Acórdão nº 06P2422 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 14 de Setembro de 2006

Magistrado ResponsávelCARMONA DA MOTA
Data da Resolução14 de Setembro de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Arguido/recorrente: AA ( Detido, por extradição, de 19Mai até 18Dez98, data em que prestou caução carcerária de um milhão de escudos.

) Assistente/recorrido: BB 1. OS FACTOS O arguido e seu primo BB andam de relações cortadas há alguns anos por problemas relacionados com partilhas. Acresce que, em data indeterminada de finais de 1995 ou inícios de 1996, um irmão do arguido pretendeu que a Junta de Freguesia de Mei, da qual BB é secretário, lhe passasse um atestado certificando que já ali residia há mais de seis meses, o que lhe foi negado pelos membros da Junta de Freguesia, por não corresponder à verdade. Motivado por essas tensas relações, o arguido, no dia 09Jul96, pelas 20:45, atravessou o seu veículo automóvel num estradão de terra batida que dá acesso ao lugar de Barreirós, freguesia de Mei, nesta comarca, de forma a impedir a passagem de outros veículos. Fê-lo porque sabia que por ali passaria BB, ao regressar a casa, como efectivamente sucedeu, sendo que o local em questão é um local isolado e onde raramente passa alguém. Ora, BB, que seguia na sua viatura de matrícula GP, ao ver o caminho barrado, deteve a sua marcha, tendo avistado de imediato o arguido, o qual se encontrava do lado esquerdo do caminho e à distância de cerca de oito metros, empunhando uma espingarda idêntica a uma arma de calibre 12 mm com bala de zagalote. Ao avistar o arguido, BB virou-se para ele e perguntou-lhe, através da janela do seu veículo, que se encontrava aberta: «Há azar?». Como resposta, o arguido aproximou-se do veículo de BB e, quando se encontrava a cerca de três metros do mesmo, levou a arma à cara, apontando-a na direcção de BB e disparou dois tiros que o atingiram no terço inferior da face, do lado esquerdo. Ao ser alvejado, BB, sangrando abundantemente, saiu da sua viatura e andou cerca de vinte metros na direcção da estrada nacional, após o que retrocedeu, andando cerca de sessenta metros na direcção oposta, porque entretanto concluíra que havia poucas hipóteses de passar alguém pela estrada. Ao verificar que o arguido retirava para a berma o GP, para assim poder ir-se embora com o seu automóvel, BB entrou no automóvel do arguido, sentando-se ao lado do condutor e disse ao arguido: "Já que me mataste, leva-me ao hospital". O arguido arrancou em direcção a Paredes de Coura, acabando por empurrar BB para fora do carro nas proximidades do Centro de Saúde daquela vila. Em consequência de tal actuação, BB sofreu traumatismo do terço inferior da face à esquerda com fractura cominutiva da mandíbula e esfacelamento do lábio inferior com perda de substância de tecido ósseo, cutâneo e muscular, as quais lhe determinaram trezentos e cinco dias de doença, com incapacidade para o trabalho. De tais lesões resultou cicatriz viciosa da região infra-mentoniana esquerda, perda dos dentes das duas arcadas dentárias, com grave déficit da função mastigatória, déficit da sensibilidade e paladar a nível da mucosa e língua, bem como parésia do nervo facial esquerdo com ligeiro desvio da comissura labial, lesões essas que acarretam uma incapacidade parcial permanente de 25% e que desfiguram BB de forma grave e permanente, bem como lhe afectam, de maneira grave, a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos e a linguagem. Com o comportamento descrito, o arguido pretendeu matar BB com dois tiros na cabeça, tendo praticado todos os actos necessários para que isso acontecesse, o que só não sucedeu porque o arguido não acertou na cabeça mas sim no maxilar, acabando por não atingir nenhum órgão vital, facto esse totalmente estranho à vontade do arguido; agiu ainda de caso pensado, tendo esperado pela melhor oportunidade para o fazer e escolhido criteriosamente o local, que melhor se prestava aos seus fins. Finalmente, bem sabia o arguido que tal comportamento não é permitido pela lei. Dada a gravidade das lesões sofridas, o assistente foi de imediato transferido para o Hospital de Santa Luzia e deste para o Hospital de S. João no Porto, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica e feito reconstrução das hemi-mandíbulas esquerdas, com perda de substância e aplicação de uma placa metálica, após abordagem cervical, com laqueação da artéria e veia facial. Fez reconstrução do pavimento da boca, da língua e da mucosa bucal, com sutura por planos e sutura da ferida operatória. Voltou ao referido hospital em Outubro e em Novembro, onde esteve internado, tendo sido submetido a nova intervenção cirúrgica, para correcção das bridas e da exposição da placa metálica. Em Dezembro voltou ao hospital para consulta. Ainda se mantém em acompanhamento para tratamento. No momento da prática dos factos sofreu um enorme susto e ficou aterrorizado; convenceu-se que ia perder a vida e por ela receou. Sofreu dores das mais intensas e incómodos. O ofendido vai necessitar de proceder a mais tratamentos por via das sequelas sofridas. À data dos factos contava 40 anos de idade. Como sequelas das lesões sofridas passou a apresentar mutilação da língua, no terço anterior e médio esquerdo; mutilação do lábio inferior; fractura da arcada dentária, dificuldade na mastigação, na dicção, com deficiência desta. Como consequência destes actos o ofendido passou a padecer de uma incapacidade permanente geral fixável em 25% e de uma incapacidade permanente profissional fixável em 25%.

