Acórdão nº 476/09.0PBBGC.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 15 de Fevereiro de 2012

Magistrado ResponsávelSANTOS CARVALHO
Data da Resolução15 de Fevereiro de 2012
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça 1.

A foi julgado na 1ª Vara Criminal do Porto, no âmbito do processo n.º 476/09.0PBBGC e, por acórdão de 01/07/2010, foi condenado como autor material de um crime de violação p. p. no art.º 164.º n.º 1 do C. Penal, na pena de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova. Foi ainda condenado a pagar à assistente/demandante B a quantia de € 30 000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, a qual havia peticionado uma indemnização total, por tais danos, de € 100 000,00.

Desse acórdão condenatório recorreram para o Tribunal da Relação do Porto quer o arguido, quer o M.º P.º, quer a assistente/demandante.

Por acórdão de 13-04-2011, o Tribunal da Relação do Porto absolveu o arguido, tanto da parte criminal como do pedido cível.

Da parte criminal recorreram para o STJ o MP e a assistente, e esta última, na qualidade de demandante, recorreu também da parte cível.

Porém, a relatora do processo só admitiu o recurso da demandante na parte cível, mas não os recursos na parte penal, pois considerou que da conjugação dos art.ºs 432.º e 400.º do CPP resulta que não há recurso das decisões absolutórias proferidas em recurso pelas relações. Dos despachos de não recebimento dos recursos penais houve reclamações para o Presidente do STJ, ambas indeferidas.

Daí que só esteja em causa agora o recurso da demandante cível.

2.

No recurso para o STJ, a demandante B retirou as seguintes conclusões: 1ª. Salvo sempre o devido respeito, a alteração da matéria de facto efetuada pelo douto Tribunal recorrido é indevida e injustificada, tendo ocorrido violação do princípio da imediação da prova na apreciação da credibilidade do depoimento da vítima.

2ª. Atendendo a diferenças no depoimento prestado pela vítima à Polícia e em audiência de julgamento, perfeitamente normais numa vítima de violência, o Tribunal recorrido duvidou da credibilidade desta, não tendo, em contrapartida, atendido ao facto de o arguido ter cometido maiores discrepâncias entre os seus variados testemunhos, conforme assinala o inspetor da PJ, que assinala que o arguido deu mesmo explicações mirabolantes para os factos, donde resultou que o conflito entre a credibilidade do depoimento da vítima e a do acusado foi, sem qualquer fundamento objetivo, resolvido a favor deste.

3a. O acórdão recorrido não respeitou os critérios legais e doutrinais para se proceder a exceções relativamente ao princípio da imediação da prova, tendo em conta que a sentença de 1ª instância não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora da experiência comum.

4a.

Designadamente, é indevida a eliminação do elenco dos factos provados qualquer referência ao facto de o arguido ter atuado sabendo que o fazia contra a vontade da ofendida, sendo que os factos que subsistem como provados e as regras da experiência conduzem à conclusão contrária.

5ª. Eliminado o termo "reagiu", o que resta no parágrafo 7°, seja, "A ofendida levantou-se e tentou dirigir-se para a porta de saída,…" , isto após a prática do coito oral, configura uma clara e objetiva manifestação de vontade de repúdio do ato antecedente e de recusa de qualquer outro ato de tipo libidinoso.

6a. Esta manifestação de discordância da ofendida esteve ao alcance da perceção direta do arguido, o qual, tinha capacidade para valorar as suas atitudes, compreender a natureza lícita ou ilícita dos seus atos e conhecer as consequências do seu comportamento.

7a.

Desta forma, a eliminação do parágrafo 11° dos factos provados do acórdão recorrido traduz erro na apreciação da prova, na medida em que, inequivocamente, os factos foram praticados pelo arguido num registo contrário à vontade da mesma.

8ª. Como quer que seja, a eliminação do conhecimento desse facto por parte do arguido do elenco dos provados, afastando embora a imputação das modalidades mais graves do dolo, não pode ter por implícito que também se não verificou o dolo eventual, com o que haveria ainda que indagar, e responder, sobre se o arguido, ao menos, representou como consequência possível da sua conduta a ofensa da liberdade de determinação sexual da assistente e se, tendo-o representado, se conformou com tal eventualidade.

9a. De qualquer forma, a imputação dos factos ao arguido a título de negligência constitui também uma violação do princípio da igualdade: para a relevância do erro não basta que o arguido tenha acreditado no consentimento da vítima, devendo supor-se que, naquelas circunstâncias, também teria acreditado no consentimento uma pessoa razoável, cujo comportamento não fosse motivado por preconceitos e estereótipos masculinos e femininos.

