Acórdão nº 06P475 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 22 de Março de 2006

Magistrado ResponsávelSILVA FLOR
Data da Resolução22 de Março de 2006
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: I.1. No 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, AA foi condenada pela prática de um crime de homicídio, previsto e punido pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de dez anos de prisão, e pela prática de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punido no artigo 6.º, n.º 1, da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, na pena de 4 meses de prisão. Em cúmulo jurídico, foi-lhe aplicada a pena única de 10 anos e 2 meses de prisão.

Inconformada, a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão de 18-04-2005, rejeitou o recurso por manifesta improcedência.

De novo inconformada, a arguida recorreu para este Supremo Tribunal, que, por acórdão de 16-09-2005, revogou o acórdão recorrido, determinando que o processo baixasse «à Relação de Guimarães, para aí, nos termos do artigo 421.º, n.º 1, do CPP, prosseguir seus termos, com vista, em audiência, à ampliação da matéria de facto (cfr. supra n.os 8.5 a 8.10, sobretudo quanto à motivação, remota e próxima, das decisões homicidas e suicida da arguida) e à reformulação, de harmonia com a matéria de facto ampliada, da correspondente decisão de direito.» Na Relação de Guimarães, após audiência em que foi ouvida a arguida, foi proferido novo acórdão, em 5-12-2005, que julgou improcedente o recurso.

I.2. A arguida recorreu em seguida para este Supremo Tribunal, formulando na motivação do recurso a conclusões que em seguida se transcrevem.

I - Decidiu a Veneranda Relação julgar o recurso improcedente, entendendo que o douto Acórdão recorrido "... não é passível de censura, antes de repetido encómio,...".

II - Se bem que a Recorrente mantenha o convencimento de que as instâncias erraram na apreciação das provas, o presente recurso - por força da Lei - sendo um recurso de revista, terá que visar o reexame da decisão ora proferida em matéria de direito, baseando-se precisamente na matéria dada por provada e como tal fixada definitivamente.

III - Entende a Recorrente que a matéria fixada pela Veneranda Relação como provada, por um lado é insuficiente para a decisão de direito proferida e, por outro lado, há também erro notório na apreciação da prova, sendo estes por isso os fundamentos legais do presente recurso (Art. 410º, nº 1, aln a) e c) do CPP).

IV - Com base nestes pontos de facto dados por provados, o Tribunal conclui que se verificam os requisitos legais do tipo legal do crime de homicídio simples.

V - A Recorrente tem vindo a defender desde a sua contestação que agiu e praticou o crime dominada por um sentimento e um estado de emoção e desespero que lhe perturbou a vontade e o seu livre arbítrio, tendo por isso praticado o crime de homicídio privilegiado. VI - A matéria de facto dada por provada, devidamente apreciadas e conjugada com as regras comuns da experiência, teriam necessariamente determinado uma decisão oposta à proferida ou, pelo menos, teriam gerado sérias e fundadas dúvidas na convicção do tribunal, as quais conduziriam o tribunal a uma decisão diferente, por força do princípio "in dubio pro reo".

VII - A Veneranda Relação conclui que a única matéria de facto relevante é a de que arguida passou a recear que a vítima, pelo seu comportamento, pudesse contribuir para que o relacionamento fosse publicamente entendido como amoroso (facto d)), facto este que não é apto a levar alguém a ficar num estado de emoção ou desespero que perturbe a vontade e diminua a culpa. VIII - Conclui por isso a Relação que a Recorrente - colocada entre a possível percepção pública de uma suposta relação homossexual e ter de enfrentar a censura familiar e social daí derivada - ao decidir matar a colega, fá-lo em condições altamente censuráveis. IX - Esta conclusão é totalmente descabida e contrariada pelos restantes factos provados, nomeadamente os factos "c" e "d", sendo ainda desfasada da realidade sócio-cultural e geográfica em que os factos ocorrerem e é, por isso, completamente contrariada pelas regras da experiência comum mais elementares.

X - A Relação, na esteira da 1ª instância, dá como "ponto assente que não se logrou esclarecer toda a trama", constituindo uma clara manifestação de que se formaram dúvidas ao tribunal sobre a forma como os factos ocorreram, duvidas estas que não foram superadas.

