Acórdão nº 02P1071 de Supremo Tribunal de Justiça (Portugal), 16 de Maio de 2002

Magistrado ResponsávelCARMONA DA MOTA
Data da Resolução16 de Maio de 2002
EmissorSupremo Tribunal de Justiça (Portugal)

Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça Arguido/recorrente: A (1) 1. OS FACTOS (2) O arguido é casado com B, de quem tem 5 filhos. Desde há bastante tempo que o arguido dá maus tratos aos seus familiares, designadamente à sua mulher e filhos, tendo havido já algumas queixas por tais factos que terminaram sempre por desistência. No dia 9 de Abril de 2000, por volta das 20:30, o arguido, mais uma vez, insultou os filhos (3) e a mulher, exigindo que aqueles recolhessem de imediato a casa para trancar as portas, às 21:00, como fazia já há anos. No desenvolvimento, gerou-se alteração entre o arguido e uma das filhas do casal, C, na sequência da qual o arguido, com a arma de fogo que sempre trazia consigo, mesmo dentro de sua casa, em ambiente familiar, apareceu no corredor, empunhando-a, em tom (4) ameaçador. O arguido estava nesse dia muito exaltado, pelo que os filhos e mulher saíram para o exterior da residência com o objectivo de o deixar sózinho e ver se conseguiam que ele acalmasse. Entretanto, D chegou, pelo que resolveram todos - ele, irmãos e a mãe - entrar na residência familiar. Já dentro de casa, a filha C deu pela falta de um telemóvel que havia pousado em cima de uma mesa, no seu quarto, pelo que, calculando que tinha sido o arguido quem dele se apoderara, dirigiu-se ao quarto dele, verificando que o mesmo tinha numa mão o telemóvel e na outra a arma com que já ameaçara disparar sobre quem o afrontasse (5). C pediu ao pai que lhe devolvesse o telemóvel, tendo aquele jogado ao solo o aparelho, pisando-o com o intuito de o destruir e de impedir que a filha dele se apoderasse (6). Enquanto C discutia com o pai, agachando-se e tentando retirar o pé do pai de cima do telemóvel, D dirigiu-se ao quarto onde decorria a discussão para tentar inteirar-se do que se passava, pois que a discussão era claramente audível por todas as pessoas dentro de casa. Mal D transpôs a porta do aposento, o arguido, apontando-lhe a arma, disparou, sobre o filho, dois tiros à queima-roupa (7). Os disparos atingiram-no em zonas vitais do corpo, designadamente a região torácica e abdominal, provocando-lhe os ferimentos descritos e analisados no relatório de autópsia de fls. 42 e ss., causa directa e necessária da sua morte. A arma que o arguido disparou contra o filho é a que se encontra apreendida à ordem destes autos e cujos documentos se encontram juntos a fls. 6 e 7. O ofendido, que ficou logo ali prostrado no chão, foi de imediato socorrido e conduzido por uma ambulância ao H. S. Marcos de Braga onde lhe foram prestados os primeiros socorros, que se mostraram infrutíferos, vindo posteriormente a falecer. No dia e condições em que ocorreram os factos, o arguido, sem que nada o justificasse, não se coibiu de trazer e empunhar a arma, carregá-la, sair a porta de seu quarto e exibi-la perante os seus familiares, ameaçando-os, culminando com os disparos feitos sobre o filho. Deste modo, quis, com tais actos, produzir um resultado que tinha consciência de ser adequado à sua conduta. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de atingir mortalmente o filho, tendo consciência de que a sua conduta era proibida por lei. O arguido construiu um significativo património, mercê do seu trabalho e do seu rigor. Teve uma vivência de pobreza e miséria na juventude e sempre foi muito rigoroso com os filhos. Emigrou e esteve em França e na Alemanha, regressou ao seu país quando as duas filhas mais velhas atingiram a idade escolar, para evitar que mais tarde uma mudança de escola as prejudicasse. Impunha regras severas aos filhos quanto a horas, comportamento e trabalho. Cumpriu serviço militar nos anos 60, na Guiné. É um homem rigoroso, intransigente e duro, resultado da educação que recebeu e de um percurso de vida, mas é também um homem trabalhador. Pautou a sua relação familiar por princípios inflexíveis. Para tudo e todos existiam regras que tinham que ser pontualmente cumpridas. Sentiu a atitude dos seus familiares naquele dia como um desafio à sua autoridade. Em termos de estrutura psicológica, revela uma perturbação paranóide da personalidade, que condiciona a interiorização da realidade afectiva e relacional e lhe provoca uma postura vivencial ambivalente, ora coarctada, ora explosiva (rigidez cognitiva), podendo atingir níveis de perigosidade. Desde há muitos anos que tratava o seu agregado familiar com severidade desproporcionada, habituado a que ninguém questionasse a sua autoridade. Insultava a filha C, hoje com 28 anos de idade, bem como sua mulher e, particularmente, fazia-o também à filha mais velha do casal, portadora de atraso intelectual, chamando-lhes "putas", o que designadamente fez no dia dos factos dos autos à filha C. Em data anterior à dos factos dos autos, após discussão, atirou uma tigela à cabeça desta sua filha, provocando-lhe ferida incisa na cabeça, ferida