Acórdão nº 916/03.2TBCSC.L1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Janeiro de 2012
Magistrado Responsável | ÁLVARO RODRIGUES |
Data da Resolução | 12 de Janeiro de 2012 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: RELATÓRIO AA, com sede em n.º ....-...., .............., Chung-Ku, Seul, na Coreia do Sul, intentou contra BB, residente na Rua ................, n.º 17, em Cascais, a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário, pedindo que o Réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia de um milhão de euros (€ 1.000.000,00), acrescida de juros de mora desde a citação até ao pagamento.
Para tanto, alegou, em síntese, que enquanto responsável pelos serviços financeiros da SPEM [SAMSUNG (PORTUGAL) PRODUTOS ELECTROMECÂNICOS – S.A] e membro do respectivo conselho de administração, o Réu praticou actos, à revelia da administração, que conduziram à insolvência da SPEM, sobre aquela existia um crédito que o Autor adquiriu.
O Réu contestou, requerendo a intervenção principal dos demais administradores da SPEM, arguindo a ilegitimidade do Autor e defendendo-se por impugnação, nos termos constantes da referida peça processual.
Seguiram-se os demais articulados e findos estes, foi proferido despacho onde se considerou que estava em causa uma acção de sub-rogação, que impunha a demanda da devedora, em litisconsórcio necessário com o credor, tendo o A. sido convidado a suprir essa excepção dilatória, e a concretizar alguns dos pontos de facto alegados, em nova petição inicial.
O que o mesmo veio a fazer, mantendo, embora, que a sua pretensão não assentava em direito de sub-rogação, embora nada obstasse à sua invocação.
Seguiu-se nova contestação e réplica.
No despacho saneador reconheceu-se que assistia razão ao A., e que a sua pretensão não era fundada em sub-rogação, tendo sido dado sem efeito o despacho de aperfeiçoamento nessa parte, prosseguindo os autos apenas contra o réu inicial.
O R. ainda agravou do assim decidido, e apresentou as respectivas alegações, mas, entretanto, declarou não manter interesse na apreciação desse recurso.
No relatório que antecede já foram considerados os articulados “aperfeiçoados”, desconsiderando-se as referências ali feitas à R. SPEM, que, no fundo, nunca o foi, e deixou de o ser formalmente a partir do despacho saneador, posto que o recurso interposto tinha efeito meramente devolutivo.
No despacho saneador foi, ainda, indeferido o incidente de intervenção principal suscitado pelo R. e julgada improcedente a excepção de ilegitimidade do A.
Decisões também abrangidas no recurso de agravo interposto pelo R., admitido a subir diferidamente, em relação ao qual o agravante declarou não manter interesse na sua apreciação.
Os autos prosseguiram para julgamento, realizado com registo da prova produzida, culminando na decisão sobre matéria de facto exarada a fls. 1417 a 1424.
O A. apresentou alegações sobre o aspecto jurídico da causa, defendendo a procedência da acção.
Seguiu-se a sentença, onde a acção foi julgada improcedente, com a absolvição da R. do pedido.
Inconformado, o A. apelou do assim decidido, para o Tribunal da Relação de Lisboa que, todavia, julgou tal recurso improcedente, confirmando, ainda que por fundamentação não coincidente, a decisão recorrida.
Ainda inconformado, o Autor veio interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes: CONCLUSÕES 1. Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão a quo que, não obstante reconhecer que o Recorrido agiu com culpa e em violação dos seus deveres de administração, concluiu não estarem verificados in casu os pressupostos legais de que depende a responsabilidade dos gerentes ou administradores para com os credores societários, considerando que as disposições legais inobservadas pelo Recorrido causa das perdas da SAMSUNG (PORTUGAL) PRODUTOS ELECTROMECÂNICOS, S.A. (doravante "SPEM") e inerente descaminho da garantia patrimonial do crédito da Recorrente -, não são disposição legais destinadas à protecção dos credores nos termos e para os efeitos do artigo 78.° do CSC.
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Efectivamente, para a efectivação dessa responsabilidade civil, é corrente aceitar-se que não basta o mero preenchimento dos requisitos previstos no art. 483.°, n.° 1, do Código Civil, exigindo-se ainda que se verifique a violação de normas de protecção dos credores e que essa violação seja causa de insuficiência patrimonial.
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Todavia, ao contrário do entendimento sufragado no Acórdão a quo, retira-se da doutrina que todas as disposições legais referentes à conservação, contabilização e limitação de uso do património social visam tutelar terceiros, maxime os credores sociais, até porque o património societário constitui a garantia geral e comum dos credores (cfr. artigo 601° do CC).
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A tutela da confiança e da segurança jurídica impõe como imperativo o princípio da separação de patrimónios para obstar a que os bens ou património dos sócios se confundam com os bens ou património da sociedade, impedindo que retirem da sociedade, indiscriminada e livremente, os bens ou valores que não se comportem nos limites dos rendimentos e lucros distribuíveis (artigos 31° e 32° do Código das Sociedades Comerciais).
