Acórdão nº 04A4283 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 03 de Março de 2005

Magistrado ResponsávelBARROS CALDEIRA
Data da Resolução03 de Março de 2005
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça "A", residente no Edifício ..., ...., em Águeda, instaurou - em 29/11/2002 - contra "B - Companhia de Seguros, S.A.", com sede na Rue Guillaume Tell, 75808 Paris Cedex, ..., França, acção declarativa, com processo ordinário, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de 156.641,69 Euros, acrescida de juros de mora desde a citação, a título de indemnização por danos patrimoniais (discriminando as seguintes parcelas: 124.699,47 Euros pela incapacidade parcial permanente + 436,02 Euros de perdas salariais + 506,20 Euros de outros prejuízos + 1000 Euros pela perda de férias e regresso antecipado) e por danos não patrimoniais (30.000 Euros atinentes ao quantum doloris e ao prejuízo de afirmação pessoal).

Alegou, para tanto e em síntese, que no dia 28 de Dezembro de 2000, em Andorra, na estância "Soldeu El Tarter", quando acabava de terminar a descida da pista de ski e se encontrava à saída da mesma, foi abalroado por um trenó, que se despistara, conduzido por C, residente em França, acidente do qual lhe advieram lesões, com os consequentes danos, cuja reparação pretende obter com a presente acção, dado que a condutora do trenó celebrara com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil, através do qual transferira a sua responsabilidade pela ocorrência de acidentes como o dos autos para esta seguradora.

Citada a Ré, não apresentou contestação.

Foi então proferido o despacho de fls. 23 e 24, que decidiu julgar o Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, onde a acção foi instaurada, incompetente em razão da nacionalidade para decidir a causa, com a consequente absolvição da Ré da instância.

Deste despacho veio o Autor recorrer de agravo para o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual, por acórdão constante de fls. 60 a 74, confirmou a decisão recorrida.

Inconformado, o Autor recorreu, novamente de agravo, para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões: 1. Em Novembro de 2002, no Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, A, residente no Edifício Village Alta Vila, ...., em Águeda, instaurou contra "B - Companhia de Seguros, S.A.", com sede em Rue Guillaume Tell - 75808 Paris Cedex, ..., França, acção declarativa com processo ordinário, pedindo a condenação da Ré no pagamento de € 156.641,69, por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo Autor - ora recorrente - acrescida de juros de mora desde a citação.

  1. Tendo sido a Ré - Companhia de Seguros devidamente citada, não deduziu nenhuma oposição. Impunha-se, em consequência, ao abrigo do princípio cominatório semi-pleno, entre nós, legalmente consagrado, que fossem considerados confessados e assentes os factos articulados pelo Autor (arts. 480 e 484, n.º 1, do Código de Processo Civil português - doravante, simplesmente CPC).

  2. Todavia, decidiu o Meritíssimo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Águeda afastar-se da aplicação do referido princípio, considerando oficiosamente que o Tribunal onde fora proposta a acção em apreço era absolutamente incompetente, à luz das regras que disciplinam a competência internacional dos nossos tribunais.

  3. Com efeito, sustentou o Tribunal de 1.ª instância que nenhum dos quatro critérios de atribuição de competência elencados no n.º 1 do art. 65 do CPC se encontrava preenchido, daí extraindo (e só daí) a absolvição da Ré da instância.

  4. Após a devida admissão do competente agravo, já perante o Tribunal da Relação de Coimbra, veio o Autor alegar a patente insubsistência jurídico-normativa da decisão que a 1.ª instância proferira. Nas suas linhas gerais, a fundamentação invocada era a seguinte: 6. A incompetência internacional do tribunal português, sustentada na decisão de 1.ª instância, teria de ser invocada por uma das partes pois não é de conhecimento oficioso.

  5. Não obstante, ainda que tal conhecimento oficioso fosse juridicamente admissível, sempre haveria que concluir pela competência do Tribunal de Águeda, porquanto do acidente resultaram inúmeros danos que ocorreram em Portugal (gastos com medicamentos e médicos, dores resultantes dos tratamentos, etc.), pelo que a causa de pedir na acção sob análise envolve não só os elementos e factores que contribuíram para a colisão em si, mas igualmente os prejuízos e danos daí resultantes, bem como os demais factos jurídicos geradores do dever de indemnizar, sendo que, consequentemente, fica preenchido o critério plasmado na alínea c) do n.º 1 do art. 65 do CPC.

  6. Perante o alegado pelo Autor da presente acção - então (e ainda agora) recorrente - veio o Tribunal da Relação negar provimento ao agravo interposto, confirmando a decisão recorrida e declarando, concomitantemente, a incompetência absoluta dos Tribunais portugueses para conhecerem do objecto da causa.

