Acórdão nº 04B1452 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 13 de Maio de 2004 (caso NULL)

Magistrado ResponsávelARAÚJO BARROS
Data da Resolução13 de Maio de 2004
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: A e mulher B, C e marido D e E e marido F intentaram, no Tribunal Judicial de Paredes, acção declarativa, com processo ordinário, contra G, H e I, peticionando que se declare nulo, nos termos do art. 2194º do Código Civil, o testamento que J, seu tio, outorgou em 2 de Abril de 1997, nele beneficiando os réus, porquanto o 1º réu e seu pai, L, agiram em relação ao testador como se de verdadeiros enfermeiros se tratasse. Contestaram os réus, pugnando pela improcedência do pedido, aludindo aos fortes laços de amizade que os uniam ao testador e assegurando nunca ter prestado cuidados de enfermagem ao falecido. Sem prescindir, alegaram ainda que o art. 2194º do Cód. Civil abrange apenas o médico ou o enfermeiro diplomado e não a pessoa que trata de enfermos ou que faz as vezes de enfermeiro

Exarado despacho saneador tabelar, condensados e instruídos os autos, procedeu-se a julgamento, com decisão acerca da matéria de facto controvertida, vindo, depois, a ser proferida sentença que julgou improcedente a acção e absolveu os réus do pedido. Inconformados, apelaram os autores, sem êxito, uma vez que o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 24 de Novembro de 2003 (fls. 481 a 485) julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida

Interpuseram, desta feita, os mesmos autores recurso de revista, pretendendo a revogação do acórdão impugnado, declarando-se nulo o testamento que J declarou outorgar em 2 de Abril de 1997. Em contra-alegações bateram-se os recorridos pela manutenção do julgado

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, colhidos os vistos legais, cumpre decidir

Os recorrentes findaram as respectivas alegações formulando as conclusões seguintes (e é, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar no âmbito do recurso - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil): 1. O testador J faleceu em 05/04/1997 e, durante a sua doença, fez testamento, no dia 02/04/1997, a favor dos recorridos, filhos de L

