Acórdão nº 29/04.0TBBRSD.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 03 de Fevereiro de 2011

Magistrado ResponsávelMARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Data da Resolução03 de Fevereiro de 2011
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 1. Em 4 de Fevereiro de 2004, a Junta de Freguesia de F... instaurou uma acção contra o Município de R... pedindo que o réu fosse condenado: “1- a reconhecer que o caminho” denominado ‘Caminho das P... à R...’, situado nos limites da Freguesia de F..., “é um caminho vicinal, cuja administração compete exclusivamente à A., por estar dentro do seu domínio público; 2- a reconhecer que o muro” construído sob as ordens e direcção do réu e “o aterro depositado” na respectiva parte poente “foi por si edificado e depositado, respectivamente, sobre o caminho vicinal (…); 3- a reconhecer que, com as obras referidas no pedido 2, ocupou ilegal e abusivamente, numa área de 19 m2, terrenos do domínio público da A.” E, consequentemente, que fosse ainda condenado a “4- restituir o caminho vicinal das “P... do R... ao seu trajecto original, deixando-o livre e desocupado de qualquer construção; 5- demolir o muro e remover o aterro (…), repondo o largo do seu estado original, de molde a restituí-lo às suas ancestrais funções (…)” de “ceder mútua passagem quando nele [os munícipes de F..., ‘há mais de 20, 50 e 100 anos e já a memória dos vivos o não lembra’] transitavam com carros de bois” e de permitir pousar “carregos que transportavam às costas” (petição inicial).

O Município de R... contestou. Invocou a incompetência do tribunal em razão da matéria, por caber aos tribunais administrativos a competência para conhecer do pedido, nos termos da al.j) do nº 1 do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro; alegou tratar-se de trabalhos relativos ao abastecimento de água à povoação de F..., impugnou quase todos os factos alegados pela autora e sustentou não ter ocupado “com o dito muro” nenhum caminho cuja jurisdição lhe pertencesse.

A autora replicou. Sustentou a competência do tribunal, pois está “em apreço o domínio privado – pese embora de utilidade pública – da A.”, e ainda “o facto de saber se tal terreno é público ou privado” e contestou que o réu tenha procedido “no lugar identificado (…) a qualquer instalação de rede de abastecimento de águas e esgotos”.

No despacho saneador, a fls.59, o tribunal declarou-se competente, por aplicação dos artigos 51º, nº 1, f) e 4º, nº 1, e) e f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do artigo 66º do Código de Processo Civil; supõe-se que o despacho se esteja a referir ao anterior Estatuto, ou seja, ao Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, já revogado quando a acção foi proposta.

O réu interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto; mas o recurso veio a ser julgado deserto, por falta de alegações (a fls. 101).

Pela sentença de fls. 414, a acção foi julgada improcedente. Em síntese, a sentença entendeu não ter sido feita prova, sucessivamente, nem da natureza pública do caminho, nem de que se tratasse de caminho vicinal, sujeito a administração da Junta de Freguesia, nem de que se tivesse verificado “a privação da utilização do caminho”, apesar da demonstração de “que o largo do caminho foi destruído e o caminho estreitado”.

A sentença foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 143, que julgou a acção totalmente procedente, “com a limitação referente à área ocupada (…), a qual se fixa em cerca de 19 m2”, condenando o réu em todos os pedidos.

A Relação deu como assente tratar-se de um caminho público sob jurisdição da freguesia, que com a destruição do largo (que se integrava no caminho) “o R. praticou um acto impeditivo da utilização do caminho tal como foi feita desde tempos imemoriais”, privando “os habitantes da freguesia do direito” de assim o usar, e que “o facto de a ocupação do largo ter surgido na sequência de obras da competência do Município (…) é, para o caso, irrelevante e não legitima o acto”.

O réu foi, assim, condenado: “1. A reconhecer que o caminho identificado em 1) da p.i. é um caminho vicinal, cuja administração compete exclusivamente à A., por estar dentro do seu domínio público; 2. A reconhecer que o muro a que alude o artigo 2° e seguintes e o aterro depositado na obra a que se refere o artigo 18° (ambos da p.i.) foi por si edificado e depositado sobre o caminho vicinal; 3. A reconhecer que com as obras referidas no pedido 2 ocupou ilegal e abusivamente, numa área de cerca de 19 metros quadrados, terrenos do domínio público da A.; 4. A restituir o caminho vicinal ao seu trajecto inicial, deixando-o livre e desocupado de qualquer construção, 5. A demolir o muro e remover o aterro referido em 2. repondo o largo no seu estado original.” 2. O réu recorreu para o Supremo Tribunal da Justiça. O recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito devolutivo.