  7. Segundo os doutos Juízes Desembargadores, a correcta leitura interpretativa dos preceitos contidos nos artigos 101 e 102, n.º 1, do CPC imporia, sem mais, a conclusão de que, sendo os tribunais portugueses incompetentes para julgar o pleito em causa, ficaria relegada ao seu poder discricionário a declaração da respectiva incompetência, sendo que, ademais, a consideração das várias normas inclusas nas Convenções de Bruxelas (de 1968) e Lugano (de 1988), relativas à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, não autorizaria conclusão diversa.

  8. Ora, em primeiro lugar, sempre haverá que ter em apreço que aplicável à presente contenda é o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000 (doravante citado somente como Regulamento do Conselho), e não as Convenções de Bruxelas e Lugano. Tudo porque o referido Regulamento veio substituir, desde 1 de Março de 2002, a versão da Convenção de Bruxelas de 27 de Setembro de 1968, que até àquela data vigorava entre os Estados-membros da União Europeia.

  9. É verdade que, no que respeita à sistematização e conteúdo, o Regulamento não diverge significativamente da Convenção de Bruxelas de 1968. Porém, é também certo que a linha de continuidade entre ambos os textos foi quebrada em aspectos pontuais.

  10. Além do mais, é igualmente seguro que as referências normativas que in casu cumpre efectuar têm de ter por sede o instrumento jurídico efectivamente em vigor, pelo que se impõe buscar no aludido Regulamento do Conselho uma solução que caiba ao caso em apreço.

  11. Ora, atento o disposto nos arts. 25 e 26, n.º 1, do Regulamento do Conselho, é mister concluir pela impossibilidade de averiguação oficiosa de competência por parte do tribunal português no caso sub judice.

  12. Na verdade, determina aquele art. 25 que "o juiz de um Estado-Membro, perante o qual tiver sido proposta, a título principal, uma acção relativamente à qual tenha competência exclusiva um tribunal de outro Estado-Membro por força do art. 22, declarar-se-á oficiosamente incompetente". Daqui se extrai, portanto, por argumento "a contrariu" que, no caso sobre o qual versa o presente recurso, o Tribunal português não poderia ter oficiosamente conhecido da sua competência internacional - outra não é a conclusão possível, uma vez compulsado o conteúdo do art. 22, que não cobre, de jeito algum, a situação que temos em apreço.

  13. Contra a utilização de tal argumento não vale o emprego de uma (outra) linha argumentativa que se desenvolva por sobre um suposto princípio de que, no seio do quadro normativo estabelecido pelo Regulamento, prepondera a atribuição de competência aos tribunais do Estado-membro onde esteja domiciliado o demandado. De facto, tal género de argumentação (sempre seguida pelo Acórdão recorrido) esquece o dado normativo fundamental desvelado pelo n.º 1 do art. 3 do Regulamento, que é lesto a esclarecer que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-membro podem ser demandadas perante os tribunais de um outro Estado-membro "por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capitulo": fica absolutamente desnudada, pois, a possibilidade de razões ponderosas imporem o reconhecimento de competência a um tribunal de um Estado-membro em que o demandado não esteja domiciliado.

  14. Do mesmo modo, sempre haverá que concluir que o preceituado no art. 26, n.º 1, do Regulamento não obsta ao entendimento que acabou de perfilhar-se. Na verdade, esta norma determina o seguinte: "Quando o requerido domiciliado no território de um Estado-membro for demandado perante um tribunal de outro Estado-membro e não compareça, o juiz declarar-se-á oficiosamente incompetente se a sua competência não resultar das disposições do presente regulamento" (sublinhado nosso). Ora, como é bom de ver, de acordo com o Regulamento do Conselho, é iniludível a competência dos tribunais portugueses para julgarem a presente acção, não obstante a Ré não ter domicílio em Portugal: basta, para tal concluir, relancear o disposto nos arts. 3/1, 9/1/b e 11/2.

  15. Assim sendo, é manifesta a inaplicabilidade do art. 26/1 do Regulamento ao nosso caso (a despeito do argumento vertido no Acórdão recorrido que se estribava em norma análoga vertida na já citada Convenção de Bruxelas), bem como resulta mais uma vez reforçado o peso do argumento interpretativo "a contrariu" já antes por nossa parte invocado, no que tange à possibilidade de conhecimento oficioso por parte do Tribunal português da sua competência nacional.

  16. Cumpre ainda salientar que a decisão recorrida sempre se revelaria, neste ponto, insubsistente, mesmo que fosse de considerar aplicável à presente acção a Convenção de Bruxelas de 1968. Na verdade, seria identicamente forçoso concluir que o Meritíssimo Juiz do Tribunal de Águeda extrapolou as suas competências ao considerar que o Tribunal era incompetente em face da nacionalidade, pois, não tendo nenhuma das partes alegado esta excepção, ela não é de conhecimento oficioso.

  17. Efectivamente, de acordo com o preceituado no artigo 19 da Convenção de Bruxelas, também interpretado a contrario sensu, o juiz de um Estado contratante está impedido de apreciar oficiosamente a competência do tribunal quando não...

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