Acórdão nº 03P1671 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 12 de Junho de 2003

Magistrado ResponsávelCARMONA DA MOTA
Data da Resolução12 de Junho de 2003
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: Arguido/recorrente: P (1) Assistentes/recorridos: B e C 1. OS FACTOS Na noite de 23 para 24Jun00, por volta da meia noite, A encontrou-se com os amigos B' e C' e combinaram entre si recolher vasos de plantas de várias residências para os colocarem no muro do adro da igreja da freguesia de Cesar, Oliveira de Azeméis, onde residiam, seguindo uma prática tradicional da noite de S. João. Por serem muito conhecidos em Cesar e para não comprometerem o dono do veículo, que ignorava o que iam fazer, decidiram deslocar-se até à freguesia vizinha de Romariz (Feira), deslocando-se, para o efeito, no automóvel ligeiro de mercadorias ... , OG-..., que D lhes emprestara. Já em Romariz, após carregarem para o veículo vários vasos, o que fizeram em locais diversos, avistaram uma vivenda na variante de Romariz, com o n.º 48, pertencente a M, filha do arguido, na qual havia, junto ao portão, 3 vasos em cimento. Recolheram então dois desses vasos e, quando se preparavam para recolher o terceiro, aperceberam-se de que um veículo automóvel QJ-..., ao passar por eles, abrandara a velocidade e fazia marcha atrás em sua direcção, pelo que, de imediato, fugiram do local, continuando a recolha de vasos noutras residências. Entretanto, por volta da 01:00, encontraram-se os três em Cesar com outros amigos, ou seja, com E, F, G, H, I e J, que se juntaram ao grupo e decidiram, entre todos, continuar aquela actividade. Enquanto isso, o condutor do automóvel ... 205, QJ-..., L, decidira alertar os proprietários da vivenda, seus conhecidos, para o sucedido, pelo que parou e tocou à campainha. Como não encontrasse ninguém e por saber que os mesmos eram familiares do arguido, comerciante local, dirigiu-se até à sua residência, a quem forneceu a matrícula e características do veículo que observara. Daí que o arguido, admitindo a possibilidade de o grupo ali voltar para recolher o 3.º vaso, logo decidiu, para o impedir, deslocar-se até às proximidades da residência da filha. Na sequência do assim decidido, o arguido, por volta da 01:30, saiu da sua casa munido de uma das suas armas de caça, de marca ... ..., e, transportando-se num ciclomotor, deslocou-se àquela residência. Ao passar nas imediações do cruzamento da variante com a R. Padre Manuel dos Santos, parou e esteve a falar com N e O, transmitindo a este "que estava à espera de uns indivíduos que tinham furtado uns vasos à filha, os quais estariam por conta dele" e mostrando-lhe a arma caçadeira que levava junto ao assento do ciclomotor e uma matrícula escrita na palma da mão. Logo de seguida, o arguido dirigiu-se até um terreno situado num nível superior ao da vivenda da filha, mas do outro lado da estrada e a cerca de 20/30 metros, e ali se escondeu, aguardando a vinda do veículo em que se fazia transportar o grupo de jovens. Previamente, o arguido colocara na caçadeira um cartucho com bala própria para a caça ao javali. Por volta das 02:00, quando o grupo se dirigia já de regresso à freguesia de Cesar para depositar os vasos no adro da igreja, passou novamente naquela residência e decidiu levar o terceiro vaso. Nessa altura, A', que o conduzia, parou o veículo ao lado do vaso em frente à vivenda, dele tendo saído C' e J, para o carregarem. No momento em que já o tinham colocado no patamar da porta lateral de carga e se preparavam para entrar no veículo, o arguido, do local onde se encontrava, disparou um tiro de caçadeira em direcção à carrinha, pretendendo essencialmente com esta sua actuação impedir o carregamento do vaso. Na sequência, o projéctil lançado atravessou o painel esquerdo do veículo, perfurando-o a uma altura de cerca de um metro do chão e atingiu, na região inguinal esquerda, J, que se encontrava do lado oposto da carrinha e que de imediato caiu, no exterior, inanimado. Em consequência do disparo e do projéctil que o atingiu, J sofreu ruptura da artéria ilíaca primitiva esquerda e de vasos mesentéricos, que lhe provocou hemorragia interna aguda e, de imediato, a morte. No dia seguinte, ao saber que se comentava na região que era o arguido o autor dos factos, L dirigiu-se à sua residência, dando-lhe conta disso e disponibilizando-se para prestar quaisquer esclarecimentos relativamente à ocorrência. O arguido, porém, retorquiu-lhe que "se calasse muito caladinho e não comentasse com ninguém o sucedido". Mas, sabendo-se o principal suspeito, logo limpou a arma, para eliminar vestígios da sua utilização. O arguido é caçador há cerca de 25 anos e costuma participar em batidas de javali, tendo-o feito por duas (2) vezes no ano de 2000, em Janeiro e Fevereiro, pelo que bem conhecia a perigosidade das munições que utilizou na arma de caça ao disparar [sobre a vítima] e a sua potencialidade para [lhe] provocar a morte. Com efeito, o projéctil provocou um orifício de forma circular de cerca de 2,5 cm de diâmetro no veículo automóvel atingido e um orifício com diâmetro semelhante no corpo da vitima. No momento do disparo, quando C' e J carregavam o 3.