10ª. De acordo com critérios de razoabilidade, não é crível que, se a mulher se levanta para sair do consultório, depois de ter sido assediada, e se o médico a empurra contra o sofá para impedir a saída e consumar o ato sexual, tenha havido qualquer erro quanto à falta de consentimento desta, denotando este comportamento do arguido, de forma inequívoca, dolo direto, ou ainda que assim não se entenda, a existência, no mínimo dolo eventual.

11ª. A conclusão do Tribunal recorrido, quanto ao caráter negligente da violação, é completamente subjetiva e sem base na matéria de facto nem nas alterações à matéria de facto a que procedeu, constituindo também, por falta de base factual e jurídica, uma violação do princípio da igualdade enquanto igualdade na aplicação do direito e proibição da discriminação de género, pois assenta em estereótipos que privilegiam a perspetiva do agressor, em detrimento da perspetiva da vitima.

12a.

Alterando, como o fez, a matéria de facto, o douto Acórdão recorrido violou assim o princípio da imediação da prova na apreciação da credibilidade do depoimento da vítima e o princípio da igualdade, produzindo erro notório na apreciação da prova.

13a. Contrariando, designadamente, o disposto no art.º 127.º, com referência aos art.º 434.º e 410.º, n.º 2, al. c), todos do CP.

14ª. Ao contrário do doutamente considerado a fls. 57 do douto Acórdão recorrido, considera-se que a matéria de facto dada como provada, mantida ou alterada, preenche de qualquer forma o especifico tipo do art.º 164.º, n.º 1, do CP.

15a.

Os factos provam uma ação física violenta exercida pelo arguido sobre a ofendida, de modo a obrigá-la quer ao coito oral, quer à cópula, por se verificar em concreto o requisito do uso de violência com vista ao seu constrangimento, em total desrespeito da sua vontade, e preenchem e integram, por isso, os elementos objetivos do tipo do crime de violação.

16a. A ofendida padecia de doença e estado depressivo, em tratamento ministrado pelo arguido, com 34 semanas de gravidez, estava física e emocionalmente fragilizada e arguido tinha perfeita consciência de tais circunstâncias.

17a.

Os atos de agarrar a cabeça para meter o pénis na boca e de, quando em reação negatória de tal ato, a ofendida se ter levantado e tentado dirigir-se para a porta de saída, o arguido, aproveitando-se do estado de gravidez avançado que lhe dificultava os movimentos, a ter agarrado, virado de costas, empurrado na direção do sofá fazendo-a debruçar-se sobre o mesmo, baixar-lhe as calças de grávida e introduzido o pénis ereto na vagina até ejacular, não podem deixar de traduzir o uso de violência/força, adequadas necessária à violação em concreto, em face do estado físico e psíquico da ofendida e fora de qualquer padrão de normalidade.

18a. O conceito de violência como meio de constrangimento está preenchido nos atos de "empurrão contra o sofá", "virá-la de costas" e "baixar-lhe as calças", sobretudo, atendendo às circunstâncias do caso: a falta de mobilidade devido a gravidez em fim de tempo, a hierarquia médico-paciente, a depressão e a fragilidade emocional da ofendida.

19a. Salvo o devido respeito, na linha de raciocínio do Tribunal recorrido, o arguido teria sido condenado caso a assistente não se encontrasse emocionalmente debilitada e com 34 semanas de gravidez e se encontrasse psíquica e fisicamente equilibrada: neste caso, a ofendida teria usado da resistência "normal", debatendo-se como qualquer mulher tentada violar, ao que o arguido teria usado previsivelmente de força física adequada, traduzindo então o tal "plus" relativamente à força física normalmente utilizada na prática de um ato sexual (i.e. a vis haut ingrata que acompanha frequentemente ou quase necessariamente o trato sexual), aludido a fls. 64, início, do douto Acórdão recorrido.

20a. Esta tese reconduziria inevitavelmente à impensável licitude e não punição do ato de violação, constituindo um verdadeiro conforto e convite à tal prática, não para os violadores de mulheres em estado normal e equilibrado (porque estes seriam punidos sempre pelo art.º 164.º, CP, por terem de usar violência acrescida), mas para os violadores de mulheres física e/ou emocionalmente fragilizadas, com menores capacidades de defesa e, por decorrência, carentes de maior proteção jurídica.

21ª. As regras da experiência comum conduzem a...

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