Acórdão nº 03B2668 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 22 de Setembro de 2005
Magistrado Responsável | LUCAS COELHO |
Data da Resolução | 22 de Setembro de 2005 |
Emissor | Supremo Tribunal de Justiça (Portugal) |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I 1. "A", residente em Carcavelos, instaurou na actual 4.ª Vara Cível da comarca de Lisboa, em 14 de Novembro de 1994, contra a sociedade B, Lda., com sede em Lisboa, empresária da exploração da Casa de Saúde «Clínica de S. Lucas», sita nesta cidade, acção ordinária tendente a fazer valer a responsabilidade civil da ré por omissão culposa dos deveres de vigilância, de cuidados médicos e assistenciais, e de zelo pela segurança dos doentes internados, tal como a autora no caso litigioso.
Alega que foi ali operada em 29 de Novembro de 1991, tendo sido instalada num quarto, onde depois ficou internada em recuperação pós-cirúrgica até 2 de Dezembro, pagando de internamento, assistência e medicamentos à ré a quantia de 117.477$00.
Cerca das 3 horas da madrugada de 1 para 2 desse mês foi insultada e agredida violentamente na cabeça e por todo o corpo por C, um doente alcoólico também internado na clínica em pós-operatório, no momento descompensado da medicação adequada e por isso sob o síndroma de abstinência alcoólica, o qual irrompendo pelo seu quarto aos berros perpetrou a agressão aludida valendo-se inclusivamente do suporte em ferro de pendurar o saco colector da urina, o que lhe causou traumatismo craniano, a fez jorrar sangue e quase deixar de ver, assim como outras lesões em diversas partes do corpo.
E isto sem que ninguém da Clínica o impedisse, ou acorresse sequer aos repetidos gritos de socorro da demandante, ou lhe prestasse a assistência de que carecia pelo facto de o sangue lhe jorrar abundantemente da cabeça.
Apesar da gritaria que se ouvia em toda a Clínica, a autora não foi socorrida pela ré, à qual estava entregue para ser tratada, acompanhada e vigiada, pois não se encontrava ali nenhum médico de serviço, nem qualquer encarregado pela segurança dos doentes. O gerente responsável pela clínica apenas apareceu às 9,30 da manhã, 6,30 horas após a ocorrência.
A ré omitiu assim culposamente os seus deveres de vigilância nos termos dos artigos 486.º e 491.º do Código Civil, relativamente ao doente agressor e à autora, de cuidados médicos e assistenciais e de zelar e providenciar pela segurança da autora, nada tendo feito para evitar a bárbara agressão que a demandante enfrentou sozinha, em estado de grande debilidade.
A agressão descrita causou-lhe em resumo prejuízos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo danos futuros resultantes de uma incapacidade laboral permanente de 30%, imputáveis à omissão dos aludidos deveres da ré.
Pede a sua condenação na indemnização de 12.459.415$00 por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida dos juros legais a contar da citação, com actualização segundo a inflação, além da indemnização equitativa dos danos patrimoniais futuros, relativos a 16 anos ainda de vida activa, que calcula em 28.000.000$00, acrescendo em cada ano a percentagem de actualização do salário mínimo nacional.
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A ré chamou à autoria o implicado C tendo este e aquela apresentado contestações. O chamado faleceu, aliás, na pendência da causa, havendo os sucessores sido oportunamente habilitados em seu lugar.
E prosseguindo o processo os trâmites legais, veio a ser proferida sentença final, em 5 de Maio de 2000, que julgou a acção improcedente com a absolvição da ré.
Apelou, todavia a autora com sucesso, tendo a Relação de Lisboa revogado a sentença, com voto de vencido do primitivo relator em sentido oposto, condenando a ré a solver à demandante as seguintes quantias; a) o valor em euros de 200.000$00 (997,60 €), a título de danos patrimoniais; b) o valor em euros de 10.000.000$00 (49.879,79 €, por danos não patrimoniais; c) o valor em euros correspondente a 2.000.000$00 (9.975,96 €), concernente a danos patrimoniais e não patrimoniais futuros; d) os juros de mora legais vencidos e vincendos sobre as quantias indicadas, a contar da citação, aplicando-se o valor em escudos para cálculo dos juros devidos até 31 de Dezembro de 2001.
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Do acórdão neste sentido proferido, em 28 de Janeiro de 2003, traz a demandada a este Supremo Tribunal a presente revista, formulando na alegação respectiva 75 conclusões e protestando juntar pareceres (1).
Todavia, as primeiras 14 conclusões, ou têm carácter introdutório ou pretendem sumariar a fundamentação do acórdão recorrido, sem colocarem verdadeiramente qualquer questão que cumpra decidir.
