Acórdão nº 98B377 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 30 de Março de 2000

Magistrado ResponsávelPEREIRA DA GRAÇA
Data da Resolução30 de Março de 2000
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: A, propôs contra B, acção ordinária de investigação de paternidade. Alegou, em suma: Tendo nascido a 7 de Março de 1970 (iniciando-se a sua maioridade a 8 de Março de 1988), o investigado sempre confessou ser a Autora sua filha, tratando-a como tal. Pediu, portanto, que se declare ser filha de C, falecido a 5 de Dezembro de 1994. Contestou a Ré, alegando, além do mais, a excepção de caducidade uma vez que, à data em que a acção entrou em juízo, a Autora já tinha completado os vinte anos de idade; e que não beneficia do regime especial do artigo 1817º, n.º 4, do Código Civil por os factos que a Autora adrede alega não serem verdadeiros. Pediu, consequentemente, a improcedência da acção. Relegou-se para decisão final a questão da caducidade. Os autos prosseguiram os seus termos até à audiência de discussão e julgamento e sequente sentença em que se julgou a acção procedente. Apelou a Ré, sem êxito, pois o Tribunal da relação de Lisboa manteve o decidido, embora por razões algo diferentes. Com efeito, este Pretório confirmou a sentença, mas relativamente àquela questão de caducidade, não aceitou a conclusão da sentença, a nível da matéria de facto, de que o investigado sempre tratou a Autora como filha e de que "esse tratamento só terminou com a sua morte". Não obstante, segundo o mesmo Tribunal, porque, o que resultou de matéria de facto saída do julgamento do Tribunal Colectivo, foi a incerteza acerca da época em que os actos de tratamento foram praticados, se eles perduraram ou não até à morte do investigado, e porque o ónus da prova dos factos capazes de suportar a excepção de caducidade recai sobre o Réu, a dúvida resolveu-se contra a Ré, pelo que, segundo o mesmo Tribunal, improcedeu a excepção. Pediu, então, a Ré a presente revista, alegando, em suma: Foram violados os artigos 1817º, n.º 4, 1873º, 333º, n.º 1, e 342º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil, bem como os 439º, n.º 3, 516º e 668º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil. Em contra-alegações a Autora defende a denegação da revista. Corridos os vistos, cumpre decidir. Objecto do recurso: Caducidade da acção de investigação de paternidade. Situação emergente dos autos (com relevância para o objecto do recurso): a) Organizada a especificação e o questionário, formularam-se os seguintes quesitos que agora mantêm interesse: 6º - O falecido C sempre confessou ser a Autora sua filha? 7º - Passando a tratar a Autora como filha até à sua morte? 8º - Até ao seu falecimento, o C sempre tratou a Autora como filha com ela se encontrando todas as semanas, tomando refeições juntos, indo ao cinema, oferecendo-lhe chocolates e prendas como qualquer pai? b) Realizada a audiência de julgamento, respondeu-se ao questionário em termos de resultar provada a paternidade biológica; c) Quanto aos quesitos acima transcritos, as respostas foram as seguintes: 6º - Provado que o falecido C pedia à testemunha D para "ir chamar a sua filha", referindo-se à Autora. 7º - Provado o que consta das respostas aos quesitos 6º e 8º. 8º - Provado que, por vezes, o investigado C ia a casa da testemunha E e perguntava "pela filha" para irem passear e quando a Autora aí se encontrava acabavam por sair juntos. d) A acção foi proposta em 14 de Novembro de 1995; e) O Investigado faleceu em 5 de Dezembro de 1994; f) A Investigante nasceu em 7 de Março de 1970. Consequências: 1 - A única questão a resolver é, pois, a da tempestividade da acção, já que a paternidade biológica nem sequer é objecto de contencioso, por ter ficado demonstrada. 2 - Dispõe o artigo 1817º do Código Civil, aplicável ao caso por força do disposto no artigo 1873º do mesmo Código: 1. A acção de investigação de maternidade (ou paternidade) só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dois primeiros anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. 2. Se o investigante for tratado como filho pela pretensa mãe (ou pelo pretenso pai, como é o caso), a acção pode ser proposta dentro do prazo de um ano, a contar da data em que cessar aquele tratamento. Provou-se, com univocidade, que o Investigado tratava a Investigante como filha. Só não se sabe se e quando esse tratamento cessou. 3 - Várias hipóteses se podem colocar na realidade quotidiana. Assim, o tratamento filial: a) Mantém-se até à data da morte do investigado; b) Cessa mais de um ano antes daquele decesso; c) Cessa no decurso do ano anterior; d) A cessação é voluntária ou involuntária. - No primeiro caso, não há qualquer problema. A acção deve ser proposta no prazo de um ano após o falecimento. - No segundo caso, em princípio, resulta claro que a acção já caducou. - No terceiro, a acção pode ser proposta dentro do ano posterior à cessação. - No quarto, a tempestividade da acção é defensável se o ónus da prova couber ao réu. - No quinto caso, a (in)voluntariedade, isto é, o desejo expresso e desejado de por fim à posse de estado ou a cessação resultante de demência ou de outra circunstância privativa da faculdade de querer, repercute-se em situações como a do referido segundo caso: se a cessação foi desejada, há caducidade; se o não foi, então, é como se o tratamento se mantivesse. 4 - Na segunda hipótese - cessação há mais de um ano - entendia-se que havia caducidade, não se pondo, portanto, sequer a questão do ónus da prova. Tal questão já surgia, porém, em casos como a hipótese quatro - se e quando houve cessação - que é o problema vertente. Nesta situação e noutras semelhantes, era de considerar, perante a redacção, então vigente, do citado n.º 4 do citado artigo 1817º, que o direito do autor assentava no tratamento de filho e que era facto impeditivo ou extintivo desse direito o decurso do prazo de propositura da acção (1). nestas circunstâncias, fácil era, pois, e sem tergiversações dogmáticas, atribuir o ónus da prova (2). É que o legislador quis dar tratamento específico a situações como as dos autos e que cabem no âmbito do referido n.º 4, escapando, pois, ao princípio ínsito no n.º 1 do referido artigo 1817º. Na verdade, este princípio ou esquema temporal é expressamente estendido ao n.º 2, com significativa abstenção quanto aos outros números, nomeadamente ao 4º. Tal interpretação terá a virtualidade de se integrar na tendência inelutável de acolher o reconhecimento da paternidade (ou da maternidade) biologicamente reconhecida, como é o caso em análise. "Pode mesmo dizer-se que o direito ao conhecimento da ascendência biologicamente verdadeira ganhou uma relevância tal que nos permite considerá-lo como um aspecto dos direitos fundamentais da pessoa - designadamente, como uma faceta do direito à integridade pessoal e à identidade (artigos 25º e 26º da Constituição da República) que tutelam a "localização social" do indivíduo." (3) Tal princípio...

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