Acórdão nº 06A1988 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Setembro de 2006

Magistrado ResponsávelAFONSO CORREIA
Data da Resolução12 de Setembro de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: "AA" e esposa D. BB, residentes em Alenquer, intentaram acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra CC e esposa D. DD, pedindo a) - a condenação dos Réus a devolver aos Autores o dinheiro que ilegalmente receberam a mais, face à usura, coacção e extorsão, cuja quantia deverá ser a apurar em execução de sentença; b) - a declaração que os Autores nada devem aos Réus; c) - a anulação do negócio jurídico usurário consubstanciado na escritura pública celebrada no Cartório Notarial do Cartaxo em 06/12/94 e d) - o reconhecimento aos Autores do direito de superfície sobre a fracção autónoma designada pela letra G, correspondente ao 3.º andar direito do prédio sito no Bairro ..., na Rua ...., n...., no Carregado.

A fundar o assim pedido alegaram os AA. o que entenderam pertinente, adiante melhor examinado.

Os Réus deduziram, na contestação de fls. 81 e ss, as excepções de ilegitimidade da Ré mulher no tocante aos pedidos de a) a c) por não alegada qualquer intervenção dela nos factos que fundamentam tais pedidos, a ineptidão da petição por falta de causa de pedir, tanto no que se refere à anulação do negócio por usura como à restituição do dinheiro pago a mais e a caducidade do direito de anulação invocado; e impugnaram o mais alegado.

Replicaram os AA.

Designado dia para audiência preliminar, houve notícia do falecimento do Autor, tendo sido habilitadas como suas herdeiras a viúva D. BB e as filhas EE e FF com que prosseguiram os termos da causa.

No dia designado para audiência preliminar, foram os Autores, nos termos dos artigos 508º, n.º 1, alínea b) e 508º-A, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil convidados a concretizar a petição inicial, apresentando novo articulado corrigido, pois apenas fora alegada factualidade incipiente e insuficiente para conhecimento, ao menos, de uma situação de inexperiência ou dependência, nem factualidade que possa aferir conhecimento dessa situação pelos RR e respectivo aproveitamento pelos mesmos.

As AA apresentaram a petição de fs. 182 e ss, formulando, apenas, os pedidos acima descritos em b), c) e d).

Cumprido o contraditório, vieram os Réus apresentar (fls. 280 e ss) nova contestação, alegando as mesmas excepções da ilegitimidade da Ré mulher, a ineptidão da petição por falta de causa de pedir e a caducidade, além de impugnarem o mais articulado.

Replicaram as AA.

Na audiência preliminar a que se procedeu foi discutida a excepção da ilegitimidade (fs. 332) e mandada juntar certidão do processo-crime instaurado por factos aqui referidos.

Procedeu-se, por fim, a audiência preliminar, com frustrada tentativa de conciliação e saneador que julgou improcedentes as excepções dilatórias de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade da Ré mulher e peremptória da caducidade. E entrando no conhecimento do fundo da questão, o Ex.mo Juiz julgou a acção manifestamente improcedente e absolveu os RR do pedido por considerar que a insuficiência da alegação determina a manifesta improcedência da acção, por insuficiente causa de pedir.

Apelaram as AA, pretendendo o prosseguimento da acção com a fixação da Matéria Assente e Base Instrutória, mas a Relação de Lisboa negou-lhes razão e confirmou integralmente o decidido, depois de entender que a insuficiência de factos não integrava nenhuma das hipóteses previstas na lei processual - art. 193º do CPC - de ineptidão da petição.

Daí a revista em que as AA insistem pelo prosseguimento dos autos com a realização da audiência final pois, como se vê das respectivas conclusões: 1) - O tribunal da Relação de Lisboa não se pronunciou sobre a matéria dos art°s 3° a 7° da p.i., limitando-se somente a referir que "faltou apenas especificar os factos em que as AA. fundamentam o seu pedido"; 2) - Não considerou inepta a p. i. a que aliás também não foi considerada pelo tribunal " a quo ".

3) - Tal fundamentação parece-nos, com o devido respeito, um pouco superficial; 4) - Não se pronunciou sobre a omissão do dever de facultar às partes a discussão de facto e de direito - comando imposto pelo art° n° 508°-A n° 1 do C.P.C.