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Por outras palavras: o património social é, em regra, o único garante dos credores da sociedade. O mesmo é dizer que só os bens e créditos sociais inscritos no activo é que constituem a garantia dos débitos da sociedade, ou seja, o património líquido da sociedade.
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Consequentemente, se só o património social responde perante credores da sociedade, então ele deve ficar reservado à satisfação deles, não podendo ser utilizado em desrespeito das normas imperativas referentes à conservação do capital, à capacidade e objecto social da sociedade e à fiscalização das suas contas. Por outras palavras, aquele que tem poderes de disposição numa sociedade não pode dispor arbitrariamente do património social.
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É nesta esteira que Vasco da Gama Lobo Xavier perfilha do entendimento de que estão abrangidas pelo artigo 78.°, n.° 1 do CSC, para além das disposições legais que directamente visam proteger os credores sociais, as que protegem os sócios e que, reflexa e complementarmente, têm uma componente de protecção dos credores, incluindo nestas últimas as normas de promoção do bom funcionamento da sociedade.
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Conforme o Acórdão do Tribunal a quo expressamente consigna, estão in casu verificados à saciedade todos os pressupostos da responsabilidade civil delitual (cfr. pontos 6,13,14,15, 16,17,18,21,23,25 26 e 27 da matéria de facto assente) 9. Reconhece ainda o Acórdão em crise que o Recorrido "realizou operações cambiais de mera especulação financeira, claramente excluídas do objecto social da sociedade administrada, com a dimensão e com os resultados que ficaram evidenciados em sede de matéria de facto", de onde imediatamente se retira que tal conduta constitui uma frontal violação do preceituado no artigo 6.°, n.°s 1 e 4 do CSC, de onde decorre a limitação da actividade social ao fim prosseguido pela sociedade, impondo aos órgãos sociais a obrigação de limitarem a actividade social ao objecto da sociedade.
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Assim, embora se retire do n.° 4 do artigo 6.° do CSC que o objecto social não restringe a capacidade da sociedade comercial, certo é que cria para os órgãos desta a obrigação de não praticarem actos que se situem fora dele, por não dizerem respeito à sua prossecução.
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A SPEM tinha por objecto o fabrico e comercialização de produtos eléctricos e electromecânicos em Portugal e foi fora desse objecto social que o Recorrido foi contraindo para a sociedade dívidas com a celebração de contratos especulativos de natureza cambial, bem sabendo que a sociedade que lhe cabia gerir as não podia pagar e que o valor do património societário, em consequência dessa conduta, era já muito deficitário (cfr. ponto 14 e 15 da matéria de facto assente).
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Somada a conduta do Recorrido verifica-se que apenas sobrou para a SPEM o encargo resultante do acumular de dívidas, contraídas à revelia dos restantes administradores, ficando a sociedade desprovida da possibilidade de desenvolver o objecto social para o qual fora criada e que a personalizava. E, naturalmente, com cujos resultados contava para pagar aos seus credores.
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Os credores da SPEM, que tinham no património desta e no desenvolvimento da sua actividade social, a protecção e garantia dos seus créditos, viram assim desaparecer essa garantia e essa protecção.
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De onde decorre que o Recorrido desrespeitou claramente o preceituado no artigo 6.°, n.°s 1 e 4 do CSC, a qual prevê a limitação da actividade social ao fim prosseguido pela sociedade, e a imposição aos órgãos sociais da obrigação de limitarem a actividade social ao respectivo objecto. Sendo, pois, uma norma que tutela directamente os interesses dos credores sociais.
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Errou assim o Tribunal a quo, ao considerar que a ante referida disposição legal é "uma norma de simples protecção das sociedades, e dos terceiros que com ela contratam, não sendo uma norma de protecção dos interesses dos credores sociais".
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Com efeito, só por erro manifesto de direito pôde o Tribunal recorrido considerar que entre os terceiros que contratam com a sociedade, que no seu douto entendimento se encontram tutelados pelo artigo 6.° do CSC, não cabem os credores sociais, pois qualquer terceiro é um potencial credor social! 17. Resulta, assim, inequívoco que, ao contrário do que entende o Tribunal a quo, as disposições legais referentes às limitações legais, naturais e estatutárias à capacidade das sociedades comerciais são verdadeiras normas de protecção dos interesses dos credores sociais.
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Mais, de acordo com o artigo 6.° do CPEREF (actual artigo 18.° do CIRE), cabe à empresa o dever de requerer a declaração da sua insolvência dentro dos sessenta dias seguintes à data da situação de insolvência, o que constitui fundamento de responsabilidade civil extracontratual dos administradores perante os credores (vide Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, p. 129 e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, p. 34).
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