais, anúncios abortófilos, publicitando a interrupção voluntária da gravidez em duas clínicas de Espanha, onde são praticados abortos em condições que a lei portuguesa proíbe e incrimina, nomeadamente fora das excepções previstas no art. 142º do CP.

Tais anúncios contribuem para que mulheres indecisas optem pelo aborto, sofrendo as consequências inerentes, nomeadamente as ligadas ao síndrome pós-aborto.

A Constituição consagra a inviolabilidade do direito à vida (art. 24º/1) e o CP qualifica o aborto como crime, salvo algumas excepções contempladas no art. 142º; e o Cód. da Publicidade proíbe a publicidade que estimule ou apele à violência, bem como a qualquer actividade ilegal ou criminosa [art. 7º/2.d)].

Acresce que é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja contrário à lei ou à ordem pública (arts. 280º/1 e 281º do CC), ou ofensivo dos bons costumes - nulidade que é invocável a todo o tempo, por qualquer interessado, e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.

São, assim, os ditos anúncios ilegais, contrários à ordem pública e ofensivos dos bons costumes, já que publicitam um serviço que se traduz na matança de seres humanos inocentes, com sequelas graves para as respectivas mães.

Com estes fundamentos, a autora pede que seja declarado nulo o negócio jurídico de publicidade que tem por objecto os anúncios abortófilos que publicitem a oferta de serviços de interrupção voluntária de gravidez e as rés condenadas a absterem-se de os publicar.

Contestou a 1ª ré, deduzindo defesa por excepção - incompetência em razão da matéria da autora; ilegitimidade da ré, por preterição de litisconsórcio necessário - e por impugnação, sustentando a não aplicação do Cód. Penal Português, a inexistência de ilícito criminal, a não violação do Cód. da Publicidade ou de norma constitucional, e a não contrariedade dos anúncios à ordem pública ou aos bons costumes, não podendo, por isso, gerar qualquer nulidade; divulgando serviços legais dentro da UE, os anúncios não deverão ser vetados por qualquer jornal, sob pena de violação de princípios comunitários basilares, como a liberdade de circulação de pessoas e de serviços, e o princípio da igualdade e da não discriminação.

Em transacção oportunamente efectuada com a 2ª ré, a autora veio desistir do pedido quanto a esta ré - tendo a transacção sido homologada por decisão judicial (fls. 49).

Seguidamente, a autora ofereceu a sua réplica, defendendo a improcedência das arguidas excepções; e, continuando o processo a sua normal tramitação, veio a efectuar-se o julgamento e a ser proferida sentença que, julgando a acção procedente, declarou a nulidade do contrato de publicidade que tem por objecto os anúncios abortófilos que publicitem a oferta de serviços de interrupção voluntária de gravidez e condenou a ré P... - I... L..., S.A. a abster-se de, no futuro, os publicar.

Com o assim decidido não se conformou a dita ré, que interpôs recurso de apelação da sentença.

E a Relação de Lisboa, em acórdão oportunamente proferido, julgou procedente a apelação, e, revogando a sentença recorrida, julgou improcedente a acção, absolvendo a ré/recorrente do pedido.

É agora a autora que dissente do decidido, interpondo do acórdão da Relação o presente recurso de revista.

E, no remate das suas alegações de recurso, formula um extenso leque de conclusões, sintetizável nas seguintes: 1ª - O feto é um ser humano, e o aborto - que põe termo à sua vida - pode ser feito por diversos métodos: método D & C (dilatação e corte); aspiração; envenenamento por solução salina; aborto químico com prostaglandinas; cesariana ou histerectomia; 2ª - A publicidade ao aborto visa promover esse serviço - um serviço de eliminação ou morte de vidas humanas; 3ª - O aborto implica uma derrogação da ética médica universal e milenar e traz normalmente graves sequelas físicas e psicológicas para a mulher, sobretudo no que concerne ao síndrome pós-aborto; 4ª - A mulher em dilema não deverá ser alvo de "promoções publicitárias" de serviços abortivos, dos quais, quase seguramente, se arrependerá a muito curto prazo; 5ª - O Tribunal recorrido confundiu duas situações diferentes: o negócio através do qual uma mulher voluntariamente se faz abortar por um terceiro (a chamada interrupção voluntária da gravidez) e o negócio através do qual um jornal publicita, através de anúncios, a disponibilidade de uma terceira entidade para celebrar o aludido negócio com mulher indeterminada (exemplo de contrato de difusão publicitária); 6ª - Ficou assente que os anúncios em causa "contribuem para que mulheres indecisas optem pelo aborto", contribuindo este acto de marketing para a ruptura da natural inibição que uma mulher sente quando se confronta com a opção entre abortar ou guardar um filho; 7ª - A confusão referida na conclusão 5ª só seria legítima se nesta acção estivessem em causa os interesses da mulher grávida. Mas tal não é verdade: não existe nenhum "interesse" ou "direito" a ter a própria vontade influenciada por técnicas de marketing, nem mesmo à luz do novo regime do aborto; 8ª - O que, em qualquer empreendimento lucrativo, as técnicas de marketing visam satisfazer, não é o interesse ou os direitos do cliente potencial, mas sim induzi-lo ao consumo; e, à luz do princípio da boa fé, não faz sentido considerar que os responsáveis por uma clínica que publicita serviços abortivos tenha motivação diferente; 9ª - A erosão da censura pública dirigida a certo comportamento não implica necessariamente uma erosão desta em relação a actos que visem fomentar o dito comportamento, nomeadamente com intuito lucrativo; 10ª - É facto notório ser, no nosso país, generalizada a repugnância gerada pelo aborto voluntário, mas sem que tal repugnância se estenda à mulher que aborta. A actividade destas clínicas, quando e onde não é rejeitada pelas populações, tende a ser apenas tolerada, em atenção aos interesses da mulher. Indício desta realidade é também o elevado número de médicos objectores de consciência, que "obriga" à abertura de clínicas especializadas em todos os países que despenalizam o aborto voluntário. É, assim, ilegítimo invocar, a favor de quem, com intuito lucrativo, anuncia a sua disponibilidade para praticar o aborto voluntário, aquele facto incontroverso de que a referida repugnância social não se estende à mulher que aborta. E, sendo assim, este negócio (de difusão publicitária) é nulo, porque ofensivo dos bons costumes (art. 280º/2 do CC); 11ª - A lei, no reconhecimento dessa rejeição do aborto voluntário pela consciência social, tem mantido um regime geral de punição criminal deste (art. 140º do Cód. Penal), derrogado por um regime especial taxativamente limitado às hipóteses do art. 142º, sendo que qualquer desvio em relação ao regime especial implica a sujeição ao regime geral; 12ª - Este negócio constitui abuso do direito (de publicidade), por violação do disposto no art. 334º do CC, no que respeita aos bons costumes, sendo incorrecto tirar, a partir da premissa da despenalização do aborto (limitada no seu âmbito), a conclusão de que a interrupção voluntária da gravidez se tornou um negócio como qualquer outro, com menos restrições à sua publicidade do que o tabaco ou as bebidas alcoólicas, cujo comércio não sofre de semelhante censura social e legal; 13ª - O nascituro, mesmo não tendo personalidade jurídica, é um indivíduo com personalidade física; e sendo a vida humana um bem jurídico inviolável (art. 24º da CRP) e, como tal, indisponível, a ameaça de ofensa a este bem, configurada por um anúncio susceptível de induzir uma mulher indecisa a optar pelo aborto, é totalmente banida do âmbito da legalidade pelo nosso ordenamento jurídico, não tendo, sequer, sido ressalvada na recente lei...

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