Exercia, á data dos factos, a profissão de condutor de máquinas pesadas, por conta da Câmara Municipal de Arcos de Valdevez e, devido á sequelas teve de ser mudado relativamente às actividades anteriores. Auferia de rendimento mensal a quantia de 101.300$. Durante o período de tempo de doença com incapacidade temporária absoluta para o trabalho, a entidade patronal do ofendido deduziu-lhe o valor de 13.467$, no ordenado e o montante de 550$, a título de subsídio de almoço, desde o dia 10/07/96 a 22/04/97, no valor de 121 203$ e de 114 840$, respectivamente. O ofendido, antes das agressões de que foi alvo, era um homem forte e robusto e desempenhava sem esforço todas as tarefas inerentes á sua profissão de manobrador de máquinas pesadas. Por via das sequelas sofridas o ofendido passou a ter um comportamento de pessoa triste. Em deslocações à cidade do Porto e à vila dos Arcos, para receber tratamento, e à cidade de Viana do Castelo, despendeu em transportes, quantia não inferior a cem mil escudos.

O Estado ressarciu BB na quantia de um milhão de escudos, por virtude dos prejuízos sofridos com os factos descritos.

  1. A condenação Com base nestes factos, o tribunal colectivo de Arcos de Valdevez, em 15Abr04, condenou AA, como autor material de um crime de homicídio tentado (artigos 131º, 22º, 23º n.º 1, 71º e 73º n.º 1ª) e b) do Cod. Penal), na pena que de dois anos e dez meses de prisão suspensa por quatro anos, «na condição de proceder ao pagamento da indemnização ao ofendido, no valor global de 24.000.000$, a efectuar em prestações anuais de 6.000.000$, acrescida de juros devidos»: Ficou provado que o arguido, nas circunstâncias atrás referidas, munido da arma, desferiu com esta dois tiros na face do ofendido BB, produzindo-lhe os ferimentos descritos supra. Mais se apurou que o arguido atingiu o visado, pretendendo causar-lhe a morte, o que não se verificou apenas por, casualmente, não terem sido atingidas zonas vitais do corpo do ofendido. É assim manifesto que se verificam os elementos constitutivos do crime de homicídio voluntário, na forma tentada, cometido com dolo directo (art.s 131º, 22º n.º 1 e 14º n.º 3 do Cód. Penal): o arguido desferiu os tiros, na direcção do visado, quando este se encontrava a uma distância de cerca de três metros, conhecedor da capacidade letal do meio utilizado e querendo causar a morte, até pela região do corpo a atingir, conformando-se com este resultado, o que não veio a verificar-se, não obstante a prática daqueles actos de execução, por circunstâncias alheias à vontade do arguido. O arguido agiu livre e conscientemente, com o propósito de tirar a vida a seu primo, o aqui ofendido. Verificam-se assim os elementos constitutivos do aludido crime: o arguido disparou a arma de fogo a distância relativamente curta, sendo conhecido o carácter altamente perigoso desse meio e a sua capacidade letal, maxime nas circunstâncias referidas e a região visada do corpo da vítima. Por outro lado, está presente o elemento subjectivo, pois, como se referiu, o arguido agiu da forma descrita com o propósito de tirar a vida ao ofendido, agindo assim com dolo directo (art. 14º n.º 1 do Cód. Penal), sendo certo que a morte deste só não resultou directa e necessariamente das lesões provocadas pelo disparo, por circunstâncias alheias á vontade do arguido, nomeadamente por erro na pontaria. Vem ainda o arguido acusado pela prática do tipo de ilícito invocado, mas qualificado pelas circunstâncias previstas no n.º 2, alíneas c) e g), do artigo 132º do Código Penal. Segundo dispõe o art. 132º, n.º 1, o homicídio é qualificado se a morte for causada em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente. No n.º 2 desse normativo enumeram-se circunstâncias susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade aludida no n.º 1, enumeração que, como é uniformemente reconhecido, é meramente exemplificativa. Referem-se nela indícios ou elementos que permitem revelar a censurabilidade ou perversidade do agente. Não são, por isso, elementos do tipo, mas antes elementos da culpa, não sendo, portanto, de funcionamento automático. Constituem o indício confirmável ou não de uma intensa culpa. Essencial é que a conduta, analisada no seu conjunto, deva merecer um apreciável cariz de repulsa, que o faz distinguir dos casos vulgares e deva ser objecto, à partida, de um maior juízo de censura. Vem invocada na douta acusação a circunstância prevista na al. c) do citado art. 132º: ter o agente empregado tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima. Da materialidade apurada em audiência não foi...

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