Nas alegações que apresentou, o recorrente formulou as seguintes conclusões: “1.ª - A compatibilização do princípio da livre apreciação da prova deferido ao tribunal da 1ª instância pelo artigo 655.° do CPC, com o princípio do duplo grau de jurisdição do julgamento da matéria de facto, consagrado no artigo 712º do CPC, impõe, para que possa ser alterada a resposta à matéria de facto pela 2ª instância, que ocorra uma flagrante desconformidade entre as provas produzidas e a decisão não servindo para tal alteração uma convicção diferente daquilo que as testemunhas disseram.

  1. - O que impõe ou determina que o Tribunal de 2.ª Instância fundamente a sua decisão de alteração, com indicação precisa, do erro grosseiro cometido no julgamento da matéria de facto pelo Tribunal de 1ª Instância e não com simples convicção diferente acerca daquilo que as testemunhas disseram.

  2. - Verifica-se, pelo Acórdão recorrido, que o Tribunal de 2.ª Instância, para além de não indicar qual a desconformidade e o erro grosseiro cometido pela 1.ª Instância, apenas altera a respostas aos quesitos 7.º e 1 5.º da Base Instrutória, por ter urna convicção diferente daquilo que as testemunhas disseram.

  3. Foi, assim, violado pelo Acórdão recorrido o princípio da livre apreciação da prova e do duplo grau de jurisdição do julgamento da matéria de facto consagrados nos artigos 655.º e 712.° ambos do CPC, ao alterar as respostas aos quesitos 7.º e 15.° da Base Instrutória por não se verificarem os pressupostos para tal alteração.

  4. - Os interesses que a Pessoa Colectiva Município leva a cabo no exercício das suas atribuições e da competência dos seus órgãos, como seja o abastecimento de água potável às populações e o saneamento básico, são superiores e sobrepõem-se aos interesses que a pessoa colectiva freguesia prossegue no [sic] 5ª [sic] - O Tribunal da 2.a Instância, ao alterar o julgamento do quesito 15º de ‘não provado’ para ‘provado apenas que ampliou o prédio rústico, propriedade de HH, que a sul confina com a obra que realizou’, com recurso a prova testemunhal, fez incorrecta aplicação da lei e do direito e violou os artigos 362º, 363º, nº 2 e 359º do CC, já que ‘ampliar prédio rústico pertencente a HH’ é uma conclusão de direito e a tratar-se de um facto só por documentos (certidão do registo predial donde conste como do titular inscrito aquele HH, presumindo-se ser ele o titular do direito) é que podia ser provado. 6.ª – Os interesses que a Pessoa Colectiva Município leva a cabo no exercício das suas atribuições e da competência dos seus órgãos, como seja o abastecimento de água potável às populações e o saneamento básico, são superiores e sobrepõem-se aos interesses que a pessoa colectiva Freguesia prossegue no exercício da suas atribuições, como seja a defesa do seu domínio público rodoviário, razão pela qual a lei não permite que esta impeça aquele de utilize seu domínio público rodoviário para no seu subsolo colocar as condutas de água e saneamento e executar as respectivas obras.

  5. O Douto Acórdão recorrido ao condenar o Município de R... a reconhecer que ocupou ilegal e abusivamente 19 m2 que correspondiam a um penedo existente no interior do caminho que servia para as pessoas nele pousarem os carregos que transportavam às "costas" e ao condená-lo a restituir o mesmo ao seu estado inicial, deixando livre e desocupado de qualquer construção, obrigando-o, em sede de execução de sentença, a proceder à remoção de condutas de água potável e saneamento e à colocação do penedo no seu estado anterior, está, na prática, a negar aos habitantes da povoação de F... o direito de acesso a água potável e saneamento básico e a permitir que a população utilizadora do caminho continue a cometer o flagelo no seu corpo ao...

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