Acórdão nº 06A2412 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 28 de Setembro de 2006

Magistrado ResponsávelAFONSO CORREIA
Data da Resolução28 de Setembro de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Por apenso à execução com processo ordinário para pagamento de quantia certa, instaurada por AA contra Empresa-A deduziu a executada embargos, alegando, em síntese, que a garantia bancária dada à execução não tem cláusula on first demand, pelo que não é pagável à primeira solicitação e não constitui título executivo.

A obrigação assumida pelo Banco embargante através do documento dado execução é futura e condicional, pois ficou dependente do incumprimento pelo mandante das obrigações para ele emergentes do contrato-promessa de aquisição de 360.000 acções da empresa Empresa-B, referido no documento da garantia.

No documento dado à execução não existe qualquer menção que possa ser interpretada como expressando a vontade do Banco executado, ora embargante, de efectuar um pagamento automático, nem o mesmo documento pode ser interpretado como expressão da vontade do mesmo Banco de excluir da sua esfera jurídica o direito a invocar em seu favor as excepções derivadas do contrato-base nele mencionado.

Fundamentalmente pelas razões invocadas, o executado apenas assumiu a qualidade de fiador do obrigado principal. Assim sendo, a referida garantia tem a natureza de fiança, pelo que o documento dado à execução não constitui título executivo.

Alega, por último, que o exequente não fez qualquer prova do incumprimento do contrato-promessa por parte da mandante da garantia. Dada a natureza da fiança o exequente não tem direito a haver do executado, ora embargante, qualquer quantia ao abrigo da garantia por este prestada, pois não houve incumprimento por parte da mandante da garantia, a sociedade Empresa-C.

Contestou o embargado pedindo a improcedência dos embargos, alegando, também em resumo, não fazer qualquer sentido classificar a garantia bancária em causa como fiança. A mesma é autónoma, como se verifica pela existência de prazo de validade, pelo que não faz qualquer sentido discutir a relação subjacente ao contrato de garantia.

Conclui, reafirmando a qualidade de título executivo da garantia bancária dada à execução, nos termos do artº 46º al. c) do CPC.

Afirmada a regularidade da instância, o Ex.mo juiz julgou assentes os seguintes factos: 1 - O embargante subscreveu um documento intitulado GARANTIA BANCÁRIA Nº 35167185.90.19 com o seguinte teor: O BANCO Empresa-A, Sociedade Aberta, pessoa colectiva n. 512004528, com sede na Rua Dr. ..., Edifício..., em Ponta Delgada, matriculado na Conservatória do Registo Comercial de Ponta Delgada sob o n.° 1804, com o capital social de cinquenta e um milhões oitocentos e noventa e dois mil trezentos e sessenta e cinco Euros representado neste acto por BB e CC, na qualidade de procuradores com poderes bastantes para o efeito, e a pedido de Empresa-C, pessoa colectiva n.° 512 006 40, com sede na Rua .., n.°...., concelho de Angra do Heroísmo, com o capital social integralmente realizado de dois milhões e quatrocentos mil euros constitui, pelo presente instrumento, a favor de AA, contribuinte fiscal com o n. 211343951, com morada em..., Leiria, uma garantia bancária, até ao valor de € 1.745.792,60 (Um milhão setecentos e quarenta e cinco mil setecentos e noventa e dois euros sessenta cêntimos) destinada a caucionar o bom cumprimento das obrigações decorrentes para o mandante acima identificado relativas ao contrato-promessa de aquisição de 360.000 acções da empresa Empresa-B A presente garantia é válida até 11/07/2003.

A reclamação de quaisquer montantes ao abrigo desta garantia tem de ser apresentada ao BANCO Empresa-A, Sociedade Aberta até ao termo da sua validade, sob pena de este não ser responsável pelo seu pagamento, independentemente da devolução do respectivo original.

Angra do Heroísmo, 06 de Junho de 2002.

2 - Por carta, recebida pelo embargante em 11.07.2003, o embargado solicitou o pagamento da quantia referenciada no documento mencionado em 1, alegando o incumprimento por parte do mandante da garantia, do contrato - promessa celebrado.

E com base neles decidiu assim: «A questão fundamental nos autos reside em saber se o documento dado à execução e referenciado em 1 pode constituir um título executivo, o que, por sua vez nos remete para uma segunda questão, qual seja a de saber se tal documento deve ser entendido como uma fiança, como defende o embargante, ou uma garantia autónoma, como defende o embargado.