As demais conclusões 15.ª a 75.ª podem resumir-se topicamente nos enunciados seguintes, conducentes, na solução que daí transparece, à exclusão da responsabilidade civil da ré recorrente: 3.1. Ilicitude das presunções judiciais, em violação nomeadamente do artigo 712.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, mediante as quais a Relação extraiu os três factos em que o acórdão recorrido assenta toda a sua fundamentação: o alcoolismo do chamado C; a notoriedade desse alcoolismo; a notoriedade da demência do mesmo (conclusões 15.ª/27.ª); 3.2. Os contratos celebrados pela ré com o C, por um lado, e com a autora, por outro, têm apenas por objecto, em harmonia, aliás, com a sua actividade social, o «tratamento e assistência clínica operatória, internamento de doentes, fornecimento de refeições dos mesmos e produtos dietéticos» (conclusões 28.ª/32.ª), a tanto se restringindo o conteúdo regulativo do contrato entre autora e ré (conclusão 45.ª); 3.3. O agressor chamado não se encontrava em estado de incapacidade acidental na noite de 1 para 2 de Dezembro de 1991, incapacidade que só se provou durante a agressão e não antes, sendo, pois, a agressão imprevisível para a recorrente (conclusões 33.ª/34.ª); 3.4. O conteúdo do contrato celebrado entre a recorrente e o chamado - e o mesmo diz a recorrente quanto ao contrato com a autora (conclusão 68.ª) - compreende apenas os aspectos indicados supra, 3.2., e qualquer dever de protecção deve apenas ser entendido no âmbito respectivo; sendo certo que a ré cumpriu essas regras do contrato, assegurando um internamento seguro à prova dos riscos conexamente previsíveis; e o conhecimento da incapacidade por parte do obrigado à vigilância, para efeitos do artigo 491.º do Código Civil, é facto constitutivo do direito da autora lesada, cujo ónus probatório não cumpriu (conclusões 35.ª/44.ª); 3.5. A responsabilidade fundada no artigo 491.º do Código Civil não é de natureza contratual, mas delitual, com a consequente exclusão da presunção de culpa delineada no artigo 799.º do mesmo corpo legislativo (conclusões 45.ª/50.ª); 3.6. No tocante aos danos e às respectivas parcelas ressarcitórias, verificam-se vícios tais como: a falta de nexo causal quanto aos descritos nos pontos de facto do acórdão recorrido n.os 33/35, 37, 40/42, 44/47, 49, 56/57, 58/59, 65/67; falta de fundamentação do critério de equidade na fixação da indemnização por danos patrimoniais, a qual não deve em todo o caso ser superior a 100.000$00; falta de fundamentação e errada aplicação dos critérios da indemnização dos danos não patrimoniais, porquanto se a culpa da recorrente é presumida, menor a censurabilidade, e a prática jurisprudencial orienta-se pela ordem de um terço do valor fixado, o qual não deve, pois, exceder 3.000.000$00 - além da eventual inadmissibilidade da indemnização dos danos morais no âmbito da responsabilidade contratual; falta de fundamentação da previsibilidade dos danos futuros, cujo ressarcimento não deve, aliás, ultrapassar 500.000$00 (conclusões 52.ª/59.ª (2) ; 3.7. Os juros sobre os danos futuros só devem ser contados a partir do acórdão que os determinou, e sobre os danos morais a partir da sentença (conclusões 60.ª/61.ª); 3.8. Subsidiariamente, deve a matéria de facto ser ampliada, ao abrigo do artigo 729.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (conclusões 73.ª/75.ª (3) .
A autora contra-alega extensamente, pronunciando-se pela confirmação integral do acórdão sub iudicio.
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Resta no presente intróito consignar que o objecto da revista, considerando a respectiva alegação, à luz da fundamentação da decisão em recurso, compreende fundamentalmente as súmulas das conclusões alegatórias que vêm de se enunciar, implicando a abordagem dos poderes da Relação em matéria de facto, a estruturação da acção como fundada em factos integradores de responsabilidade contratual e extracontratual na perspectiva da sorte do pedido de indemnização, e a fundamentação dos danos ressarcíveis.
II A Relação considerou assente a matéria de facto dada como provada na 1.ª instância - sem esquecer o tema das presunções mencionado supra, II, 3.1., adiante abordado -, para a qual, não impugnada e devendo aqui manter-se inalterada, desde já se remete nos termos do n.º 6 do artigo 713.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo de alusões pertinentes.
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A partir dessa factualidade, considerando o direito aplicável, julgou a 2.ª instância fundamentalmente procedentes as conclusões de apelação da autora, revogando a sentença da 4.ª Vara Cível de Lisboa e condenando a ré a ressarci-la dos danos sofridos, nos termos introdutoriamente referenciados.
Para bem se ajuizar acerca da decisão, é mister recortar do acórdão, em poucas palavras, a fundamentação seguinte.
1.1. O mérito da pretensão deduzida pela autora foi essencialmente apreciado com base na responsabilidade contratual da ré.
Mas os ilustres Desembargadores da Relação de Lisboa não se dispensaram de perquirir se o C se encontrava em estado de incapacidade natural para efeitos do artigo 491.º do Código Civil.
Neste sentido conferiram particular relevo aos seguintes factos dados como provados.
«À data da agressão C estava internado na Clínica de S. Lucas em convalescença pós-operatória, devido a intervenção cirúrgica, com anestesia, à próstata, hidrocelo e hérnia, a que tinha sido submetido na Clínica no dia 30 de Novembro de 19991 [alínea J) da especificação; ponto de facto 10 da sentença].
«Na sequência da operação C encontrava-se em situação de convalescença, a soro e entubado [alínea L); ponto 11].
«Aquando da agressão não tinha sido ministrada na ré a C a medicação adequada para evitar...
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