Acórdão nº 495/04 – 3TBOR.C.1.S.1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 21 de Setembro de 2010

Magistrado ResponsávelSEBASTIÃO PÓVOAS
Data da Resolução21 de Setembro de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: CONCEDIDA A REVISTA Sumário : 1. O direito ao conhecimento da filiação biológica (ou natural) é pessoalíssimo, incluindo o direito à identidade genética, sendo irrepetível e com dimensão permissiva alcançar a “história” e identidade próprias, já que aquele factor genético condiciona a personalidade.

  1. Trata-se de um direito fundamental constitucionalmente consagrado como de identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) que adquire a dimensão de desenvolvimento da personalidade e um relevante valor social e moral.

  2. O direito a investigar a paternidade é imprescritível sendo injustificada qualquer limitação temporal que equivaleria à limitação de um direito de personalidade.

  3. É este o resultado que se alcança do Acórdão do Tribunal Constitucional ao declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, declaração que não pode deixar de ser extensível a todo o preceito.

  4. A revisão do Código Civil de 1977 (Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro) transformou os pressupostos da acção de investigação de paternidade elencados no n.º 1 do artigo 1871.º em presunções “tantum juris” atípicas por para a sua ilisão não ser necessária a prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2) já que basta a existência de “dúvidas sérias” no espírito do julgador (n.º 2 do artigo 1871.º).

  5. Como presunções que são, destinam-se a afirmar um facto base conhecido para afirmar um desconhecido que, nestas lides, é a filiação biológica.

  6. Demonstrado o vínculo biológico de paternidade, escopo primeiro da lide, irreleva, e deixa de ter razão de existir, a prova por presunção por se mostrar já assente, por outro meio, o facto presumido.

  7. A determinação da paternidade biológica é hoje possível com todo o rigor e fiabilidade científicos e se afirmada pelas Instâncias com base em meio de prova admissível, é insindicável por este Supremo Tribunal de Justiça por se tratar de matéria de facto.

  8. Conflituando o direito ao reconhecimento da filiação biológica com a privacidade e a tranquilidade do pretenso progenitor ou com a segurança material dos herdeiros deve prevalecer o direito do investigando e também o direito do Estado e da sociedade na defesa de valores éticos e eugénicos.

  9. A referida evolução da ciência e da investigação genética afasta o argumento do “envelhecimento da prova”; o argumento do perigo de “caça fortunas” é, além do mais, neutralizado pelo instituto substantivo do abuso de direito e pelas sanções adjectivas da lide dolosa ou temerária.

  10. Se está assente o vínculo biológico da filiação é do interesse do Estado e da sociedade o seu reconhecimento jurídico, sob pena de perigo de frustração dos impedimentos matrimoniais – de ordem pública – que vedam o incesto.

  11. Se a recorrente transcreve parte dos depoimentos ou de outro meio de prova de que discorda e que pretende ver reapreciado exerceu um “majus” em relação ao n.º 2 do artigo 690-A do Código de Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, não impedindo o exercício do contraditório, a que se refere o n.º 3 desse preceito, antes o facilitando.

    Decisão Texto Integral: Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça AA intentou acção, com processo ordinário, contra BB e mulher CC, por si e em representação das heranças ilíquidas e indivisas abertas por morte de DD e EE.

    Pede o reconhecimento como filha de EE, alegando, nuclearmente, que sua mãe (em finais de 1931/princípio de 1932) FF e aquele iniciaram relação de namoro, tendo mantido relações sexuais de cópula; que, na sequência, veio a nascer a autora, em 20 de Novembro de 1932, tendo sido elaborado o assento do seu nascimento sem menção da paternidade; que o EE sempre a tratou como filha e seus pais como neta; que aquele tratava os filhos da autora como netos; que só não reconheceu a paternidade por oposição de sua mulher e por, após o falecimento desta (em 9 de Dezembro de 2003) e até à sua morte, em 28 de Janeiro de 2004, ter sido “mantido em isolamento pelos Réus BB e CC; que o EE faleceu no estado de viúvo, sem descendentes e fez testamento a favor do Réu BB, tendo a sua mulher testado a favor dos Réus BB e CC.

    Na Comarca de Oliveira de Bairro foi proferida sentença julgando a acção procedente.

    Inconformados, os Réus apelaram para a Relação de Coimbra que, revogando a sentença recorrida, declarou a caducidade da Autora investigar a sua paternidade e absolveu os Réus do pedido.

    A Autora pede revista, assim concluindo a sua alegação: - Os Réus, no seu recurso, não cumpriram o disposto nos artigos 690.º, n.ºs 1 e 2, a), b) e c) e 690.º-A, n.º 1, a) e b) e n.º 2 do Código de Processo Civil impedindo o exercício do contraditório do n.º 3 deste preceito.

    - Não podem, por isso, usar do direito do artigo 698.º, n.º 6 do Código de Processo Civil pelo que esse recurso devia ter sido julgado deserto.

    - Mas sempre seria de rejeitar nos termos do n.º 3 do artigo 690-A.