5) - A improcedência da apelação coarcta às recorrentes o seu direito de verem discutidas em julgamento todas as provas e o apuramento da verdade material dos factos, lesando-as mormente em termas económicos - situação já de si debilitada.

NORMAS INFRINGIDAS Art° 508 n° 4; art° 508°-A n° 1 b), c), e) e 2 a); art° 668° n° 1 d) todos do C.P.C.

Pelo exposto .... Deve conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o aliás douto acórdão recorrido, substituindo-o por outro que determine o prosseguimento dos autos com a realização da audiência final (art. n.º 201º última parte do C.P.C.,) porque os factos apontados influiriam no exame e decisão da causa.

Não houve resposta.

Colhidos os vistos de lei e nada obstando, cumpre decidir a questão submetida à nossa apreciação, questão que, não obstante a singeleza das conclusões e a indicação das normas ditas infringidas inculcarem simples questão processual, é, conforme pedido, a de saber se os factos alegados são bastantes para fazer prosseguir a acção até final.

Para tal decidir hemos de atentar na segunda petição, apresentada «na sequência do convite que lhes foi dirigido pelo Tribunal a fim de concretizarem factualmente alguns aspectos do articulado que ofereceram».

Dir-se-á, antes de mais, que a petição está longe de ser modelar e não é exemplo de clareza tanto na narração dos factos como nas contas apresentadas e conclusões aqui e além tiradas.

Não podemos, porém, esquecer os novos ventos a que a revisão processual de 1995/96 abriu a porta para arejar o processo mais formalista e científico oriundo do Código de 1939, transformando-o em um instrumento, ... um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo e não ... um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo(1).

Independentemente da responsabilidade de quem tem obrigação de verter nos articulados a história e as agruras dos cidadãos famintos de justiça.

A questão da (in)suficiência do alegado na petição foi assim decidida pelo Ex.mo Juiz: ... apresentaram os Autores um novo articulado, no qual concretizam todas as quantias que alegadamente terão pago os Réus, que avaliam em excesso e a título de juros.

Verifica-se, no entanto, que entenderam os Autores não ser de concretizar, como se pretendia, o teor do artigo 3º da petição inicial, no qual afirmam que "face à sua situação de extrema necessidade económica/financeira, à sua inexperiência e boa fé, dependência e estado de espírito, o falecido e a 1.ª Autora deixaram-se arrastar para essa fraude".

Ora, em nosso entender, tal atitude implica o não prosseguimento da acção, porquanto os autos não contêm a alegação dos factos indispensáveis à demonstração do direito que os Autores pretendem exercer.

Senão vejamos: Dispõe o artigo 282º, n.º 1 do Código Civil que "É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados".

O negócio usurário só existe quando se verifiquem, cumulativamente, os respectivos requisitos subjectivos (a exploração de uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem) e objectivos (benefícios excessivos ou injustificados) - neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/01/1994, Processo n.º 0076721, N.º Convencional JTRL00013813, in www.dgsi.pt e Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, Coimbra Editora, pág. 532.

Estes requisitos são integrativos da causa pedir do direito invocado pelos Autores. Assim, a invocação do direito tem de ser feita através da alegação de factos descritivos concretos.

Por um lado, tem de haver benefícios manifestamente excessivos ou injustificados, isto é, tem de haver uma desproporção entre as prestações, que, segundo todas as circunstâncias, ultrapasse os limites do que pode ter alguma justificação. O critério do dobro do valor parece ser o limiar, a partir de cuja ultrapassagem se vai averiguar a existência das demais circunstâncias objectivas e dos requisitos subjectivos da usura.

Por outro lado, devem igualmente verificar-se requisitos subjectivos, a saber: a exploração e uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter. Esta situação de necessidade não se verifica sempre que o sujeito tem uma necessidade a satisfazer, constituindo sim "uma situação de forte temor ou receio ocasionada por um perigo grave de origem natural ou proveniente de um facto humano, como, por exemplo, alguém ameaçado de perder a vida num naufrágio faz promessas a outrem para o salvar" (vide Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 278).

Ora, nada nos autos foi alegado que permita fundar conclusão que os Autores se encontrassem em tal situação de necessidade.

Também não se descortina de factualidade alegada nos autos como é que os Autores possam ser pessoas inexperientes...

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