XI - Ficou por apurar, em sede de factos provados, o que terá levado a Recorrente a disparar mortalmente sobre a vítima mas afigura-se à Recorrente que a matéria dada como provada, conjugada com as regras da experiência comum e tendo em conta o enquadramento sócio-cultural e social da Recorrente, é suficiente para que, com segurança, se pudesse alcançar essa explicação.

XII - Ficou provado o que a Recorrente fez por causa dos receios de que o suposto relacionamento amoroso com a vítima viesse a público e que a Recorrente é uma pessoa inflexível quanto ao seu quadro de valores, correspondendo este ao tradicional do meio onde vive e que é pessoa preocupada com a sua imagem pública (facto d').

XIII - São estes factos provados que deveriam ter sido correctamente apreciados e ponderados no sentido de explicarem o seu estado de espírito nos dias que antecederam a tragédia e que, conjugados com as regras da experiência comum, deveriam ter levado o tribunal a considerar a hipótese de que a Recorrente foi sofrendo um enfraquecimento crescente das suas resistências, da sua vontade e do seu livre arbítrio, criando-lhe um sentimento de desespero que o assédio sexual da vítima lhe causou, ao ponto de não conseguir imaginar outra solução, outra saída para o problema.

XIV - Provou-se igualmente que, nos momentos imediatos ao tiro fatal, se desenrolou uma discussão entre a Recorrente e a vítima (facto "m") e que disparou no momento imediato em que ouviu a vítima dizer que nunca a deixaria em paz - e foi este preciso facto que lhe provocou instantaneamente a forte e incontrolável emoção que a leva a usar a arma.

XV - Mais uma vez, também aqui, tendo em conta o circunstancialismo provado, em respeito pelas regras da experiência comum, o tribunal deveria ter ponderado, pelo menos como verosímil que, na base última da decisão homicida, o seu motivo imediato e instantâneo, teria sido essa incontrolável emoção sentida pela Recorrente naquele exacto momento, causada pela reacção da BB e pela sua recusa em deixá-la em paz.

XVI - Ficou provado que a Recorrente, após ter efectuado o disparo contra a BB, "com intenção não apurada", disparou contra si própria, atingindo-se na região clavicular esquerda (facto a').

XVII - A Recorrente desde sempre afirmou que se tratou de uma tentativa de suicídio, ainda na sequência do estado de desespero em que se encontrava e, no entanto, o tribunal não atribui aquele facto provado qualquer relevância.

XVIII - Também aqui, esta matéria de facto provada, conjugada com as regras da experiência comum e com todo o circunstancialismo conhecido, não permite que o tribunal retire a conclusão que retirou de que a Recorrente agiu de forma tranquila, sem evidenciar encontrar-se numa situação conflitiva.

XIX - Não é legítimo por isso desvalorizar este facto, como fez o tribunal, o qual é prova evidente do estado de emoção violenta e de desespero em que a Recorrente se encontrava naquele momento.

XX - Finalmente, o tribunal desdenhou também por completo a prova resultante dos relatórios médicos juntos nos autos e do depoimento dos próprios médicos, que demonstram o estado depressivo em que a Recorrente vivia naqueles dias.

XXI - Por isso entende a Recorrente, em cumprimento do disposto no Art. 412º, nº 2 a) do CPP, que o enquadramento jurídico-penal feito pelo tribunal é errado e violador da Lei, designadamente dos Artigos 133º e 72º do Código Penal e ainda do principio geral de direito do "in dubio pro reo".

XXII - Efectivamente, a matéria dada por provada, conjugada com as regras da experiência comum, deveria ter levado o tribunal a decidir que estão preenchidos os requisitos legais de aplicação do tipo legal de homicídio privilegiado, previsto e punido pelo Art. 133º do CP.

XXIII - A Recorrente dispara o tiro fatal sob forte e incontrolável emoção e é levada ao crime devido a um enfraquecimento crescente das suas resistências, da sua vontade e do seu livre arbítrio, motivado pelo sentimento de desespero que o assédio da vítima lhe provocou, ao ponto de não conseguir imaginar outra solução, outra saída para o problema.

XXIV - Portanto, ao agir dominada por compreensível emoção violenta e por desespero, a Recorrente comete...

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