Naturalmente que a solução a dar a esta questão é primordial, dada a diferença de tratamento jurídico de uma e outra.

Com efeito, como decorre dos artigos 627º. 637º e 638º do Código Civil (diploma a que pertencerão as restantes disposições adiante citadas, sem menção em contrário), a fiança é o negócio jurídico pelo qual uma pessoa se obriga para com o credor a cumprir a obrigação de outra pessoa, no caso de esta não o fazer. Por outro lado, o fiador assume uma obrigação acessória, o que lhe possibilita opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor afiançado, conferindo-lhe também o benefício da excussão. Ainda que o fiador renuncie a tal benefício, a sua obrigação está sempre dependente da obrigação principal, porque a sua validade depende da validade daquela, extingue-se com ela, não a pode exceder, nem ser contraída em condições mais onerosas (cf. artºs 631º e 632º).

O contrato de garantia bancária, por sua vez, não se encontra previsto na nossa legislação, sendo aceite no nosso ordenamento jurídico, face ao princípio da liberdade contratual, consagrado no artº 405º.

Neste tipo de contrato, o garante, perante o credor, responsabiliza-se pelo pagamento de uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma obrigação alheia (do mandante da garantia), não garante o cumprimento da obrigação do devedor, visando antes assegurar o interesse do beneficiário da garantia. Precisamente por esta razão é uma garantia autónoma, isto é não tem qualquer subordinação à obrigação garantida.

Como é referido, entre outros, pelo Ac. STJ 21.11.2002, no processo genético de emissão de uma garantia bancária autónoma existe, em primeiro lugar um contrato-base entre o mandante da garantia e o beneficiário, a que se segue um contrato qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante incumbe o banco de prestar garantia ao beneficiário e, por último, o contrato de garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar a soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se venceu e não foi paga e solicite o pagamento, sem possibilidade de invocar a prévia discussão dos bens do beneficiário ou a invalidade ou impossibilidade da obrigação por este contraída.

Cumpre ainda referir que, entre os diversos tipos de garantias bancárias, podemos ainda distinguir as garantias autónomas simples e as garantias autónomas automáticas (também designadas "à primeira solicitação" ou on first demand).

A garantia "à primeira solicitação" pode qualificar-se como uma promessa de pagamento à primeira interpelação, a qual cria uma situação jurídica, por força da qual o garante, ao ser interpelado pelo beneficiário da garantia, terá de pagar, sem poder contestar o pagamento que lhe é exigido. Tal garantia representa para o beneficiário um acréscimo de garantia, pois que o garante fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os pressupostos que legitimam o pedido de pagamento.

Importa, todavia, sublinhar, que autonomia não se confunde com automaticidade, apenas esta reforça aquela. Na verdade, ainda que a garantia não tenha incluída a cláusula on first demand, a mesma continua a ser independente da obrigação garantida, com todas as características já supra enunciadas.

A qualificação jurídica de um contrato passa pela interpretação do alcance e sentido que as partes quiseram dar às suas declarações negociais. Para isso, terá de proceder-se à sua interpretação, que consiste em determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com tais declarações, sujeita às regras estabelecidas nos artigos 236° e seguintes.

Aí se afirma o primado da vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário: do disposto no n.° 2 (do artigo 236°) resulta que, conhecendo o declaratário o sentido que o declarante pretendeu exprimir através da declaração, é de acordo com a vontade comum das partes que o negócio vale, quer a declaração seja ambígua, quer o seu sentido (objectivo) seja inequivocamente contrário ao sentido que as partes lhe atribuíram.

Nos casos em que o declaratário não conhece a vontade real do declarante, o citado artigo 236º consagra uma teoria objectivista da interpretação, mitigada por restrições de índole subjectivista: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2).

No que se refere aos negócios formais, rege o artigo 238° do Código Civil, nos termos do qual, não há sentido possível que não tenha no texto do preceito um de correspondência, a não ser que se trate de matéria relativamente à qual se não exija a forma prescrita, na lei (nº 2), ou prevalecer um sentido que não tenha aquele mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, se esse sentido, corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade.

Analisado o teor do documento, nos termos referidos em 1, ao contrário do defendido pelo embargado, entendemos não existir qualquer cláusula que nos permita a interpretação de que a garantia assumida foi "à primeira solicitação".

Na verdade, os termos utilizados, designadamente a expressão destinada...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO
5 temas prácticos
5 sentencias

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT