Acórdão nº 982/07.1TVPRT.P1.S1 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 29 de Abril de 2010

Magistrado ResponsávelFONSECA RAMOS
Data da Resolução29 de Abril de 2010
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

S Privacidade: 1 Meio Processual: REVISTA Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE Sumário : I) - O cumprimento dos contratos deve ser pontual – art. 405º do Código Civil – no sentido de que as prestações devem ser realizadas não só no tempo convencionado, como o devem ser integralmente, ou seja, ponto por ponto, não se satisfaz, em tempo de cada vez maior eticização das condutas negociais segundo os deveres do tráfego inerentes a cada tipo contratual, com comportamentos que apenas tenham em conta interesses próprios, antes postula uma colaboração leal (de boa-fé) entre credor e devedor, sobretudo, no domínio das relações intersubjectivas, mormente nos negócios jurídicos, avultando o dever de cooperação, de entre os deveres acessórios de conduta.

II) – Tais deveres são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes uma actuação de boa-fé – art. 762º, nº2, do Código Civil – entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização.

III) – Impende sobre o transportador, como devedor da prestação do transporte – uma obrigação de resultado, [a deslocação incólume das mercadorias desde a sua recepção até à entrega ao destinatário] e, também, a adopção de deveres acessórios de conduta.

IV) - Na Convenção CMR, sobre o transportador e seus auxiliares, quando os houver, impende uma presunção de culpa que, se não for ilidida, implica em caso de demora na entrega – provando o interessado a existência de prejuízo – uma indemnização que não excede o preço do transporte; estamos perante uma indemnização forfetária.

Já assim não é, se o dano emergente da demora ou da perda da mercadoria resultarem de actuação dolosa do transportador, ou de falta a si imputável que, segundo a jurisdição do país julgador, seja considerada equivalente ao dolo.

V) - Sendo a culpa um juízo de censura ético-jurídico, em função da actuação efectiva do agente, nas concretas circunstâncias em que agiu, e aquela que teria alguém razoavelmente prudente, avisado e cumpridor nesse mesmo quadro factual – o padrão do bonus pater famílias – desde logo, não pode abstrair-se das obrigações emergentes do tipo contratual, dos direitos e deveres implicados nas prestações recíprocas, das regras da boa-fé, bem como do padrão de conduta postulado por uma actuação que respeite os interesses da contraparte, visando a não frustração das expectativas do credor (princípio da confiança), para aferir se uma certa actuação culposa exprime negligência consciente ou dolo, ainda que indirecto ou eventual.

VI) – Próxima da figura do dolo, a negligência consciente consiste no facto do agente ter previsto a falta de cumprimento como efeito provável da sua conduta, mas, ainda aí, se demitir, voluntariamente, de adoptar uma actuação que evitaria o dano, ficando indiferente ou desconsiderando os efeitos dessa actuação, que representou como consequência do modo como, in concreto, agiu.

VII) – A negligência consciente coabita, paredes meias, com o dolo indirecto, razão pela qual se nos afigura de distintiva relevância convocar o tipo de contrato em causa, os deveres implicados na prestação do devedor, o padrão da sua actuação como profissional no contexto de uma actividade de maior ou menor relevância social e económica, tudo de par com a expectativa do credor na prestação e focados na maior ou menor complexidade da relação obrigacional.

VIII) – Se for de considerar que a concreta relação contratual exige uma actuação mais prudente e diligente do devedor que não cumpre, podendo cumprir, sobretudo num quadro factual que não dirime a sua culpa, ao ponto de não se poder afirmar que não previu, nem podia prever que a sua actuação iria causar danos, então deve considerar-se que a sua actuação se elevou do patamar mais benigno da negligência consciente, para considerar que agiu com dolo indirecto ou necessário.

IX) A Ré transportadora agiu com dolo eventual ao não responder durante cerca de dois meses às solicitações da Autora, quanto ao destino dos bens transportados para a Alemanha, que deveriam ser entregues num prazo determinado, assim inviabilizando a entrega atempada da mercadoria, sabendo que o prazo era um elemento deveras essencial do interesse do credor e que não sendo observado causava prejuízos.

Decisão Texto Integral: Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça “AA-Distribuição de Calçado, Lda.

”, intentou em 25.6.2007, pelas Varas Cíveis da Comarca do Porto – 3ª Vara – acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra: “BB e Transitários, Lda.” Alegando, no essencial que, tendo celebrado com ela um contrato de transporte internacional de mercadorias (para calçado), da Arrifana para dois determinados clientes, na Alemanha, a demandada não cumpriu esse negócio no prazo previsto, e quando fez o transporte a mercadoria foi recusada e não foi paga, por não ser já susceptível de comercialização.

