Acórdão nº 40/10.1YFLSB de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 17 de Novembro de 2010

Magistrado ResponsávelMAIA COSTA
Data da Resolução17 de Novembro de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA Sumário : Em processo por crime de desobediência qualificada decorrente de violação de providência cautelar, previsto e punido pelos artigos 391º do Código de Processo Civil e 348º, nº 2, do Código Penal, o requerente da providência tem legitimidade para se constituir assistente.

Decisão Texto Integral: Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça: I. RELATÓRIO AA, Sociedade de Gestão e Exploração Turística, SA, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do art. 437º do Código de Processo Penal (CPP), do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.11.2009, proferido no proc. nº 867/08, por se encontrar, em seu entender, em oposição com o acórdão proferido pela mesma Relação em 15.1.2008, no proc. n° 2345/07.

Por acórdão proferido nestes autos em 15.4.2010, foi decidido verificarem-se todos os pressupostos de admissibilidade do recurso, nomeadamente a oposição de julgados sobre a mesma questão de direito, que foi definida da seguinte forma: em processo por crime de desobediência, havendo interesse, por parte de um particular, no cumprimento da ordem violada, poderá ele constituir-se assistente nos autos? Foram as partes notificadas para alegar, nos termos do art. 442º do CPP.

Alegaram a recorrente e o Ministério Público (MP).

A recorrente concluiu assim as suas alegações: 1. Tanto no Acórdão recorrido como no Acórdão fundamento se decide a questão de saber se um particular também ofendido por um crime de desobediência, p. p. pelo artigo 348.° do CP, tem legitimidade para, relativamente a esse ilícito, se constituir assistente em processo-crime nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do número 1 do artigo 68.° do CP.

  1. Porém, no domínio da mesma legislação, relativamente à mesma questão de direito, assentam em soluções diametralmente opostas: enquanto o Acórdão recorrido adoptou um conceito restrito de ofendido e uma concepção estritamente monolítica e formal de bem jurídico, o Acórdão-fundamento adoptou um conceito amplo de ofendido e, bem assim, uma concepção poliédrica de bem jurídico tutelado pela norma incriminadora.

  2. A aferição da legitimidade da ora Recorrente para se constituir assistente pressupõe, em primeiro lugar, apurar se na previsão da alínea a) do número 1 do artigo 68.° do CPP apenas se integra o titular dos bens exclusivamente protegidos pela norma ou se, ao invés, integra também o titular de interesse tutelado de forma particular pela norma incriminadora, e, num segundo momento, a elucidação, em concreto e perante a norma incriminadora em causa, do(s) bem(ns) jurídico(s) por ela protegido(s) e da respectiva titularidade.

  3. Em relação à primeira questão, não obstante originariamente a doutrina maioritária, na qual se incluem CAVALEIRO DE FERREIRA e GERMANO MARQUES DA SILVA, entender que ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto imediato e directo da tutela jurídica da concreta norma incriminadora, tal entendimento tem sido questionado e refutado pela doutrina mais recente.

  4. A este respeito, acompanhando AUGUSTO SILVA DIAS, a tese restritiva do conceito de ofendido não é hoje aceitável à luz dos estudos vitimológicos, da dogmática do bem jurídico e do modelo processual penal vigente, estando desfasada dos progressos científicos e da experiência normativa dos dias de hoje.

  5. De facto, a título sumário, tal tese não se coaduna com o surgimento de uma nova forma de titularidade dos bens jurídicos, caracterizada pela intersubjectividade e pela indivisibilidade, a que corresponde a noção de interesse difuso, nem tão pouco com o alargamento do estatuto do assistente consagrado pelo próprio ordenamento jurídico, a pessoas que não são, de todo, titulares dos interesses imediatamente protegidos pelas normas incriminadoras ou, por último, com um sistema processual que consagra uma fase de instrução, não obrigatória, que visa o controlo da actuação do Ministério Público durante o inquérito, reduzindo, aliás como sucedeu no presente caso, drasticamente as possibilidades do dito controlo.

  6. Como reconheceu o Tribunal Constitucional no acórdão número 76/02, de 26 de Fevereiro, crimes há, como o de falsificação, o de denegação de justiça e, acrescente-se, o de descaminho de objecto colocado sob o poder público, que "visam indirectamente proteger também interesses de particulares", isto é, cuja área de tutela abrange concomitantemente (e não reflexamente, ao contrário do que sustenta a douta decisão recorrida) um bem jurídico materializado num portador individual, que por via da adopção de um conceito restrito de ofendido, veria injustamente negada a faculdade de se constituir assistente.

  7. A este propósito importa trazer à colação o douto Acórdão do STJ n.° 1/2003, que fixou jurisprudência no sentido de admitir a constituição de assistente em processo por crime de falsificação, e o Acórdão do STJ n.° 8/2006, que fixou jurisprudência no sentido de admitir a constituição de assistente em processo por crime de denúncia caluniosa, onde se diz que «o vocábulo "especialmente" usado pela Lei, significa, pois, de modo especial, num sentido de "particular" como se referiu, e não exclusivo» e, consequentemente, «caso a incriminação proteja uma pluralidade de bens jurídicos de nada releva na matéria equacionar a importância relativa de cada um desses bens, pois condição necessária e suficiente à constituição do ofendido como assistente é que a ofensa daquele ponha em causa um dos bens jurídicos que a incriminação pretende salvaguardar».

  8. Por outro lado, no que respeita à concepção do bem jurídico protegido pelas normas incriminadoras, não obstante originariamente o acento tónico residir na limitação do ofendido ao próprio titular do interesse imediatamente protegido pela norma incriminadora, acompanhada de uma interpretação cada vez mais restritiva ou simplificadora do "bem jurídico", tal tese foi recentemente superada, com a consequente admissão de uma estrutura poliédrica do bem jurídico, na qual podem caber, ao lado de bens jurídicos colectivos ou públicos - e ainda que em posição subordinada -, bens jurídicos pessoais de particulares, o que permitirá a respectiva constituição como assistente.

  9. Com efeito, conforme ensinam Figueiredo Dias e Anabela Rodrigues, o conceito de ofendido não pode ser deduzido pela distinção tradicional entre incriminação que protege um bem jurídico individual ou que protege um bem jurídico supra-individual, mas deve derivar da susceptibilidade de o bem jurídico poder ou não ser corporizado num concreto portador individual.

  10. Mais, o facto de o bem jurídico protegido revestir natureza pública não exclui necessariamente a legitimidade de constituição como assistente, pois, como destacam Teresa Pizarro Beleza e Frederico Lacerda da Costa Pinto, o que interessa é saber se o dano no bem jurídico público tem igualmente repercussões numa esfera jurídica individual e se, dessa forma, a norma incriminadora visa tutelar, ainda que mediatamente, bens jurídicos pessoais.

  11. Esta recente tendência tem sido igualmente seguida pela jurisprudência, sendo de destacar os já mencionados Acórdãos do STJ n.° 1/2003 e n.° 8/2006, onde se pode ler que: «a circunstância de ser aí protegido um interesse de ordem pública não afastou, sem mais, a possibilidade de, ao mesmo tempo, ser também imediatamente protegido um interesse susceptível de ser corporizado num concreto portador, aquele cujo prejuízo o agente visava, assim se afirmando a legitimidade material do ofendido para se constituir assistente», entendimento corroborado pelo STJ no Acórdão proferido em 12 de Julho de 2005, em relação ao crime de falsidade de depoimento.

  12. Especificamente em matéria de desobediência, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão proferido em 20 de Novembro de 2007, que "se existe esse interesse do Estado de fazer respeitar uma decisão judicial proferida num processo especial (providência cautelar), também existe o interesse particular de quem recorre a juízo através dessa providência, que pressupõe violação de um direito que carece de urgente reparação, como forma de evitar o “periculum in mora", concluindo que "um particular, ofendido pelo crime de desobediência, p.p. pelo art. 348.° do Código Penal, por referência ao art. 391.° do Código de Processo Civil - crime decorrente do não acatamento de uma providência cautelar que, a requerimento seu, foi judicialmente decretada -, tem legitimidade para se constituir assistente".

  13. Estes desenvolvimentos doutrinais e jurisprudenciais acarretaram, ultimamente, uma maior abertura à admissibilidade da constituição de assistente em processo penal, que passou a incluir crimes em que marcam a sua presença - e até em posição primacial - interesses de carácter público ou colectivo, reconhecendo-se que, ao lado do interesse público subjacente à infracção, a norma incriminadora protege o particular titular de um interesse jurídico pessoal.

  14. Conclusões estas que se mostram material e teleologicamente fundadas, uma vez que são congruentes com as finalidades vitimológicas, de pacificação social e de contribuição para a descoberta da verdade e realização da justiça que explicam e legitimam o instituto do assistente em processo penal.

  15. Admitidos, em tese, o conceito amplo de ofendida e a estrutura poliédrica do bem jurídico protegido, impõe-se interpretar a concreta norma incriminadora, por forma a determinar os interesses especialmente protegidos e a respectiva titularidade, pois "poderá um só tipo legal proteger «especialmente, mais do que um bem jurídico, questão a dilucidar, perante cada tipo e cada acção dele violadora" (cfr. Acórdão do STJ n.° 1/2003).

  16. O não acatamento de decisão respeitante a providência cautelar constitui, nos termos expressamente previstos no artigo 391.° do CPC, um crime de desobediência qualificada p.p. no artigo 348.° do CP.

  17. Sem embargo de a norma...

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