º vaso, três dos jovens do grupo encontravam-se na cabina de condução do veículo e os quatro restantes na caixa de carga, sendo que o arguido via o condutor ao volante. Ao actuar da forma descrita, agiu o arguido voluntária e conscientemente, sabendo que ao disparar a arma em direcção à carrinha podia causar a morte a qualquer um dos jovens, bem sabendo que estes se encontravam nesse veículo ou no local, tendo-se conformado com a obtenção deste resultado, isto é, que a morte de qualquer um dos jovens pudesse sobrevir como consequência possível do seu disparo. O arguido agiu motivado apenas pelo facto de o grupo de jovens ali se dirigir, no âmbito de uma brincadeira de S. João, para retirar o 3º vaso, tradição joanina do seu conhecimento. Sabia o arguido que, com o disparo, o projéctil perfuraria necessariamente o veículo automóvel e, por consequência, causaria prejuízos ao dono, que os orçou em 50.000$. Actuou o arguido com perfeito conhecimento do carácter ilícito e criminoso de todo o seu comportamento. O furto de vasos, na noite de S. João, é uma prática tradicional das freguesias de Cesar, Romariz e limítrofes. Ignora-se se essa tradição engloba o furto de vasos em freguesias alheias, embora, tanto há uns anos atrás como com mais insistência actualmente, alguns indivíduos se tivessem socorrido e venham socorrendo de vasos das freguesias vizinhas. Antes de disparar, o arguido dera-se conta do espírito que determinara o comportamento daqueles jovens, sabendo que estes apenas queriam os vasos de rua para, na linha de uma tradição, ornamentarem, durante a quadra, o adro da igreja, desconhecendo o arguido no entanto que fossem da vizinha freguesia de Cesar. O arguido é casado e tem ainda dois filhos a seu cargo, sendo, um deles, uma filha deficiente. Antes de preso, trabalhava como comerciante estabelecido por conta própria no ramo dos electrodomésticos, retirando dessa actividade entre 100 a 120.000$/mês. Residia com a mulher e os filhos em casa própria. De origem humilde, começou a trabalhar na fase da adolescência e veio a atingir, com esforço e dedicação, um nível de vida desafogado. É bem considerado na área onde reside, junto dos seus companheiros do Clube de Caçadores de ... , e colaborava assídua e empenhadamente nas actividades da igreja local. Não se lhe conhecem antecedentes criminais e não tem outros processos pendentes. Confessou factos relacionados com a acusação, mas que não se mostraram relevantes para a descoberta da verdade. A vítima, à data dos factos, contava 27 anos de idade. O arguido, depois ter sido proferido neste processo o acórdão da Relação do Porto, procedeu ao pagamento do montante indemnizatório que foi condenado a pagar aos demandantes cíveis na sequência da morte de J: a título de lucros cessantes, 3.000.000$; a título de danos não patrimoniais, 2.000.000$ para cada um; e, pela perda do direito à vida do filho, a quantia de 7.000.000$. 2. a condenação Com base nestes factos, o tribunal colectivo do 2.º Juízo Criminal da Feira (2), em 18Dez02, condenou P (-18Ago40), como autor de um crime de homicídio qualificado e de um crime de dano, nas penas parcelares, respectivamente, de 13,5 anos de prisão e 8 meses de prisão e na pena conjunta de 13,5 anos de prisão (3): A primeira questão que se coloca consiste em apreciar se a conduta imputada ao arguido corresponde à descrição jurídico-penal legalmente prevista, de modo que o mesmo possa ser responsabilizado pela sua infracção, pelo que se deverá ter em atenção os respectivos normativos, aos quais está subjacente a tutela de um determinado bem jurídico (...). Começando pelo crime de homicídio qualificado, temos que o mesmo encontra previsão nos art. 131.º e 132.º do Código Penal, que punem "quem matar outra pessoa em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade", designadamente "se determinado por qualquer motivo fútil ou torpe" [al. d)] ou "utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime de perigo comum" [al. g)]. O crime aqui em causa, como é bom de ver, tutela a vida humana, que é um dos valores estruturantes e estruturadores do nosso ordenamento jurídico, consistindo por isso num tipo de crime fundamental, aqui agravado pela especial censurabilidade das circunstâncias ou especial perversidade com que a morte foi produzida, surgindo por isso como uma forma agravada do homicídio simples (...). Aquela censurabilidade especial advirá das circunstâncias (graves) em que a morte foi causada, o que sucede quando traduzam uma atitude do agente profundamente distanciada dos valores que são, de um modo comum, aceites pela sociedade, enquanto a especial perversidade tem em vista uma atitude com base em motivos ou sentimentos profundamente rejeitados pela mesma sociedade, falando-se de uma "atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor" (Binder). A propósito do crime de homicídio qualificado e perante a cláusula geral do art. 132.º...

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