Como consequência desse incumprimento, a Autora pretende que a Ré a indemnize pelo valor da mercadoria objecto do transporte (e de duas facturas) e pela perda de novas encomendas daqueles e de outros clientes.

Assim, pediu a condenação da Ré a pagar-lhe: “a) A título de indemnização pelos prejuízos por ela sofridos, a quantia de Eur. 19.189,98, à qual deve acrescer os juros à taxa de 5%, desde a data da reclamação escrita endereçada à Ré, ou seja 11/07/2006, que até à data de 25/06/2007 se computam em Eur. 917,43, nos termos dos art. 17°, nºs 1 e 3, 23°, n.° 5, 29° e 27° da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte de Mercadorias por Estrada celebrada em Genebra em 19/5/1956, aprovada para adesão pelo Decreto-Lei 46.235, de 18/03/65, e alterada pelo Protocolo de Genebra de 05/07/78, aprovado para adesão pelo Decreto-Lei 28/88, de 06/09; b) Além dos lucros cessantes que vierem a apurar-se em execução de sentença, com juros, contados desde a citação até integral pagamento; c) Bem como as custas e condigna procuradoria.” Regularmente citada, a Ré contestou, impugnando parcialmente os factos e deduzindo reconvenção.

Na contestação, a Ré negou a existência de um prazo para a entrega da mercadoria, recorrendo ao que chamou de prazo normal de 15 a 20 dias que cumpriu, através do seu agente, acrescentando que foram os clientes da Autora que não aceitaram os sapatos.

E quando, posteriormente, a Autora autorizou a entrega livre da mercadoria ao seu agente na Alemanha, com novas condições, também não foi possível fazê-la por o seu agente ter então invocado que os clientes finais já não estariam interessados em tais produtos.

Acrescentou que agiu com a diligência e o zelo que lhe eram exigíveis, sem qualquer falha operacional e que a situação teve origem em falha do próprio interessado (recusa inicial de recebimento por parte dos destinatários) ou em circunstâncias que o transportador não poderia evitar e a cujas consequências não dominava.

Invocou ainda a prescrição do crédito da Autora nos termos do art. 32º da CMR.

Por via da reconvenção, pediu a condenação da Autora a pagar-lhe determinados serviços de transportes anteriores e facturados que discriminou, pelo montante total de € 10.047,89 sobre o qual incidem juros de mora, num total, à data da reconvenção, de € 11.888,96 (€ 10.047,89 + € 1.841,47).

Caso a Ré, por mera hipótese, venha a ser condenada em alguma quantia, deve operar-se a compensação com o crédito que tem sobre a demandante, acrescentou.

E terminou: “a) A excepção de prescrição invocada ser declarada procedente, e a Ré absolvida do pedido, a acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e a Ré absolvida do pedido; b) Se assim não se entender, deverá a acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e a Ré absolvida do pedido; c) Se assim não se entender deve ser julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional e, consequentemente, ser a Autora condenada a pagar à Ré a quantia de € 11.888,96.” Notificada, a Autora reconvinda replicou, opondo-se à excepção da prescrição.

Quanto à matéria da reconvenção, embora reconhecendo o valor pretendido, entende que não o tinha que pagar porque a Autora pretendia ser indemnizada pelos prejuízos por ela sofridos, objecto da presente acção.

Como tal invocou a excepção do não cumprimento do contrato.

Defendeu a improcedência da excepção e a inadmissibilidade da reconvenção, mantendo a versão da petição inicial.

A final foi proferida sentença que julgou: - Parcialmente procedente a acção e condenou a Ré a pagar à Autora a quantia, a liquidar em execução de sentença, equivalente ao preço acordado no âmbito do contrato de transporte a que se reportam os autos, acrescida de juros de mora, à taxa de 5%, ao ano, desde a decisão definitiva de liquidação do crédito da Autora até integral pagamento.

- Parcialmente procedente a reconvenção e condenou a Autora “AA, Lda.” a pagar à Ré “BB, Lda.” a quantia de € 11.888,96.

- Mais determinou que a compensação entre os referidos créditos da Ré e da Autora, deverá ser efectuada em posterior liquidação de sentença, atenta a natureza ilíquida do crédito desta última.

Inconformada, recorreu a Autora, para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 29.10.2009 – fls. 495 a 514 – negou provimento ao recurso, confirmando a sentença apelada.

A Autora, de novo irresignada, recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões: I. Perante a necessidade de aplicação de uma lei internacional que, para obviar a um aproveitamento injusto de uma situação de favor que ela própria contem, dela faz excluir os actos praticados com dolo ou falta que seja imputável ao seu autor e que, “segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo, não pode o intérprete quedar-se por uma aparente “falta” do nosso sistema jurídico para sancionar a injustiça que a paralisação dos efeitos correctivos da aludida exclusão...

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