    - A sentença da 1.ª instância é de manter por, além do mais, cumprir o disposto nos artigos 1.º, 2.º e 26.º da Constituição da República e 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o recurso interposto (para a 2.ª instância) deve ser julgado não provido, com todas as consequências como é de Lei de Justiça! - Porem, surpreendentemente, o Tribunal da Relação de Coimbra não se pronunciou sobre todas as questões postas, pela ora Recorrente, violando por isso o disposto do artigo 660.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

    - Aquando da prolação do despacho saneador foi verificada e declarada a inexistência de qualquer excepção que obstasse ao conhecimento do mérito e, dessa decisão não houve qualquer recurso.

    - É inconstitucional e inconvencional o estabelecimento de um prazo para exercício de direito à identidade, à igualdade e à não discriminação (artigos 1.º, 2.º, 9.º b), 13.º, 16.º, 18.º, 19.º n.º1, 20.º, 26.º e 36.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa; artigos 2.º, 6.º, 7.º, 10.º, 12.º, 28.º, 29.º n.º2, e 30.º da CUDH; artigos 6.º, n.º 1, e 17.º da CEDH; e artigo 1.º do Protocolo n.º 12 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais) – direito este que a Autora, ora Recorrente, veio concretizar através da propositura desta acção - , pelo que se opõe à aplicação ao caso dos autos, da nova redacção do artigo 1817.º do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 14/2009, de 1/4/2009, tanto assim que o Conselho da Europa sugere a revogação de todo o condicionamento das investigações de paternidade.

    - O direito da recorrente a investigar a sua paternidade surgiu na sua esfera jurídica na data do seu nascimento que ocorreu em 20 de Novembro de 1932.

    - Quando o direito da recorrente surgiu na sua esfera jurídica a acção interposta podia – nos termos do então vigente artigo 37.º do Decreto n.º 2 de 25/12/1910, que substituiu o artigo 133.º do Código de Seabra – ser intentada até ao decurso de um ano posterior à morte do investigado.

    - O investigado EE, pai da Autora, faleceu em 28/01/2004.

    - Do que vem de ser dito resulta que o direito da autora à propositura desta acção só caducaria a 27/1/2005. Porém, - A presente acção foi interposta em 14/5/2004 (cf. rosto da PI e respectivo relatório de transmissão por fax). Isto é, foi proposta quando ainda faltavam cerca de 8 meses para se completar o prazo de caducidade.

    - O prazo de caducidade é um prazo substantivo, integrador do próprio direito a intentar a acção, pelo que a lei nova não pode determinar quanto a direitos que a ele não estão sujeitos. Aliás, - De acordo com o artigo 8.º do Código de Seabra “A lei não tem efeito retroactivo. Exceptua-se a lei interpretativa, a qual é aplicada retroactivamente, salvo se dessa aplicação resulta ofensa a direitos adquiridos.” - A restrição do período temporal para intentar uma acção de investigação de paternidade efectuada pelo actual Código Civil e pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, nos termos do artigo 12.º do Código Civil actual, e das disposições constitucionais e convencionais adiante transcritas – é inaplicável ao caso dos presentes autos. Com efeito, - Não restam dúvidas quaisquer de que a legislação aplicável ao caso em apreço não é a legislação presentemente em vigor.

    - O Tribunal da Relação de Coimbra aplicou indevidamente a legislação actualmente em vigor, ou por erro de interpretação, o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 47334, o qual, ao invés de afectar os direitos adquiridos pela Autora, até acrescentou prazo para outras situações, mas que não a da Autora.

    - De resto a curada “ad litem” conformou-se com a sentença da 1.ª instância.

    - Finalmente, é inequívoco que a Autora é filha biológica do investigado tendo gozado a posse de estado até poucos dias antes do seu decesso.

    Contra alegaram os Réus BB e mulher em defesa do julgado.

    As instâncias deram como assente a seguinte matéria de facto: - FF nasceu a 29 de Maio de 1912, estando registada como filha de GG e HH e faleceu em 1999, no estado de viúva de II, filho deJJ e de LL.

    - FF também usava e era conhecida pelos nomes de G...G... e de G da C...G...

    - AA nasceu a 20 de Novembro de 1932, na freguesia de Troviscal, concelho de Oliveira do Bairro, estando registada como filha de FF e casou a 27 de Janeiro de 1951 com MM.

    - No assento de nascimento de AA não foi feita qualquer menção à sua paternidade.

    - EE faleceu a 28 de Janeiro de 2004, com 88 de idade, no estado de viúvo de DD e era filho de EE e de NN.

    - Por testamento celebrado a 14 de Março de 2003, EE declarou que “no caso de sua mulher, DD, sua única herdeira legitimaria, lhe pré falecer, institui seu herdeiro universal BB”, a quem declarou impor a obrigação de zelar pelo jazigo-capela, no qual deverá ser sepultado com a sua mulher, acima do solo, colocando e substituindo semanalmente, as flores e procedendo à sua limpeza.

    - Por testamento celebrado a 28 de Novembro de 2003, DD declarou não possuir descendentes ou ascendentes vivos e instituir...

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