que necessitou de tratamento hospitalar. Designadamente, era seu hábito agredir corporalmente, com violência, seus filhos, deixando-lhes pisaduras. Não procurava a companhia dos seus familiares, designadamente jantava sozinho, o que fez no dia dos factos. Em casa permanecia por grandes períodos de tempo no quarto de dormir, designadamente de luzes apagadas. Por várias vezes, por se encontrar irritado ou alterado, cortou a electricidade em casa, no fito de contrariar os que consigo coabitavam. As filhas, que trabalhavam com o arguido no supermercado do casal, nunca foram remuneradas por tal trabalho. A situação de dependência económica dos familiares chegados reforçava o sentimento de autoridade do arguido perante eles e, por parte destes, designadamente da mulher e filhas, um sentimento de dependência sem alternativa. Os filhos do arguido chegaram a estar recolhidos em casa de uma irmã e cunhado, por vários dias, com o fito de se protegerem do mau humor do arguido. D tinha abandonado o trabalho com os pais, para se empregar num talho, no mercado de Braga e tinha gozado férias, factos que muito contrariaram o arguido. No dia anterior aos factos, um sábado, deslocara-se ao casamento de um amigo e chegara perto da meia noite, mas não lhe foi permitida a entrada em casa pelo arguido, já que não tinha chave e este trancara a porta de entrada. D passou essa noite fora de casa por via de tal facto, só tendo podido entrar quando o arguido abriu a porta, perto das 6:00. O arguido vivia para o trabalho, que prezava acima de tudo. Possui património imobiliário (dedicou-se também à construção civil, após regressar do estrangeiro) e trabalhava como comerciante: explorava um supermercado, com a mulher e os filhos, e transaccionava em cereais, o que fazia designadamente na feira de Braga, actividade a que se dedicava sozinho. Fora do seu ambiente familiar, era há muito conhecido como problemático, designadamente pelas autoridades policiais, era conhecido como pessoa severa, mas trabalhadora. Desenvolveu contactos com inúmeros comerciantes da cidade de Braga, seus fornecedores, com quem manteve boas relações. 2. a condenação No dia 30Mai01, a Vara Mista de Braga (8) condenou A, como autor de um crime de homicídio qualificado, na pena de 19 anos de prisão e, a título de indemnização, no pagamento aos sucessores da vítima da importância de 14000 contos e juros: Apreciando a incriminação levada a cabo no libelo acusatório, começaremos por constatar o que de há muito vem sendo salientado pela dogmática e pela jurisprudência, desde a publicação do Código Penal de 82 - que o tipo de culpa agravado em que assenta o tipo legal do homicídio qualificado tem completa autonomia para a verificação da existência in casu dos elementos do crime. Por outras palavras, exige-se, de acordo com o disposto no art. 132.2 CP, que a morte seja produzida em circunstâncias que revelem a especial censurabilidade ou perversidade do agente e tais circunstâncias são meramente indiciadas por elementos, quer relativos aos facto, quer relativos ao agente, elencados no n.º 2 do art. 132.º CP. Para exemplificar, da verificação dos citados elementos não pode retirar-se automaticamente a qualificação do homicídio, bem como, inversamente, a respectiva ausência não impede quer a verificação da culpa agravada do n.º 1, quer que se venham a descortinar elementos substancialmente análogos aos elencados (Figueiredo Dias, CJ 1987-IV-49, e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Almedina, p. 50). E, assim, quando a lei se refere a "especial censurabilidade" reporta-se àquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas; quando se refere a "especial perversidade" reporta-se às qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (neste sentido, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, art. 132º, §7). Sem embargo, ainda que cada um dos exemplos padrão do art. 132.2 apontem, neste sentido, ou para uma maior censurabilidade ou para uma maior perversidade, certo é que o agente pode indistintamente demonstrar merecer essa maior censura ou uma maior perversidade em qualquer que seja dos apontados exemplos do art. 132.2. Na formulação da jurisprudência suíça (9) o agente de homicídio qualificado enquadra-se na definição do psiquiatra Hans Binder, a saber, uma pessoa que age com sangue frio, sem escrúpulos, demonstra um egoísmo primário e odioso com uma ausência quase total de tendências sociais e que, no objectivo de prosseguir os seus próprios interesses, não tem absolutamente em conta a vida de outrém. Acentua tal jurisprudência, agora sob um ponto de vista jurídico-penal, que, nesse agente, o egoísmo sobreleva qualquer outra consideração; para a satisfação de interesses egoístas sacrificará um ser humano que a ele se não opôs, demonstrando ausência completa de escrúpulos e frieza afectiva. Revertendo para o caso concreto. O arguido possuía uma relação de forte domínio sobre todo o seu agregado familiar; começando pelo facto de todos trabalharam numa...

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