  1. O recorrido G e seu pai, apesar de não serem enfermeiros diplomados, prestaram ao testador cuidados próprios da enfermagem. 3. É para os recorrentes indiscutível que o exercício da enfermagem ou da medicina enquanto profissão depende da posse e titularidade da respectiva cédula profissional. 4. Porém, a questão interpretativa em apreço, não visa apurar sobre quem pode exercer legalmente a actividade profissional de médico ou enfermeiro, mas se o termo "enfermeiro", para efeitos do art. 2194º do Código Civil, é apenas aquele que exerce a actividade devidamente titulado ou se, pelo contrário, é todo aquele que exerça essa actividade esteja ou não munido de título bastante para o seu exercício. 5. Torna-se, pois, necessário recorrer aos elementos da interpretação para determinar o sentido e alcance da norma constante do art. 2194º do Código Civil. 6. Atendendo, apenas, ao elemento gramatical, a expressão "enfermeiro" comporta, sem esforço, aquele que exerce a actividade ou acção de enfermagem, aí abrangendo tanto o enfermeiro diplomado, como o falso enfermeiro, ou aquele que se apresenta a exercer a enfermagem sem se arrogar a qualquer título. 7. Por isso, e considerando isoladamente o texto da lei, não deve o intérprete eliminar, à partida, qualquer um dos vários sentidos que o termo "enfermeiro" comporta. 8. Qualquer outro entendimento, fundamentado na mera análise exegética do art. 2194º do Código Civil, que considere que o termo enfermeiro apenas abrange o enfermeiro diplomado significaria que, se alguém, invocando falsamente a sua qualidade de enfermeiro, se apresentasse perante um enfermo e obtivesse dele, enquanto tratava de uma doença de que este viesse a falecer, qualquer deixa testamentária a seu favor, não ocorreria a indisponibilidade relativa a que se reporta o art. 2194º do Código Civil. 9. E nada disso quer a lei; nada disso pretende o legislador; pelo que urge buscar a interpretação da norma com base nos demais elementos ou critérios interpretativos. 10. A ratio legis do art. 2194º do Código Civil visa evitar que a pessoa que trata do testador na sua doença, actuando como enfermeiro, se sirva do ascendente natural que ganha sobre o testador e o leve a testar a seu favor. Para tal, basta a verificação objectiva da feitura do testamento durante a doença do testador a favor da pessoa que o trata como enfermeiro. 11. Sendo este o fim visado pelo art. 2194º do Código Civil, a verdade é que o falso enfermeiro ou o mero enfermeiro de facto gozam da mesma autoridade e ascendente que o enfermeiro profissional goza sobre o enfermo, pelo que, para os fins da supra citada disposição legal, é absolutamente indiferente a existência ou inexistência de título para o exercício da enfermagem. 12. A Comissão Revisora do actual Código Civil pretendeu incluir na disposição legal quer os enfermeiros, quer aqueles que, embora ilegalmente, exerçam de facto funções médicas, tendo aceite que a actual redacção do art. 2194º do Código Civil traduzia esse objectivo. 13. Tal significa que o termo "médico" tanto abrange aquele que exerce a medicina devidamente titulado como aquele que exerce tais funções, embora sem título. 14. Para os efeitos do art. 2194º do Código Civil não se descortinam diferenças substanciais entre as funções de médico e de enfermeiro. 15. Dessa forma, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, tanto é nula a disposição testamentária feita a favor daquele que exerce de facto as funções de médico, como é nula a disposição testamentária feita a favor daquele que exerce de facto as funções de enfermagem. 16. Para efeitos de aplicação da norma constante do art. 2194º do Código Civil o que realmente releva é a especificidade da actuação do beneficiário em relação ao testador e não a legalidade ou ilegalidade dessa actividade no campo sócio-profissional. 17. Quer o amigo, quer o bom samaritano, ou até mesmo aquele que, de um modo interessado e egoísta, socorra outrem na sua doença e lhe preste a assistência própria da enfermagem, poderão suceder em bens ou valores determinados - cfr. alínea a) do art. 2195º do Código Civil - destinados a remunerar os serviços prestados ao testador. 18. E, no caso dos autos, o testador até remunerou os visados através de doação, que se não impugnou. 19. A interpretação diz-se declarativa quando se limita a eleger um dos vários sentidos que o texto legislativo claramente comporta, por ser esse (subentende-se) o que corresponde ao pensamento legislativo. 20. O que significa que, compreendendo quer a letra quer o espírito do art. 2194º do Código Civil o "enfermeiro de facto", não se coloca a questão - como erradamente faz o Tribunal a quo - da aplicação analógica daquela disposição legal já que, para que tal fosse possível, seria necessário que o "enfermeiro de facto" não coubesse nem na letra nem no espírito da mencionada disposição, o que in casu não se verifica. 21. Dado o exposto, o acórdão recorrido ao considerar que o conceito de "enfermeiro" a que se refere o art. 2194º do Código Civil é o de enfermeiro diplomado, não fez, salvo o devido respeito, a correcta interpretação e aplicação da aludida disposição legal, porquanto o termo "enfermeiro" aí empregue abrange quer o enfermeiro diplomado, quer o falso enfermeiro, quer o mero enfermeiro de facto. 22. Assim não decidindo, o acórdão recorrido violou, salvo o devido respeito, a norma constante do art. 2194º do Código Civil, pelo que deve ser revogado. Mostra-se definitivamente fixada a seguinte matéria fáctica: a) - em 5 de Abril de 1997 faleceu J - doc. de fls. 22, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; b) - os autores A, C e E são sobrinhos do falecido J, por serem filhos de um irmão daquele, M, também já falecido - doc. de fls. 23 a 27, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; c) - em 13 de Abril de 1988 o falecido J celebrou o testamento público que se encontra junto a fls. 28 a 31; d) - em 2 de Abril de 1997 foi celebrado o testamento que consta de fls. 32/33; e) - nesse testamento serviram de testemunhas N e O, vizinhas do testador; f) - o testador J era uma pessoa de educação esmerada e personalidade forte; g) - tendo enviuvado aos 66 anos, nunca teve filhos; h) - antes de casar residira no Porto, passando depois a viver em Recarei, voltando novamente ao Porto nos últimos anos de vida da sua mulher; i) - após o falecimento desta voltou para Recarei onde viveu até à sua morte; j) - o testador J era padrinho de baptismo de C e de E e padrinho de casamento de A; k) - em Fevereiro de 1997, J, até aí saudável, foi acometido por alguns problemas de saúde, sendo examinado por diversos médicos; l) - ao J, foi diagnosticado um cancro já em adiantado estado de malignidade e que o veio a vitimar em poucas semanas; m) - L, pai dos réus, conhecia o tio dos autores há vários anos; n) - o tio dos autores era assistido por médico; o) - os réus G e L não possuíam qualificações profissionais para o exercício de enfermagem; p) - dão-se por reproduzidas as certidões de nascimento de fls. 67 a 69; q) - o facto da alínea i) ocorreu apesar de os autores terem proposto ao J, com quem mantinham boas relações, que ele ficasse a morar com eles ou perto...

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